27 janeiro 2009

Sonho de dois meses de Verão


Vicky Cristina Barcelona pouco faz para tirar o cinema de Woody Allen da queda que há muito se iniciou – e será interessante saber onde terá começado esta queda; eu aposto em Celebrity (1998). E, ao mesmo tempo, e um filme bastante satisfatório. Explicando:

Há aspectos verdadeiramente irritantes neste filme. O principal é a maneira como Barcelona e mostrada, turisticamente, estereotipada de modo a que o que sobra seja Gaudi e os guitarristas de cabelo comprido e barba. Não há paisagem que não pareça retirada de um guia e que ressoe como um espaço próprio, onde milhões de pessoas vivam, de uma maneira ou de outra, durante o dia. Nesse aspecto, e perante a necessidade de locais que sirvam de âncora, de algo reconhecível no universo alleniano, existem as habituais cenas nos restaurantes e estes não parecem muito diferentes dos encontrados noutros filmes do cineasta.

O outro aspecto irritante e o tratamento estereotipado dado aos espanhóis neste filme, desde o velho poeta amante de mulheres ao filho pintor amante da vida e de mulheres (há duvidas de que Javier Bradem e um grandessíssimo actor?), passando pela tresloucada ex-esposa do pintor, amante de algazarra e também, ocasionalmente, de mulheres (enorme Penélope Cruz, a prova de que trabalhar regularmente com Almodóvar faz bem). Não há esforço para compreender a latinidade, há apenas uma faca afiada e um alguidar largo que sobrevive a custa de dois dos melhores actores da Europa actual – e do momento em que Cruz, finda a relação a três, desata a chorar.

E no fundo, por irritante que seja, faz sentido que não haja esforço de compreensão do circundante nesta história de duas amigas, temperamentalmente diferentes, que embarcam em toda uma serie de aventuras num verão na Catalunha. Afinal de contas, o paradigma do turismo não é o de conhecimento de um local, mas o de reconhecimento. A dada altura, Vicky Cristina Barcelona é muito menos um filme sobre umas férias e muito mais um filme sobre como as limitações pessoais (a incapacidade de expressão artística e de realização sentimental de Cristina) ou as escolhas passadas (a sede de compromisso de Vicky, que acaba por a conduzir a um casamento condenado) seguem as personagens para onde estas vão, podem ser combatidas pela mudança de circunstâncias mas, no limite, acabam sempre por vencer.

Vicky Cristina Barcelona é um filme triste mas doce, infeliz mas engraçado, derrotado mas vivo. Fala-se de Chekov (e não podia deixar de ser),mas poder-se-ia falar doutro brilhante filme fútil de Allen, o belíssimo Everyone Says I Love You (1996). Na nostalgia do dourado Verão ibérico, o que vemos é um velhote fascinado com a eterna marivaudage dos jovens, com ternura, sem julgamentos de valor. E por isso, Vicky Cristina Barcelona, que poderia ser um dos contos morais de Rohmer se não fosse deliciosamente amoral.
Reitero: amplamente satisfatório.

25 janeiro 2009

Líbano, 1982



Se a arte é o local da ambiguidade (e muito boa gente diz que sim), Waltz with Bashir é um dos mais interessantes objectos dos últimos tempos.

Neste pesadelo soberbamente animado, documentário pessoal mas distanciado e até onírico, acerca das mazelas que perduram dos massacres de Sabra e Chatila, no Líbano em 1982 que vitimaram 3 mil palestinianos, mostram-se duas visões distintas e pouco vistas das tropas de David. A primeira, já de si basto interessante por quase nunca ser mostrada, é a de um conjunto de ex-soldados longe dos super-homens que as Forças Armadas de Israel querem mostrar ao público. No seu périplo para saber o que terá visto e feito no Líbano, o cineasta Ari Folmam encontra alguns dos seus colegas de exército, forçados a perder a inocência numa invasão de um país soberano que foi o serviço militar obrigatório que lhes calhou. O que vemos é a ideia de uma geração forçada a perder parte importante da sua juventude não por motivos de patriotismo mas por decisão estatal, o que redundou num sonambulismo omnipresente, que a animação sublinha por intermédio da perda de realismo e numa diáspora de alguns desses soldados, que preferiram fazer a sua vida fora das convulsões (ou invasões, como lhe quiserem chamar) do Médio Oriente. Há uma ideia de “geração perdida” a perpassar por Waltz with Bashir que não é nada habitual de se ver quando se fala de Israel.

A ambiguidade explode, contudo, na segunda metade do filme, aquela que recria e revela a participação do realizador nos referidos massacres, e onde, pela primeira vez num objecto visto por mim, existe um claro e inusitado exemplo de má consciência israelita. Pela enésima vez, como em todos os massacres, são repetidos os célebres argumentos de desconhecimento perante a barbárie, colocando dolorosamente o caso israelita numa longa linhagem de genocídios. É um facto que o exército sabia e que os soldados estavam inclusivamente a iluminar a noite libanesa para dar aos falangistas a segurança necessária na condução das mortes – mesmo se cada unidade só soubesse parte, sendo a cúpula militar (e o então ministro da Defesa, Ariel Sharon) quem tivesse a totalidade dos factos. O massacre poderia ter sido evitado e não são desculpa a falta de conhecimento, a amnésia, o sonambulismo ou os pesadelos, por muito que deles sofram aqueles que outrora mais não eram que putos assustados a lutar no estrangeiro. É como diz a personagem de Mathieu Kassovitz no Munique de Spielberg: dois mil anos de perseguição não tornam um país decente. Waltz with Bashir sabe-o e afirma-o por diversas vezes.

Nas suas fantasmagóricas imagens, do pesadelos dos 26 cães que o abre à recriação do que se passou nos campos de refugiados, passando pelo genial momento da viagem de um dos soldados no corpo de uma mulher gigante, Waltz with Bashir é um filme assustador. Pela capacidade de matar de quem parece inocente, por aquilo que se faz por uma pátria, por cicatrizes que não desaparecerão nunca. Poderia ser doutra maneira?

11 janeiro 2009

Sumaríssimos (1)


Austrália é o primeiro filme medíocre de Baz Luhrman. A meio termo entre a irrisão (no início) e uma seriedade forçada na parte final, é um filme que padece de credibilidade quer no seu classicismo, quer nos momentos em que tenta trabalhar sobre os códigos, como quem não sabe muito bem o que está a fazer. As soluções encontradas são sempre o sentido de insuflar, insuflar, misturar a martelo western com filme de guerra e conto sobre uma viagem iniciática de um jovem mestiço aborígene, criando um caldo indigesto, onde os pedaços parecem não ter sido devidamente triturados num todo coerente. Não chateia muito, mas também é completamente desnecessário.

08 janeiro 2009

E agora?

Um pequeno aviso à navegação Estou pouco interessado em polémicas. Tenho o jantar para fazer e a loiça para lavar e não tenho tempo. Comentários serão sempre bem-vindos, mas poupem-me a chatices.
Não poderia, contudo, esquecer a saída de Benard da Costa da Cinemateca Portuguesa. Recordar polemicas antigas é-me indiferente. Queria apenas fazer dois pequenos reparos:

1) A programação da Cinemateca de Benard da Costa não baixou jamais de um patamar de qualidade inegável. As pessoas que se queixam de filmes e cineastas com lugar cativo provavelmente viram tudo. Eu, que não vi todos os Rays, Langs, Cukors, Vidors ou Sirks e que nunca vi nenhum De Toth, Dmytryk ou Borzage (estou a trabalhar para isso), agradeci sempre. Como agradeci as repetições, dado que nunca lá pude ir sempre que desejava. Perante isto, que a Cinemateca nao exiba o último documentarista lituano da moda, ou, como queria APV, não se renda ao mainstream (toda a gente sabe que os sitios com filmes mainstream são poucos e era preciso a Cinemateca fazer esse trabalho…) pouco me importa. Havia sempre muito que ver em cada programação mensal.

2) Nos últimos dois anos, Benard fez duas coisas que, a mim, me desagradaram brutalmente: a primeira, a nomeação do filho para um cargo importante – nomeação essa que nem trouxe muita polémica, se calhar porque muitos que o criticaram por causa da idade também precisam dos pais para subirem na vida, e calaram-se por uma questão de coerência. A segunda, a nomeação de Pedro Mexia, manifestamente pouco preparado para o cargo – acham normal que o sub-director da Cinemateca assuma no seu blogue que só recentemente viu filmes como The Killers, Deserto Rosso ou The Bad and The Beautiful? Contudo, muito boa gente falou de “lufada de ar fresco"...

Agora, não sei o que vai acontecer. O mais provável é que fique lá Pedro Mexia e a qualidade do que é mostrado e do que é escrito decresça e muito – a não ser que este saiba delegar nas pessoas sábias e experientes que ainda lá vão trabalhando. Bottom line: não estou muito esperançoso acerca disto. E ainda estaria pior se tivesse tempo para ir a Cinemateca mais do que uma vez de dois em dois meses.

04 janeiro 2009