28 junho 2007

Notas da 'teca (2)


Inegável cronista da beleza e das virtudes (e defeitos) femininas, Kenji Mizoguchi realiza com Cinco mulheres em torno de Utamaro (1946) uma inegável operação de mise en abyme da sua obra. História de um pintor que via na beleza feminina a razão da sua arte, é uma pungente crónica das mulheres que o rodeiam e das suas atribulações sentimentais, dilaceradas entre desejos que não podem concretizar e as reacções brutais que esses desejos provocam. É, no limite, de uma relação entre personagem e cineasta que aqui se trata, e o olhar interior sobre o corpus do japonês permanece na escolha da sua figura central: também Mizoguchi (à semelhança de Kurosawa e das suas cores) podia ter sido pintor. É por demais evidente a mestria nos enquadramentos, que organizam as figuras humanas por modo a maximizar o efeito pretendido para cada cena e a utilização da profundidade de campo, magistral na construção de um cenário a um tempo realista e profundamente cinematográfico. Magistral.


Outra visão aqui.

26 junho 2007

Notas da 'teca (1)


Custa a creditar que, como diz a respectiva folha da Cinemateca, Luís Buñuel tenha hesitado em fazer Viridiana em Espanha, depois de mais de vinte anos de exílio nos EUA, no México e em França, devido à censura estatal. A elevada ignorância dos censores ibéricos originou a oportunidade ideal para uma dinamitação por dentro dos atavismos religiosos que, em larga medida, ajudaram a suportar o franquismo. Viridiana é, assim, a desconstrução das virtudes católicas da caridade e a história da imersão de uma jovem freira na perversão sexual. Grotesco e subversivo, é uma sucessão de provocações por parte de um ateu blasfemo. Síntese de todas as obsessões buñuelianas, falta-lhe a inovação de Un Chien Andalou (1929), a transformação das narrativas literárias de Abismos de Passion e Robinson Crusoe (ambos de 1954), o jogo de massacre interior de La Belle de Jour (1967) ou a vertigem de Cet Obscur Object du Désir (1977). Contudo, não desce nunca abaixo daquilo que um Buñuel deve ser. Tem uma notável componente simbólica, de que a coroa de espinhos a arder é o melhor exemplo. É elegantemente fetichista, mesmo que para isso descure as suas personagens. E quantos alguma vez arriscaram indignar com finais deste tipo? Uma coisa é certa: em Viridiana, primeiro repara-se nos defeitos; com o tempo, decerto crescerá.


15 junho 2007

A Indústria do Cool



Os filmes da trilogia do bando de Danny Ocean são o sonho do cinéfilo. Com eles, Steven Soderbergh tem conseguido um equilíbrio perfeito entre um delicioso entretenimento e uma perfeição ímpar das formas fílmicas. Assim, ao grupo de actores mais carismático que o cinema americano teve desde a década de 70 (e não é despiciendo que a Elliott Gould se tenha juntado, no mais recente tomo, Al Pacino) adicionou-se a ambientalmente utilíssima “modernidade retro” da música de David Holmes e a encenação sempre autochamativa mas narrativamente eficaz, sempre coadjuvada por uma utilização criteriosa do filtro colorido de imagem.

Ocean’s 13 não é um objecto necessário à história do Cinema ou ao seu momento actual. Não trará quaisquer novos fãs à trilogia. E, inclusivamente, há uma função quase de McGuffin no golpe que domina a segunda metade do filme, tão relevante para a sucessão de piadas privadas que o formam quanto a componente clínica o é para o estudo da misantropia de Gregory House. A função de Ocean’s 13 é uma função predominantemente comercial, a de gerar a liquidez necessária a um cineasta com gosto pelo experimental e a um grupo de actores cada vez mais empenhado política e humanitariamente. Contudo, depois da classe do primeiro e da estupenda auto-irrisão do segundo, o terceiro é um gracioso acumular de mais piadas privadas que, se não fazem rir desbragadamente, pelo menos geram uma recompensadora bonomia – são impagáveis as sequências “revolucionárias” passadas no México. Vale pelos bigodes, pelas próteses nasais e pelas piscadelas de olho ao programa de Oprah Winfrey. Não é muito, mas os travellings e a imaginação visual de Soderbergh compensam largamente a falta de relevância.

Em Almost Famous (Cameron Crowe, 2000), Lester Bangs queixa-se de que o rock foi transformado numa “indústria do cool”. Com este filme acontece o mesmo, mas de maneira mais positiva e, paradoxalmente, com mais autenticidade. Não havendo grandes motivos artísticos para um quarto filme, Ocean’s 13 é, então, um objecto à beira da irrelevância desprestigiante que é ganho pela forma descomplexada como alia o lúdico e o rentável ao estético. E será sempre melhor do que qualquer James Bond, paradigmas da mediocridade comercial.