04 março 2009

O último mergulho


Mickey Rourke sempre foi melhor que a maioria dos seus companheiros de geração - Patrick Swayze, Rob Lowe, Ralph Machio, C. Thomas Howell, até mesmo melhor que Tom Cruise e Matt Dillon. Com algo de hipnótico e vulnerável, este belo brutamontes conseguia, por exemplo, ir muito bem no film noir revisitado de Body Heat (1981) e ser a única coisa a valer a pena no inenarrável Wild Orchid (1989), um dos piores filmes que vi. Tornou-se, depois, uma espécie de Klaus Kinski do cinema americano: más escolhas, cabotinice, estupidez. Hoje é um “broken down piece of meat”, feio e desfigurado mas com uma cara que conta mil e uma histórias sórdidas em cada ruga e cicatriz.

É dele muito do magnífico The Wrestler, filme que se poderia definir como “Cassavettes meets Dardenne meets Frank Capra on steroids”. Rourke traz tanto de si, do que dele conhecemos nos últimos 20 anos, que há uma força ímpar, uma “memória afectiva” que, adicionada ao magnetismo que sempre o caracterizou, faz com que tudo pareça verdadeiro, real, exponencialmente mais doloroso. É hábil a forma como Darren Aronofsky, no seu melhor filme até à data, joga com esta memória, começando o filme com Rourke de costas para a câmara, adiando o momento em que vemos o monstro em que se tornou o belo. Há, então, um efeito de simbiose: Rourke potencia The Wrestler e o filme alimenta-se dele; juntos, completam-se.


Mas parte significativa do mérito deste filme reside também em Aronofsky. Pondo de lado o barroco de Requiem for a Dream (2000) e The Fountain (2006), menos estilizado e com um estilo mais directo e movimentado de câmara à mão, Aronofsky filma perfeitamente esta história de uma queda. Não é só Rourke: o cenário à volta é propositadamente white trash, degradado, locais a sonhar com melhores dias sabendo que eles nunca virão. Todo o The Wrestler é um espectáculo descarnado, desde as magnificas cenas de luta, espectáculos grunhos para suburbanos pobres desenvolvidos em reles associações de bairro, ou o supermercado onde Randy “the Ram” Robinson trabalha, local ideal para os sonhos irem morrer. Aronofsky consegue, em suma, traçar brilhantemente o retrato de um meio, numa prova derradeira da maturidade encontrada.

Finalmente, dois aspectos a sublinhar:

i) noutros tempos, este seria um filme passado no pugilismo, desporto igualmente físico e de grande sacrifício pessoal, inclusivamente com uma maior tradição cinematográfica que o wrestling. A escolha deste desporto é não apenas uma questão temporal mas também relacionada com o meio pobre em que o filme é passado. Mas não se deixe de notar quão bem são mostrados os códigos do wrestling: por exemplo, no discurso final de “Ram” e veja-se o quanto, se lhe retirarmos o “pathos”, este poderia fazer parte de uma qualquer programa dos que passam na SIC Radical. Por isto, pelas cenas de luta e pelo tratamento dado às personagens, este é um filme eminentemente realista.
ii) A capacidade do argumento de, em cenas simples e concisas, mostrar as personagens e as suas motivações: a esta grande cena, junte-se o elogio do jovem wrestler Tommy Rotten (como quem diz “não te metas por onde me meti”) ou o momento em que, já no combate final, percebe que Marisa Tomei (outro excelente desempenho) se foi embora. Obra económica, então, nos meios como nos métodos.





The Wrestler é um filme tocante, dos mais comoventes que veremos este ano. O seu núcleo reside numa pergunta pertinente de resposta simples. A pergunta: o que se faz quando se perde tudo? A resposta: o mesmo que sempre se fez, até que chegue o mergulho final.



Já agora: serei o único a achar que isto, a julgar pelo que já se sabe, vai ser brutal?

4 comentários:

Anónimo disse...

Quero tirar as dúvidas quanto a este filme. Só espero não me desiludir como aconteceu com o Slumdog Millionaire!Adorei o Requiem, mas veremos...

Ursdens disse...

Dos melhores do ano! E sim, o filme vive, em grande parte do actor, mas também da forma crua como foi idealizado. As mais das vezes o "objectivo crú" tranforma-se no "subjectivo sensível". É bonito o despojo, acima de tudo no cinema, essa realidade que só e apenas vive de ilusão. Fazer ilusão para atingir o "ilusório real" é uma forma de expressão em que não imaginava o Sr. Aronofsky, mas pelos vistos aconteceu! :)

Cumprimentos cinéfilos!

Álvaro Martins disse...

Antes de mais parabéns pelo blog, não conhecia mas gostei bastante.
Em relação ao The Wrestler, é dos melhores de 2008, concordo. Mas não é o melhor do Aronofsky. O melhor é o Requiem For a Dream e para mim este The Wrestler, embora seja muito bom, é o pior dos 4 do realizador.
Isto é a minha opinião.

Abraços

Miguel Domingues disse...

Caro Álvaro,

antes de mais, obrigado pelo elogio.

De seguida, devo dizer que o Requiem é, por ora, o filme de Aronofsky que conheço menos, visto uma vez há já vários anos. Poderei em breve rectificar o que aqui escrevi.Quanto ao resto, sem a diferença de opinião, isto não tinha piada...