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01 setembro 2011

Argel Cidade Aberta




Encomendado, em 1966, pelo governo argelino, La Bataille d’Algiers permanece hoje como pedra de toque do cinema político europeu, especificamente, de um cinema de cariz marxista e revolucionário que entretanto desapareceu – nem Nanni Moretti, cineasta de esquerda se algum houve, pode merecer o epiteto de revolucionário. No retrato da tentativa de descolonização forçada pela Frente Nacional de Libertação (FLN) entre 1954 e 1957, mal-sucedida mas percursora da revolução que se deu em 1962, o que se observa é a crença marxista de que a História se desenrola inexorávelmente no sentido da libertação e igualdade. Na estrutura episódica do filme, progressivamente mais violento, na pontuação do filme pela música de Ennio Morricone, com motivos recorrentes a sublinharem a carnificina e nos sucessivos planos do luto feito pelas mulheres argelinas, a sensação é a de uma maré imparável de acontecimentos a redundarem na libertação, que o espectador sabia já ter acontecido quatro anos antes da saída do filme.

Quer o realizador Gillo Pontecorvo quer o argumentista Franco Solinas eram membros do Partido Comunista Italiano e, como marxistas, sabiam também que uma estética equivale a uma ética. A ideia inicial de ter Paul Newman como um jornalista francês ex-combatente na Indochina e que reporta o crescendo da luta dos argelinos pela independência foi posta de parte, bem como o argumento comissionado por membros da FLN, considerado pelo realizador como demasiado propagandístico. La Bataille d’Algiers acabou por ser algo de estranho e incomum, para os pressupostos do filme político revolucionário: uma crónica tanto da batalha dos colonizados quanto da concomitante reacção dos colonizadores, mas estirpando qualquer pathos ou qualquer agit-prop, como que dizendo que se a ética já pressupõe quer a inevitabilidade da libertação quer a reacção de colonizados, é desnecessário sublinhar emocionalmente qualquer destes factores e antes vê-los como realidades inevitáveis no rumo da História.



Assim sendo, o retrato é o do conflito em toda a sua brutalidade, potenciado pelas escolhas estéticas de Pontecorvo. Reminiscente tanto da Nouvelle Vague francesa na sua urgência e febrilidade, quanto do neo-realismo italiano na sua preferência por intérpretes não-profissionais (somente o coronel Mathieu é interpreteado por um actor profissional, Jean Martin; Saadi Yassef, lider da FLN, participa no filme como o líder El-hadi Jaffar, versão ficcionada de si próprio) e nos cenários reais, quer na Argel colonizada quer nas regiões guetizadas do Casbah, onde viviam a maior parte dos autóctones, no que se junta a câmara à mão a fotografia granulada e as técnicas como o zoom constante, da responsabilidade do director de fotografia Marcello Gatti, que lhe dão o ar documental que contribui para a sua enorme urgência e febrilidade. Adicionalmente, o desenrolar dos episódios foca as atrocidades de ambos os lados, desde os atentados indiscriminados contra civis por parte da FLN até às cenas gráficas de tortura por parte das tropas francesas, arriscando até por caminhos ambíguos – veja-se o extraordinário discurso do coronel Mathieu afirmando, a meio termo entre a amoralidade e o pragmatismo, que o cerne da questão é que os argelinos querem a independência e os franceses o domínio colonial e tudo farão para a manter, e que isso incluirá necessáriamente o uso de todos os métodos à disposição). Apesar de, ideologicamente, Pontecorvo e Solinas estarem claramente do lado dos independentistas, o olhar é equilibrado, crú, informativo, até próximo da objectividade documental, para o que muito contribui, por exemplo, a influência de Roma Cidade Aberta (Roberto Rosselini, 1945) no modo como os acontecimentos se parecem desenrolar à nossa frente. Não é, afinal, coincidência que tenha sido incluído no filme um aviso inicial de que nenhuma imagem de newsreel da época foi usada na sua feitura, porque para quem vê, poderia perfeitamente ter sido.

É certo que há aspectos problemáticos no filme: os argelinos são sempre mais humanizados que os franceses, mormente os combatentes gauleses, que aparecem sempre como linhas na imagem e sem nunca terem direito a um grande plano, um pouco como fez Eisenstein na sequência da escadaria de Odessa n’ O Couraçado Potemkin (1927) ; que La Bataille d’Algiers parte de um princípio ideológico bem firmado e que poderá desagradar, por esse motivo, a espectadores do lado oposto da barricada; e que o filme é um produto do seu tempo, retratando, por exemplo, a imposição das leis islâmicas como necessário ao estabelecimento de uma identidade argelina e não como um factor problemático, sendo anacrónico face a questões como o laicismo social ou o multiculturalismo. Porém, parece claro que na sua energia, nas técnicas empregadas e no seu lado documental e informativo de um conflito hoje considerado pouco importante, La Bataille d’ Algiers representa o apogeu do cinema político de esquerda e uma poderosa obra-prima do cinema mundial dos anos 60 do século XX.

20 março 2011

Ford pós-Rosa Parks



Era claro, desde o primeiro momento, que John Ford tinha um grande filme de tribunal em si. Pensemos em Young Mr Lincoln (1939) e naquelas belíssimas sequências em que o advogado Abraham mostra o seu talento e onde o cineasta ensaia tanto a comédia quanto o trabalho em "huis clos", tratando tão bem os espaços fechados quanto trata os “wide open spaces” do Oeste. Foi apenas, no entanto, com o crepuscular Sargeant Rutledge (1960) que Ford levou até ao fim essa propensão, iniciando, de caminho, os ajustes de contas que caracterizaram o final da sua carreira.

Sargeant Rutledge faz pelos afro-americanos, no seu cinema figuras menores, tratadas com uma tolerância ainda com o seu quê de racismo ou como figuras dignas de respeito mas de menor importância narrativa, aquilo que Cheyenne Autumn (1964) viria a fazer pelos nativos. Neste filme, Ford situa a acção, cronologicamente, numa época pós-escravatura (muito depois da conquista do Oeste), onde as cartas de alforria são abundantes e os negros têm a sua própria brigada na cavalaria norte-americana. Má consciência, talvez, a que leva a que esta homenagem seja feita apenas no ocaso do género e de uma era, mas que essa homenagem exista é é um excelente sinal de uma carreira (a de Ford) bem menos ideologicamente formatada do que se suporia. Por último, nesta questão, refira-se que a homenagem ao papel dos negros no Oeste se concatena com a impressionante figura Woody Strode, aqui retratado, no papel da personagem-título, como a epítome do brio, da galanteria e da competência militares, no melhor dos papéis que o cineasta deu a este grande actor. De resto, de notar também a “coda“ do filme, com os soldados a marchar perfeitamente enquadrados no Monument Valley e o quanto essa atenção particular é uma muito eficaz forma de inscrição.

Se é como homenagem ao papel dos negros na cavalaria que Sargeant Rutledge ganha a sua relevância, é enquanto filme de tribunal que atinge a excelência. Porque, parafraseando o célebre adágio classicista, longe de achar que há apenas uma forma de filmar uma sala de tribunal, o cineasta usa e abusa da estilização formal, da coreografia e, superlativamente, da profundidade de campo. Há um constante jogo entre as diversas câmaras, numa montagem ritmada, mostrando de diversos ângulos os procedimentos e que, através da posição de cada actor no plano, revelam a posição da personagem na relação de forças do mesmo. Simultaneamente, quando estão para ser mostrados os flashbacks onde o espectador toma contacto com os factos, há um enorme trabalho de iluminação, cuja modelação progressiva como que cria um espaço intermédio entre o presente e o passado da narrativa. Semelhante estilização visual, juntamente com a estilização dos cenários, mais artificiais do que nunca e procurando menos o realismo do que a “ideia” do Velho Oeste, colocam Sargeant Rutledge para lá do classicismo da obra do autor, ou seja, como um dos momentos iniciais da fase pós-clássica da obra de John Ford, que culminaria nos seguintes Two Rode Together (1961) e The Man Who Shoot Liberty Valance (1962).

Numa altura em que o western norte-americano definhava e todo o cinema americano era acusado (frequentemente com razão) de se ter deixado ultrapassar pelos tempos, Sargeant Rutledge mostra (como The Grapes of Wrath o havia feito no seu tempo) um realizador em sintonia com a sua época. Afinal, este é também um filme sobre o “separate but equal”, sobre as promessas por cumprir depois do fim da escravatura e do longo caminho que os negros tiveram a percorrer depois de Abraham Lincoln. Filme pós-Rosa Park, é também uma prova de que, a espaços, soube perfeitamente medir o pulso ao seu tempo e que o seu classicismo não era, pelo menos no final da sua carreira, marca de reaccionarismo ou alheamento.