04 dezembro 2009

Romance Perigoso


O dia 13 de Setembro de 2008 provocou terramotos nunca vistos depois de 1929. Aconteceu mesmo, depois de muitos avisos ignorados. Hoje, parece já estar tudo normal (exceptuando Bernie Madoff, nenhum dos prevaricadores foi preso, os astronómicos bónus bancários já estão a ser pagos, as bolsas já geram outra vez dinheiro e sobrou apenas uma crise económica que não belisca quem recebeu pára-quedas dourados para arruinar a economia mundial) mas Michael Moore já andava de olho na situação antes do rebentamento. E com o resultante Capitalism: A Love Story assina o seu melhor filme desde a estreia com Roger and Me (1989).

Iniciando o filme com uma óptima montagem comparando a situação dos EUA à queda do Império Romano, o filme avança por uma visão do que era o ideal do capitalismo americano no pós-guerra imediato, até à ofensiva que as empresas norte-americanas fizeram aos direitos laborais e à ocupação de cargos governamentais que redundaram no aumento da desigualdade através do corte de impostos para a minoria abastada. A parte do filme de pendor informativo culmina com o fulminar do sistema em 2008 e é, diga-se de passagem, a parte mais útil do filme. Num contexto mediático dominado pela direita (embora eles digam que não) é com clareza, com números, gráficos de fácil compreensão e numerosos exemplos práticos que Moore explana a evolução da economia mundial e as condições que deram origem à débacle. Este é, então, um filme de rigoroso e relevante pendor informativo e contextualizador, fazendo o trabalho necessário mas que os média mainstream se recusaram, por motivos ideológicos e empresariais, a fazer ao longo dos últimos 30 anos.

Na segunda parte, são dados exemplos de como a crise afectou pessoas concretas e de como esta pode ser debelada. Parte mais interessante do ponto de vista documental, dando uma visão humana dos efeitos e das saídas da crise, é aquele em que os casos são do mais caricatural, desde o economista formado na Ivy League que não consegue explicar o que são derivativos, demonstrando na prática o desnorte do sistema económico ao aviltante momento em que são denunciados os seguros de vida que as empresas fazem aos empregados, ficando com a compensação quando estes morrem. É talvez o momento mais explorador do filme (são visíveis as lágrimas nas faces de alguns dos entrevistados), mas também aquele que retira com mais precisão a economia dos manuais e dos escritórios corporativos. Também é aqui que exemplos de empresas em cooperativa, com partilha simultânea de sacríficio e de lucro, são apontados como possível solução.

Na última, talvez a mais panfletária, Moore apela à desobediência civil, dando exemplos de casos em que, na sua óptica, esta se encontra já a começar. Seria a parte que eventualmente poderia ser acusada de marxista para cima, mas que ganha uma curiosa dimensão quando comparada com o momento inicial: afinal de contas, em nenhum momento se pede um paradigma “esquerdista”, mas sim um regresso ao momento em que o capitalismo se sedimentou e que, na versão do realizador, construiu a América. Este é, então, o filme em que fica claro que a mudança dirige-se, então, no sentido da ética e da partilha entretanto perdidas e não dos amanhãs que cantam.

O que causará decerto muita confusão a muita gente. Mas é o que dá profundidade e conteúdo ao filme. Enquanto muitos se divertiam, ao longo dos anos, a questionar o patriotismo de Moore e a apelidá-lo de leninista de mil maneiras veladas, o que ele aqui mostra é o seu amor pela América, bem como a noção de que, afinal, nem o país se esgota nas corporações nem a magnífica cidade de Nova Iorque acaba em Wall Street. No limite, Michael Moore está mais próximo da Star Spangled Banner que de uma foice e de um martelo e isso causará muita surpresa. A quem andou distraído, claro.

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