28 fevereiro 2012

As Tears Go By (Wong Kar-Wai, 1988)


As Tears Go By, primeira longa-metragem de Wong Kar-Wai, é um objecto extremamente interessante, pela forma como já contém os elementos estéticos que viriam a compor a obra do realizador. Ainda sem o habitual director de fotografia Christopher Doyle, esta assumida revisão oriental de Mean Streets (19739 de Martin Scorsese tem desde logo o lado ultra-estilizado associado ao cineasta, com a profusão de filtros de côr, câmaras lentas e efeitos visuais dos mais variados, num todo que inclusivamente arrisca o kitsch para atingir o romântico (não apenas na extraordinária cena do beijo mas também na versão oriental de "Take My Breath Away" dos Berlin). Se ainda não chega aos melhores momentos da carreira de Wong é porque tudo aqui ainda se encontra num estado não propriamente embrionário, mas num estado caótico, virtuoso mas ainda pouco sofisticado, como num big bang estético. Há quem fale em John Woo como influência para este filme, sobretudo pela intriga de gangsters, mas o que aqui está é já Wong Kar-Wai, ainda para mais com uma energia, uma força e um entusiasmo de um jovem a pôr a carne toda no assador do seu primeiro filme. Pela beleza das suas imagens, pela sua competência narrativa e pelo seu romantismo não apologético, é uma bela estreia.


05 fevereiro 2012

02 fevereiro 2012

Retrato dos artistas enquanto miúdos


Just Kids é um acto de generosidade e o último presente dado por Patti Smith a Robert Mapplethorpe: o retrato do(s) artista(s) enquanto miúdos, as pessoas em busca dos artistas que vivem dentro deles. O que a poeta/cantora faz é apresentar o fotógrafo a uma nova geração e mostrá-lo, numa luz mais intima, a todos os conhecedores, perpetuando a sua memória como prova de amor. Ao mesmo tempo, cria também um fresco de uma época, um livro poético sobre a

comunidade artistica nova-iorquina dos anos 60 e 70.


Patti Smith e Robert Mapplethorpe conhecem-se em Nova iorque no final dos anos 60, quando Smith acaba de chegar. Cedo se tornam inseparáveis, ele um rapaz pacato de de uma família católica, os olhos verdes e a indumentária extravagante, ela a fugir de uma vida sem futuro enquanto trabalhadora fabril e sonhando com uma carreira na poesia. Ele de Wharhol e autor de colagens, ela a escrever esboços de poemas e a desenhar profusamente. Até que um estabilizasse na musica e outro na fotografia, passar-se-ia quase uma década, povoada pelas mais importantes figuras do seu tempo. A viver no Chelsea hotel, ambos convivem com figuras como William Burroghs (a quem Patti chamava um táxi todas as noites), Allen Ginsberg (que confunde Patti com um prospectivo engate masculino) e Janis Joplin, que transmite a Smith a sua imensa solidão. São também frequentadores do famoso Max’s, onde a troupe Wharholiana, incluindo as musas Candy Darling (“Candy says...”) e Edie Sedgewick, se reúne. São tempos sem dinheiro, em que um fica a porta dos museus por não poderem pagar dois bilhetes e o outro entra, a exposição e relata-a ao parceiro, batendo à porta do mundo das artes que se faz dificl.


Mas estes são, sobretudo, tempos de definição pessoal. Para Patti, na sua escrita e no caminho que percorre até à música. Para Robert, no percurso em direcção à fotografia mas, mormente, na sua definição sexual, nomeadamente no assumir da homossexualidade, dificultada por uma educação católica restrita. No momento em que Robert finalmente encontra um parceiro no milionário Sam Wagstaff, já Patti teve relacionamentos com o dramaturgo Sam Shepherd e com Allen Lanier, teclista dos Blue Oyster Cult, antes de casar com Fred Sonic Smith, guitarrista dos MC5. É nessa altura que podem ambos seguir em frente, estando cumprido o voto reciproco de se acompanharem até estarem ambos em posições confortáveis e estáveis. É este o fulcro de Just Kids: duas pessoas fundamentais na formação um do outro, que partilharam uma época histórica imprescindível do século XX e que, até à morte de Robert Mapplethorpe, de SIDA, em 1989, mantiveram o tipo de ligação que acontece uma vez na vida.


Se a escrita de Smith não deixa de lado o aspecto poético, Just Kids é também um livro solido, de progressão ritmada e que, mais do que a nostalgia por uma época vivida, se foca num poder evocativo que mergulha o leitor num contexto de criatividade mirambolante misturada com uma crónica falta de dinheiro. Uma recordação tranquila, evocando toda a beleza da relação entre os protagonistas, que possui a veracidade de uma biografia e o cuidado estético de um romance. Tanto quanto um grande livro rock n roll, este livro está, na carreira de Patti Smith, ao nível dos álbuns Horses (1975) e Easter (1978) como pedra-de-toque de um percurso singularíssimo.