10 maio 2012

Shaun of the Dead (Edgar Wright, 2004)


Os zombies, cinematograficamente falando, são úteis enquanto tábuas rasas onde cada cineasta pode inscrever o que quiser - veja-se o exemplo de George A Romero, que há 40 anos projecta neles não apenas as convulsões políticas da América mas também uma visão socialista do proletariado a revoltar-se. O cineasta Edgar Wright e o argumentista e actor Simon Pegg não vão por aí, mas não deixam de ter uma visão para as criaturas: desde o princípio do filme que os zombies são equiparados com os protagonistas, jovens adultos incapazes de saber por onde evoluir, presos ao mcemprego, à visita diária ao pub e aos jogos de computador, bem como às multidões anestesiadas a caminho do trabalho. O magnífico Shaun of the Dead, simultaneamente comédia, filme de terror e história de iniciação à idade adulta é, no fundo, o ilustrar do acordar de uma personagem, da sua definição do que é realmente importante e da passagem da modorra à acção, eventos onde a presença dos zombies é um mero catalisador. O Shaun que vemos no final do filme, senhor de si, já nada tem do procrastinador nato do início. Depois de já ter falado aqui do posterior Hot Fuzz (2007), Shaun of the Dead é uma confirmação superlativa, nomeadamente na forma como a comédia é adensada de substância e encenada com imensa inteligência: exemplo disso mesmo é o primeiro terço do filme, onde o herói está tão preocupado com o descalabro da sua vida de conforto e mediania que nem repara nos sinais de crise que estão à volta. Para não falar de alguns gags verdadeiramente deliciosos (o da escolha de qual o disco de Prince a atirar aos zombies é genial) e até de um curioso sentido coreográfico nas sequências de acção (muito boa a sequência ao som de "Don't Stop Me Now" dos Queen). Por todos estes motivos  e por muitos, muitos mais que não cabem neste texto, Shaun of the Dead é um grande filme e a melhor comédia que vi em muitos, muitos anos.  

07 maio 2012

IndieLisboa (balanço)

O meu top 5 de filmes vistos neste IndieLisboa:

1- Into the Abyss de Werner Herzog
2- Alps de Yorgos Lanthimos ex-aequo com Take Shelter de Jeff Nichols
4- Everyone in Our Family de Radu Jude
5- Michael de Markus Schleinzer

Foi, dos filmes que vi, um festival equilibrado, com filmes de qualidade e uma montra digna e versátil do melhor cinema que se fez nos últimos 12 meses pelo mundo fora.

A blogoesfera cinematográfica nacional fez-se representar por diversos bloggers e o Luís Mendonça optou por  compilar um top blogoesférico dos filmes exibidos no Indie. O resultado pode ser visto no Cinedrio.

06 maio 2012

Indiegências 2012 (último)


Em parceria com a Take


Take Shelter de Jeff Nichols: certamente um dos grandes filmes americanos a ser visto em Portugal em 2012, Take Shelter é um filme de confirmações: de Jeff Nichols como um dos cineastas americanos mais interessantes da actualidade; de Michael Shannon e de Jessica Chastain como actores excepcionais; e de uma ominosidade, de um mal-estar generalizado, que percorre a sociedade americana, sobretudo nas suas instâncias mais proletárias. Tenso e perturbante, é uma vitória do festival tê-lo mostrado e esperamos que a sua estreia em sala lhe dê a atenção merecida.


Alps de Yorgos Lanthimos: Depois do belíssimo Canino, Alps é uma evolução na continuidade, um expandir do mesmo universo malsão, violento e surreal que Lanthimos parece privilegiar. Filme sobre duplos, é uma visão sobre um país em crise de identidade e à procura de uma realidade paralela que lhe permita fugir de si próprio. Pela sua vertente social metafórica, pela sua claustrófobia visual e pela coerência estética, pode estar aqui um equivalente grego à obra dos irmãos Dardenne.


Terri de Azazel Jacobs: há filmes que, para o bem e para o mal, são simpáticos e pouco mais. Terri é bem filmado, tem personagens adolescentes pelas quais é fácil interessarmo-nos e os actores são perfeitamente adequados às suas personagens. Falta apenas um golpe de asa que o eleve para lá dessa simpatia, o mesmo ponto que quase ultrapassa na sequência da noite que os jovens passam juntos. Há pior, mas, pelo menos a uma primeira visão, nada tem de superlativo.


Meet the Fokkens de Rob Schroeder e Gabrielle Provaas: até ao penúltimo dia do festival o principal candidato ao prémio do público e que acabou por ser premiado com a exibição pela RTP2, este é um documentário doce sobre duas gémeas septuagenárias prostitutas no “red light district” de Amsterdão, uma já reformada, outra ainda em actividade. Cheias de vida, apesar de todas as dificuldades a que foram sujeitas, as protagonistas dão-nos um um retrato doce de um meio conhecido mais pela promiscuidade e pela libertinagem. A rever quando passar na tv, quando mais não seja pelo lado revigorante da história.


Michael de Markus Schleinzer: Filme misterioso e com uma solidez de betão, o seu lado frontal e afirmativo num caso tão violento de sequestro e pedofilia escandalizou muitos do que o viram. Não é, de maneira nenhuma, um filme no qual o espectador se possa infiltrar, há sempre uma muralha entre as situações e quem vê, mas os momentos em que se mostra mais fascinante (aquele em que vemos a volúpia estampada nos olhos do pedófilo deitado na cama do rapaz ou a tentativa de rapto falhada de outra criança) são poderosos. Mais um bom filme num festival que os teve em bom número.    


E pronto, este já foi. Apenas um agradecimento especial ao staff da videoteca, onde vi a maior parte dos filmes e que muito jeito me deu na organização do meu horário. Até para o ano. 

03 maio 2012

Indiegências 2012 (2)


Em parceria com a Take 


Le Skylab de Julie Delpy – Quarto filme da actriz e argumentista Julie Delpy como realizadora, Le Skylab é um mimoso filme coral sobre a família e sobre o tempo-sem-tempo das férias em família, nomeadamente o fim-de-semana de aniversário da matriarca. Há cenas de todos os tipo (cómicas, tristes, amorosas e perturbantes), o olhar da realizadora é seguro e embora nada tenha de transcendente, já vimos muito, muito, muito pior. A ver, quando estrear em sala.
  

Into the abyss de Werner Herzog – Até ao momento, o melhor filme que vimos no festival. O olhar frio, entomológico do alemão debruça-se aqui sobre um crime horrendo e, descobrimos aqui, sem sentido cometido por dois jovens texanos em 2001 e desenvolve uma leitura sobre a pena de morte, olhar esse que mantém uma posição moral e humanista mesmo que lúcida acerca das suas personagens – como Herzog afirma, num momento chave do filme, ao criminoso que é executado, o facto de achar que seres humanos não devem condenar outros à morte, não faz com que goste dele e é nesta corda-bamba que o filme se gere. Destaque também para as declarações, concomitantes e comoventes, do pároco e do guarda da prisão. A estrear em sala e a não perder de forma alguma.  


Bestiaire de Denis Coté – Pode haver muito mérito no documentário do canadiano Denis Coté, mas sinceramente não conseguimos descortinar nada nele para além de 72 minutos de imagens avulsas de animais. Enfadonho, parece, pela sua falta de sentido e de propósito, durar horas infindáveis, num pedantismo de achar que uma câmara fixa torna interessante qualquer imagem que se ponha à frente de uma câmara fixa é interessante. Como prova de que não é esse o caso, teremos sempre este excruciante filme.   


Everyone in the Family de Radu Jude– Grande surpresa! O filme do romeno Radu Jude é um belíssimo retrato da gota que faz transbordar o copo de um homem em queda, que perdeu a filha num processo de divórcio feio, que vive num apartamento espeluncoso e que não tem respeito do pai, que o vê como um cobarde. Não vamos aqui revelar o jeu de massacre a que assistimos (basta dizer que é uma espécie de Dog Day Afternoon familiar), para não tirar o prazer ao espectador, mas podemos afirmar que não só o argumento é bem trabalhado no acumular da tensão e na gestão das situações como é filmado com a mesma crueza e sentido espacial a que o novo cinema romeno nos habituou. Não fazia mal nenhum que fosse premiado e que estreasse em sala.

02 maio 2012

Fernando Lopes, definitivamente


Ia nervoso, claro que ia. Na altura, tinha conhecido pouca gente que admirava – e ainda não conheci. Na hora marcada, ao Saldanha, toco à porta do apartamento que me havia indicado via telefone e que mais tarde viria a reconhecer como um dos cenários de Os Sorrisos do Destino. Entro, cumprimento-o e pergunta-me se quero beber alguma coisa. O mais educadamente que consegui – sou muito associal e às vezes é-me difícil saber o que fazer – digo que beberei se for para o acompanhar. Explica-me que vai fazer um kir, uma coisa francesa, vinho branco com groselha. Provei e estava divinal. De caminho, ainda antes da entrevista, como acalentava o sonho de entrevistar todos os maiores cineastas portugueses para a Take, pergunto-lhe se porventura tem o contacto de Paulo Rocha. Ele diz-me que infelizmente não mas que sabe que Rocha está a filmar e, pior, estava bastante doente. A ironia é que Rocha ainda está vivo e ele morreu hoje, mais uma vítima desse filho da puta que é o cancro.

A entrevista corre bem, três horas que passam a correr, entre o fumo dos muitos cigarros que fumámos os dois, como quem sabe quão bem um cigarro faz as vezes de catalisador do diálogo. O único momento de tensão foi grando confessei que achava A Crónica dos Bons Malandros um filme datado, algo de que ele manifestamente discordava. No final, como notou que me faltavam alguns conhecimentos da história do cinema português, vai à prateleira e tira um exemplar do livro Cinema Português: Anos Gulbenkian, escrito por João Bénard da Costa e publicado pela Fundação em 2007. Encavacado com a generosidade, digo que só aceito se ele mo autografar. O livro, que tenho neste momento à minha frente, diz

Para o Miguel,

Foi uma conversa estimulante. Um abraço (de amizade que espero perdure) do

F. Lopes

À saída do apartamento, passo a timidez para trás e lanço um sentido “Foi uma honra”. Fernando Lopes dá-me uma palmadinha no rosto, abraça-me e eu, de novo encavacado, aceito o abraço mas não o retribuo, que a timidez que ainda resiste não mo permite. Hoje, quando estava no Indie e a Sandra, me manda um sms a informar da morte dele, só penso em como deveria ter retribuído o abraço.  

01 maio 2012

Indiegências 2012 (1)

Em parceria com a Take


Inni de Vincent Morrisset: Este bem conseguido filme-concerto que documenta um espectáculo dos Sigur Rós em Londres opta por, em vez de tentar mostrar realistacamente o que é um concerto dos islandeses, estilizar, num preto e branco desfocado e nos ângulos de câmara claustrofóbicos, o espectáculo e mostrar que a música da banda, ao vivo bem mais distorcida e violenta do que em disco, sobrevive perfeitamente em vários contextos. Um bom ponto de partida para a obra de um dos mais idiossincráticos grupos da década.


Rafa de João Salaviza: Uma curta-metragem com alma de longa, que podia perfeitamente ser mais extensa do que é, mostrando como a personagem-título tenta resgatar a mãe da prisão depois de um acidente de viação. Tudo é excelente em Salaviza: o universo de isolamento e alienação bem definido, a virtuosa gestão dos tempos, a noção de narrativa que nunca se perde, a gramática virtuosa e já bem definida. Nem queremos imaginar a pressão que estará sobre Salaviza depois de uma Palma e de um Urso de Ouro, mas também acreditamos que saberá contorná-la. Um grande cineasta em potencial.


Nana de Valérie Massadian: A ser exibido no mercado nacional com a curta-metragem Rafa de João Salaviza, é um filme de escopo propositadamente pequeno, mostrando, ao longo de pouco mais de uma hora, a vida de uma criança abandonada em cenário de Verão campestre. A protagonista Kelyna Lecomte é deliciosa e o filme tem um rigor fotográfico pronunciado, cada plano rigorosamente construído pela mão da realizadora, ex-fotógrafa. É verdade que é um objecto sem grande golpe de asa, inclusivamente inferior à curta-metragem que o complementará, mais um filme que chega, com competência, de um ponto ao outro, mais ainda assim digno de nota.


 4:44 The Last Day on Earth de Abel Ferrara: A primeira desilusão do festival. O filme de Ferrara, que opta por encenar o fim do mundo a partir de um apartamento em Nova-Iorque, é também um filme sobre as limitações e as consequências da mediação tecnológica constante e de como esta não consegue, em situações limite, ultrapassar as limitações do ser humano, contribuindo para elas com uma sensação de impotência exponenciada por essa mediação, é também um filme com uma encenação demasiado arty, longe da energia que caracteriza os melhores Ferrara. Continuamos a preferir os filmes mafiosos, vampírico e de vão de escada que o italo-americano já fez. Aqui, para o bem e para o mal, está demasiado próximo de Hal Hartley.