20 julho 2012

Magic Mike (Steven Soderbergh, 2012)


Magic Mike, apesar de ter sido encomendado a Steven Soderbergh pelo actor e produtor Channing Tatum, mantém uma elevada coerência dentro da obra do realizador. Como o anterior The Girlfriend Experience, estamos perante um filme que se quer como documento da crise que, desde 2008, assola o mundo ocidental. Duas partes de uma mesma moeda, estes filmes lidam com o sexo como comodidade e como refúgio económico no meio da crise, enquanto os sonhos e as ambições são postas de lado (definitivamente?). Ambos os filmes são sobre o sexo enquanto fantasia, enquanto escape das dificuldades do mundo, ela como a namorada contratada, ele como fantasia de macho para meninas e senhoras em férias. Mais fluído e menos fragmentado que o seu duplo, Magic Mike joga também a sua relevância no facto de ser, cronologicamente, uma continuação de The Girlfriend Experience: se aquele se situava no início da crise, pouco depois do pânico em Wall Street e vendo a reacção deste mundo ao meltdown, este filme situa-se no presente, quando a crise que nos diziam ser passageira ainda perdura na economia real - a cena chave é claramente quando o empréstimo bancário é recusado a Tatum: três noites por semana pode ser o rei, no mundo real ninguém quer saber dele para nada, nem o banco nem a fuck buddy que só o quer bonito e calado. Assim, a crise aparece não apenas como um factor material mas também, ao não lhe permitir cumprir os seus sonhos, como um obstáculo à sua afirmação pessoal.

Se, então, sociologicamente, Magic Mike é um filme importante pelo modo como mede o pulso ao momento actual, por que não sou adepto incondicional do filme? Essencialmente, nem sempre gosto das opções estéticas tomadas por Soderbergh, nem neste filme nem em The Girlfriend Experience, de que este filme é um duplo não apenas temático mas também formal. Onde o anterior era filmado em tons de vermelho e azul, este é um filme predominantemente em tons (demasiado) saturados de amarelo e pastel (com a excepção das sequências no clube, em azul metalizado) que, se dão ao filme um tom condizente com a sua localização geográfica, na Florida, tornam-no algo enjoativo visualmente. Também desgosto das escolhas de objectivas que o cineasta faz, que dão, em muitas cenas, backgrounds desfocados ou a frente dos planos demasiado escura. Nada que impeça este filme de ser, sobretudo, uma importante visão sobre o momento actual, económica e humanamente, confirmando a relevância presente da carreira de Steven Soderbergh.   

17 julho 2012

O Fim da Minha Vida Enquanto Festivaleiro


Durante anos dizia, e acreditava, que só aguentava toda a trampa que um gajo tem de aguentar durante o ano por causa dos festivais de Verão. Uma ou duas vezes por ano, em Julho ou em Agosto, passava um longo dia de Verão a ouvir boa musica, a beber cerveja fresca e a banhar-me em vento e sol. Vi coisas magníficas ao vivo, confirmei grandes artistas e também tive a minha quota parte de desilusões. Contudo, tendo ido a dois festivais de 3 dias neste Verão (incluindo o Primavera Sound, no Porto, no meu primeiro festival fora da área metropolitana de Lisboa), creio estar no fim da linha no que toca aos festivais.
Sempre achei que gostava dos festivais por tudo o que neles havia de mau - ou por achar que essas dificuldades faziam parte da mística dos eventos. Hoje em dia,  não aguento essas mesmas coisas. A multidão  não me parece uma comunidade ou uma reunião das tribos, mas uma chatice insuportável; a cerveja e a comida  não me parecem caras, parecem-me exorbitantes; os grunhos que vão buscar cerveja para eles e para os amigos e pisam toda a gente no regresso as filas da frente   me parecem merecedores de um soco nas trombas, assim como aquele grupinho que não parava de conversar durante os Radiohead no Optimus Alive merecia ser corrido à mangueirada; as casas de banho  não me parecem apenas apenas sujas, parecem-me viveiros de infecções daquelas que aterrorizam qualquer antibiótico; e nem me façam falar da chatice que e passar de um palco para o outro, aos encontrões e tropeções numa corrente impenetrável
Apesar de tudo, mesmo no Optimus Alive deste ano ainda houve dois momentos extra-musicais memoráveis: o pão com chouriço ainda quente comido a ouvir os Cure interpretar "The Lovecats" ou o por-do-sol ameno que, sentado no chão do passeio marítimo de Algés, me batia na face ao som de "Naive", a única boa canção que os medíocres The Kooks alguma vez escreverãoNão posso dizer que seja a ultima vez que irei a um festival, tudo dependera dos nomes em cartaz (se os Smiths se reunissem, até a um festival no Tibete eu ia -los) , mas a partir de agora darei prioridade a concertos de sala onde possa ver a face dos artistas e onde não tenha que levar com cinco bandas fracas antes de ver aquelas que eu quero ou de deixar o carro (literalmente) a 3 km de distância e ter de andar 45 minutos depois dos concertos para ir para casa. No futuro, então, festivais  por causa de bandas que me sejam muito, mas mesmo muito queridas. Obrigado, então, às bandas que vi em festivais ao longo destes 14 anos - estreei-me no SBSR realizado dentro da Expo 98: Morphine (a poucos dias da prematura morte em palco de Mark Sandman), Franz Frdinand (no primeiro festival que vi com a minha mulher) , Editors, The National, Gogol Bordello, Vampire Weekend, The Strokes, Arcade Fire, Stone Roses, James, The Cure, Suede, Flaming Lips, Beach House, Radiohead e muitos outros. Pode ser que nos vejamos num Pavilhão Atlântico, num Coliseu, num Campo Pequeno ou numa Aula Magna.    

03 julho 2012

Faustrecht der Freiheit (Rainer Werner Fassbinder, 1975)



As histórias de casais onde um ama demais e se sacrifica por um escroque explorador são abundantes na tradição ocidental. Em 1975, Rainer Werner Fassbinder transformou-as com o seu 23º (!!) filme, Faustrecht der Freiheit, ao ser capaz de colocar uma dessas histórias no meio homossexual, que ainda para mais é retratado com realismo: há drag queens, saunas e soirées, mas sobretudo a surpresa deste não ser um panegírico gay, mas antes um filme onde os homossexuais são retratados com os mesmos defeitos que os heterossexuais, numa formulação mais literal que propagandística. Fox, o protagonista, jovem homossexual proletário e intelectualmente limitado, trabalhador de uma deprimente feira ambulante e que acaba por ter um golpe de azar quando lhe saem 500 mil marcos na lotaria e que se passa a dar com a elite da comunidade homossexual de Munique é, então, vítima do amor que sente por Eugen, ao ser limitado, controlado e expropriado pelo objecto do seu amor, que nunca o deixa evoluir. Porém, Fassbinder tem a inteligência de dispensar o fait-divers e de inclusivamente dar um lado quase ontológico à sua narrativa: o que está em causa é também a forma como a sociedade capitalista, mesmo uma social-democracia à época evoluída como a Alemanha, é capaz de maltratar e espoliar os seus elementos proletários, não apenas espoliando-os mas também impedindo-os de se exprimirem na sua individualidade (é Fox, simbolicamente interpretado pelo próprio Fassbinder, que diz que só quer ser ele próprio e é belíssima a sequência do jantar com os pais de Eugen, onde todas as atitudes do protagonista são julgadas pelo crivo da posição social da família do seu amante). Vejamos também o seu pessimismo latente, senão atente-se na atitude das crianças que perpetram o último roubo contra o herói, símbolo de um futuro que não mudará. Filme subversivo no conteúdo mas não nas formas, competentemente clássicas e lineares, dá-nos porém algumas sequências superlativas – a melhor de todas a sequência final, a única em que o cineasta germânico opta por estilizar verdadeiramente e mostrar Fox na sua verdadeira luz: uma pietà gay e proletária que não encontra sequer mãe que a chore.     

28 junho 2012

Revisão da Matéria Dada - VI

2 Days in Paris de Julie Delpy - Como o recente Le Skylab, o filme anterior da actriz e realizadora francesa colmata os seus defeitos com uma dose notável de charme que o torna encantador. Bem-humorada crónica de umas férias parisienses de uma francesa radicada em nova-iorque e do seu namorado americano, é uma comédia sobre as diferenças culturais nas relações amorosas e, no limite, sobre as dificuldades de um homem em lidar com o passado sexual da sua companheira. Nada de novo, mas enquanto dura entretém e diverte.

O Ditador de Larry Charles - O pior filme que vi este ano em sala. Se os anteriores Borat e Bruno tinham o lado relevante de sátira social, este filme tenta ter um lado de sátira política ao totalitarismo mas cedo se transforma numa sucessão de piadolas entre o sexual e o escatológico. Também é, dos filmes feitos até agora a partir de personagens de Sacha Baron Cohen o menos anárquico e o mais controlado. A esquecer, depressa.

A Queda de Oliver Hischbiegel - Ao contrário de Pier Paolo Pasolini, que encena o fim do fascismo num clima de terror absoluto e dantesco, o cineasta alemão prefere antes a reconstituição histórica e o ambiente de telefilme, sem qualquer espessura de personagens e de enredo. Mesmo relativamente ao "polémico" retrato de Hitler enquanto ser humano, nada há a declarar: o Hitler de Bruno Ganz, tecnicamente perfeito em termos de imagem e maneirismo, é uma figura plana e tautológica. Sobra a personagem de Martha Goebbels, que escolhe assassinar os seus filhos para os poupar ao que virá depois e que, no seu ethos trágico, daria um filme interessante por si só. Pouco mais há.

Saw de James Wan - Lembram-se dos tempos em que os filmes de terror americanos não eram, visualmente, um misto de uma cópia de 3ª categoria do Se7en de David Fincher misturado com um videoclip nu metal de uns Mudvayne? Eu lembro, e em vez de escrever mais sobre isto vou tirar uns minutos para pensar nesses tempos.

[Rec] de Jaume Baleguero - Este sim um bom filme de terror, todo ele filmado em plano subjectivo, o do operador de câmara de uma equipa de reportagem que acompanha os bombeiros de uma cidade durante a noite que se transforma num pesadelo dentro de um prédio... Não vale a pena dizer muito mais, para não estragar o filme a quem o queira ver, resta dizer apenas que se as personagens não têm espessura, o realizador espanhol aproveita frequentemente o abanar da câmara como meio de tapar a visão ao espectador, minorando a necessidade de efeitos especiais, num método económico e sugestivo. Este é também, dos filmes que vi nos últimos tempos, aquele que melhor cria uma tensão palpável e um incómodo de grandes proporções. Numa época em que a esmagadora maioria dos filmes de terror são para miúdos, já não é nada mau.  

15 junho 2012

Chasing Amy (Kevin Smith, 1997)



Chasing Amy é um filme de um tempo diferente, em que os nerds se preparavam para dominar o mundo. Se hoje já o conseguiram (veja-se o sucesso da trilogia Lord of the Rings e dos livros da saga Game of Thrones, por exemplo) e se o cinema independente americano contribuiu decisivamente para esse sucesso (é perfeitamente possível imaginar Tarantino, Solondz e PT Anderson de óculos de massa a discutir os méritos dos seus filmes e livros de eleição), este é ainda um filme que, apesar do poder da Miramax na época, se desenha como independente, com valores de produção intermédios e com actores que, à época, ainda não eram estrelas de lista A. Esse é definitivamente parte do seu encanto, como o é o ambiente geração x e a enfase na vida sentimental de personagens que, habitualmente são gozadas por não terem vida sentimental. Kevin Smith, realizador entretanto caído em relativa desgraça, realiza aqui um conjunto de conversation pieces admiravelmente escritas acerca de sexo, cultura pop e sentimentos, num conjunto de diálogos que não perdem a coerência e a qualidade estéticas mesmo apesar da coloquialidade e do vernáculo, que Smith manipula habilmente. Sobretudo, na história de um desenhador de bd que se apaixona por uma rapariga lésbica com uma história de experimentalismo sexual, há aqui uma estupenda comédia romântica escondida com o rabo de fora, mormente na forma como elimina a esmagadora maioria dos piores vícios do sub-género: mais do que uma construção artificiosa no sentido de colocar obstáculos à frente das personagens para as juntar no fim de uma maneira previsível e inconsequente, este é um filme que levanta questões pertinentes acerca da bagagem sentimental nas relações amorosas e que não entra na facilidade de acabar com as personagens juntas apesar de tudo. No geral, uma interessantíssima surpresa vinda de um realizador de quem nunca esperei muito, actualmente a ser exibida no canal Hollywood.   

13 junho 2012

The Narrow Margin (Richard Fleischer, 1952)



A edição em dvd de The Narrow Margin (1952) de Richard Fleischer mostra o quanto, mercê dos turcos da Cahiers du Cinéma, o estatuto do film noir se alterou desde a feitura dos filmes. De séries-b feitas com o minimo de meios possíveis para mostrar em double-bills que potenciassem um espectáculo barato e que durasse um serão inteiro aos espectadores, saem hoje edições dvd cuidadas, com comentários audio e com transcrições de imagem e som imaculadas, dignas de coleccionistas criteriosos. O filme, diga-se desde já, merece amplamente esse estatuto, ao ser exemplificativo de muitas das melhores técnicas e tendências do noir série-b. História de um detective que tem de levar a viúva de um mafioso de comboio de Chicago a Los Angeles para testemunhar em tribunal enquanto a protege dos antigos comparsas do marido, prontos a matá-la, é também um belo exemplo do thriller de comboio, que aproveita toda a claustrófobia e a exiguidade espacial de um comboio, bem como a inevitabilidade do fim da viagem para potenciar a tensão no espectador. Claro, curto e consiso (72 minutos de duração), como os melhores exemplos do género, é um filme sempre em movimento, deslocando-se constantemente entre as diferentes partes do comboio e que aposta num interessante jogo com o exterior, não só continuando durante as paragens da viagem o mesmo jogo de gato e de rato que tem lugar dentro do comboio, como também interagindo com o que é visto pela janela. Metodicamente realista, é um filme sem música, que utiliza os sons e o constante jogo de luz e sombra para dar a sensação de movimento do comboio que poderia faltar aos cenários de estúdio. No geral, é um belíssimo filme, emocionante até ao fim e que aproveita da melhor forma as vantagens de uma equipa rotinada e de actores habituados a estas personagens-tipo, pouco trabalhadas mas credíveis (destaque para Charles McGraw, actor em Spartacus e The Birds, entre outros) para nos dar uma obra ultra-eficiente e que não perde nunca de vista a criação de uma tensão quase palpável no espectador.   

10 maio 2012

Shaun of the Dead (Edgar Wright, 2004)


Os zombies, cinematograficamente falando, são úteis enquanto tábuas rasas onde cada cineasta pode inscrever o que quiser - veja-se o exemplo de George A Romero, que há 40 anos projecta neles não apenas as convulsões políticas da América mas também uma visão socialista do proletariado a revoltar-se. O cineasta Edgar Wright e o argumentista e actor Simon Pegg não vão por aí, mas não deixam de ter uma visão para as criaturas: desde o princípio do filme que os zombies são equiparados com os protagonistas, jovens adultos incapazes de saber por onde evoluir, presos ao mcemprego, à visita diária ao pub e aos jogos de computador, bem como às multidões anestesiadas a caminho do trabalho. O magnífico Shaun of the Dead, simultaneamente comédia, filme de terror e história de iniciação à idade adulta é, no fundo, o ilustrar do acordar de uma personagem, da sua definição do que é realmente importante e da passagem da modorra à acção, eventos onde a presença dos zombies é um mero catalisador. O Shaun que vemos no final do filme, senhor de si, já nada tem do procrastinador nato do início. Depois de já ter falado aqui do posterior Hot Fuzz (2007), Shaun of the Dead é uma confirmação superlativa, nomeadamente na forma como a comédia é adensada de substância e encenada com imensa inteligência: exemplo disso mesmo é o primeiro terço do filme, onde o herói está tão preocupado com o descalabro da sua vida de conforto e mediania que nem repara nos sinais de crise que estão à volta. Para não falar de alguns gags verdadeiramente deliciosos (o da escolha de qual o disco de Prince a atirar aos zombies é genial) e até de um curioso sentido coreográfico nas sequências de acção (muito boa a sequência ao som de "Don't Stop Me Now" dos Queen). Por todos estes motivos  e por muitos, muitos mais que não cabem neste texto, Shaun of the Dead é um grande filme e a melhor comédia que vi em muitos, muitos anos.  

07 maio 2012

IndieLisboa (balanço)

O meu top 5 de filmes vistos neste IndieLisboa:

1- Into the Abyss de Werner Herzog
2- Alps de Yorgos Lanthimos ex-aequo com Take Shelter de Jeff Nichols
4- Everyone in Our Family de Radu Jude
5- Michael de Markus Schleinzer

Foi, dos filmes que vi, um festival equilibrado, com filmes de qualidade e uma montra digna e versátil do melhor cinema que se fez nos últimos 12 meses pelo mundo fora.

A blogoesfera cinematográfica nacional fez-se representar por diversos bloggers e o Luís Mendonça optou por  compilar um top blogoesférico dos filmes exibidos no Indie. O resultado pode ser visto no Cinedrio.

06 maio 2012

Indiegências 2012 (último)


Em parceria com a Take


Take Shelter de Jeff Nichols: certamente um dos grandes filmes americanos a ser visto em Portugal em 2012, Take Shelter é um filme de confirmações: de Jeff Nichols como um dos cineastas americanos mais interessantes da actualidade; de Michael Shannon e de Jessica Chastain como actores excepcionais; e de uma ominosidade, de um mal-estar generalizado, que percorre a sociedade americana, sobretudo nas suas instâncias mais proletárias. Tenso e perturbante, é uma vitória do festival tê-lo mostrado e esperamos que a sua estreia em sala lhe dê a atenção merecida.


Alps de Yorgos Lanthimos: Depois do belíssimo Canino, Alps é uma evolução na continuidade, um expandir do mesmo universo malsão, violento e surreal que Lanthimos parece privilegiar. Filme sobre duplos, é uma visão sobre um país em crise de identidade e à procura de uma realidade paralela que lhe permita fugir de si próprio. Pela sua vertente social metafórica, pela sua claustrófobia visual e pela coerência estética, pode estar aqui um equivalente grego à obra dos irmãos Dardenne.


Terri de Azazel Jacobs: há filmes que, para o bem e para o mal, são simpáticos e pouco mais. Terri é bem filmado, tem personagens adolescentes pelas quais é fácil interessarmo-nos e os actores são perfeitamente adequados às suas personagens. Falta apenas um golpe de asa que o eleve para lá dessa simpatia, o mesmo ponto que quase ultrapassa na sequência da noite que os jovens passam juntos. Há pior, mas, pelo menos a uma primeira visão, nada tem de superlativo.


Meet the Fokkens de Rob Schroeder e Gabrielle Provaas: até ao penúltimo dia do festival o principal candidato ao prémio do público e que acabou por ser premiado com a exibição pela RTP2, este é um documentário doce sobre duas gémeas septuagenárias prostitutas no “red light district” de Amsterdão, uma já reformada, outra ainda em actividade. Cheias de vida, apesar de todas as dificuldades a que foram sujeitas, as protagonistas dão-nos um um retrato doce de um meio conhecido mais pela promiscuidade e pela libertinagem. A rever quando passar na tv, quando mais não seja pelo lado revigorante da história.


Michael de Markus Schleinzer: Filme misterioso e com uma solidez de betão, o seu lado frontal e afirmativo num caso tão violento de sequestro e pedofilia escandalizou muitos do que o viram. Não é, de maneira nenhuma, um filme no qual o espectador se possa infiltrar, há sempre uma muralha entre as situações e quem vê, mas os momentos em que se mostra mais fascinante (aquele em que vemos a volúpia estampada nos olhos do pedófilo deitado na cama do rapaz ou a tentativa de rapto falhada de outra criança) são poderosos. Mais um bom filme num festival que os teve em bom número.    


E pronto, este já foi. Apenas um agradecimento especial ao staff da videoteca, onde vi a maior parte dos filmes e que muito jeito me deu na organização do meu horário. Até para o ano. 

03 maio 2012

Indiegências 2012 (2)


Em parceria com a Take 


Le Skylab de Julie Delpy – Quarto filme da actriz e argumentista Julie Delpy como realizadora, Le Skylab é um mimoso filme coral sobre a família e sobre o tempo-sem-tempo das férias em família, nomeadamente o fim-de-semana de aniversário da matriarca. Há cenas de todos os tipo (cómicas, tristes, amorosas e perturbantes), o olhar da realizadora é seguro e embora nada tenha de transcendente, já vimos muito, muito, muito pior. A ver, quando estrear em sala.
  

Into the abyss de Werner Herzog – Até ao momento, o melhor filme que vimos no festival. O olhar frio, entomológico do alemão debruça-se aqui sobre um crime horrendo e, descobrimos aqui, sem sentido cometido por dois jovens texanos em 2001 e desenvolve uma leitura sobre a pena de morte, olhar esse que mantém uma posição moral e humanista mesmo que lúcida acerca das suas personagens – como Herzog afirma, num momento chave do filme, ao criminoso que é executado, o facto de achar que seres humanos não devem condenar outros à morte, não faz com que goste dele e é nesta corda-bamba que o filme se gere. Destaque também para as declarações, concomitantes e comoventes, do pároco e do guarda da prisão. A estrear em sala e a não perder de forma alguma.  


Bestiaire de Denis Coté – Pode haver muito mérito no documentário do canadiano Denis Coté, mas sinceramente não conseguimos descortinar nada nele para além de 72 minutos de imagens avulsas de animais. Enfadonho, parece, pela sua falta de sentido e de propósito, durar horas infindáveis, num pedantismo de achar que uma câmara fixa torna interessante qualquer imagem que se ponha à frente de uma câmara fixa é interessante. Como prova de que não é esse o caso, teremos sempre este excruciante filme.   


Everyone in the Family de Radu Jude– Grande surpresa! O filme do romeno Radu Jude é um belíssimo retrato da gota que faz transbordar o copo de um homem em queda, que perdeu a filha num processo de divórcio feio, que vive num apartamento espeluncoso e que não tem respeito do pai, que o vê como um cobarde. Não vamos aqui revelar o jeu de massacre a que assistimos (basta dizer que é uma espécie de Dog Day Afternoon familiar), para não tirar o prazer ao espectador, mas podemos afirmar que não só o argumento é bem trabalhado no acumular da tensão e na gestão das situações como é filmado com a mesma crueza e sentido espacial a que o novo cinema romeno nos habituou. Não fazia mal nenhum que fosse premiado e que estreasse em sala.

02 maio 2012

Fernando Lopes, definitivamente


Ia nervoso, claro que ia. Na altura, tinha conhecido pouca gente que admirava – e ainda não conheci. Na hora marcada, ao Saldanha, toco à porta do apartamento que me havia indicado via telefone e que mais tarde viria a reconhecer como um dos cenários de Os Sorrisos do Destino. Entro, cumprimento-o e pergunta-me se quero beber alguma coisa. O mais educadamente que consegui – sou muito associal e às vezes é-me difícil saber o que fazer – digo que beberei se for para o acompanhar. Explica-me que vai fazer um kir, uma coisa francesa, vinho branco com groselha. Provei e estava divinal. De caminho, ainda antes da entrevista, como acalentava o sonho de entrevistar todos os maiores cineastas portugueses para a Take, pergunto-lhe se porventura tem o contacto de Paulo Rocha. Ele diz-me que infelizmente não mas que sabe que Rocha está a filmar e, pior, estava bastante doente. A ironia é que Rocha ainda está vivo e ele morreu hoje, mais uma vítima desse filho da puta que é o cancro.

A entrevista corre bem, três horas que passam a correr, entre o fumo dos muitos cigarros que fumámos os dois, como quem sabe quão bem um cigarro faz as vezes de catalisador do diálogo. O único momento de tensão foi grando confessei que achava A Crónica dos Bons Malandros um filme datado, algo de que ele manifestamente discordava. No final, como notou que me faltavam alguns conhecimentos da história do cinema português, vai à prateleira e tira um exemplar do livro Cinema Português: Anos Gulbenkian, escrito por João Bénard da Costa e publicado pela Fundação em 2007. Encavacado com a generosidade, digo que só aceito se ele mo autografar. O livro, que tenho neste momento à minha frente, diz

Para o Miguel,

Foi uma conversa estimulante. Um abraço (de amizade que espero perdure) do

F. Lopes

À saída do apartamento, passo a timidez para trás e lanço um sentido “Foi uma honra”. Fernando Lopes dá-me uma palmadinha no rosto, abraça-me e eu, de novo encavacado, aceito o abraço mas não o retribuo, que a timidez que ainda resiste não mo permite. Hoje, quando estava no Indie e a Sandra, me manda um sms a informar da morte dele, só penso em como deveria ter retribuído o abraço.  

01 maio 2012

Indiegências 2012 (1)

Em parceria com a Take


Inni de Vincent Morrisset: Este bem conseguido filme-concerto que documenta um espectáculo dos Sigur Rós em Londres opta por, em vez de tentar mostrar realistacamente o que é um concerto dos islandeses, estilizar, num preto e branco desfocado e nos ângulos de câmara claustrofóbicos, o espectáculo e mostrar que a música da banda, ao vivo bem mais distorcida e violenta do que em disco, sobrevive perfeitamente em vários contextos. Um bom ponto de partida para a obra de um dos mais idiossincráticos grupos da década.


Rafa de João Salaviza: Uma curta-metragem com alma de longa, que podia perfeitamente ser mais extensa do que é, mostrando como a personagem-título tenta resgatar a mãe da prisão depois de um acidente de viação. Tudo é excelente em Salaviza: o universo de isolamento e alienação bem definido, a virtuosa gestão dos tempos, a noção de narrativa que nunca se perde, a gramática virtuosa e já bem definida. Nem queremos imaginar a pressão que estará sobre Salaviza depois de uma Palma e de um Urso de Ouro, mas também acreditamos que saberá contorná-la. Um grande cineasta em potencial.


Nana de Valérie Massadian: A ser exibido no mercado nacional com a curta-metragem Rafa de João Salaviza, é um filme de escopo propositadamente pequeno, mostrando, ao longo de pouco mais de uma hora, a vida de uma criança abandonada em cenário de Verão campestre. A protagonista Kelyna Lecomte é deliciosa e o filme tem um rigor fotográfico pronunciado, cada plano rigorosamente construído pela mão da realizadora, ex-fotógrafa. É verdade que é um objecto sem grande golpe de asa, inclusivamente inferior à curta-metragem que o complementará, mais um filme que chega, com competência, de um ponto ao outro, mais ainda assim digno de nota.


 4:44 The Last Day on Earth de Abel Ferrara: A primeira desilusão do festival. O filme de Ferrara, que opta por encenar o fim do mundo a partir de um apartamento em Nova-Iorque, é também um filme sobre as limitações e as consequências da mediação tecnológica constante e de como esta não consegue, em situações limite, ultrapassar as limitações do ser humano, contribuindo para elas com uma sensação de impotência exponenciada por essa mediação, é também um filme com uma encenação demasiado arty, longe da energia que caracteriza os melhores Ferrara. Continuamos a preferir os filmes mafiosos, vampírico e de vão de escada que o italo-americano já fez. Aqui, para o bem e para o mal, está demasiado próximo de Hal Hartley.  

19 abril 2012

Autobiografia de Nicolae Ceausescu (Andrei Ujica, 2010)


Autobiografia de Nicolae Ceausescu é o tipo de filme que temos vindo a ver mais nos últimos tempos. Em primeiro lugar, porque o estimulante novo cinema romeno, com uma ou outra excepção (por onde anda Politist Adjectiv de Corneliu Porumboiu?) tem sido devidamente acompanhado em Portugal. Em segundo lugar, porque a democratização das imagens de arquivo leva a que diversos realizadores se debrucem sobre o passado (ou o presente) através de imagens anteriores. Aliás, há um paralelismo claro que se pode fazer com o cinema nacional: também o filme de Andrei Ujica, feito a partir de mais de mil horas de imagens de arquivo que percorrem os 24 anos de liderança do país por Ceausescu e a sua trupe, é uma fantasia romena, mostrando exemplarmente a narrativa que aquele regime quis construir sobre si mesmo, a de um país que escolheu um rumo progressista, científico e racional e que estava de bem com o caminho escolhido. Não era essa a realidade, evidentemente, mas Autobiografia de Nicolae Ceausescu é um filme sem contracampo, dispensando mesmo qualquer contextualização do que vai sendo visto. Se a duração do filme (quase três horas) o torna numa experiência difícil, não deixa de ser verdade que é essa duração que possibilita a existência de um fio condutor óbvio, nomeadamente no modo como aquele regime, a cada sequência, se torna mais vazio e mais decrépito. Em suma, um belíssimo documentário originário de um país que, como nenhum outro em tempos recentes, tem utilizado sabiamente o cinema como meio de tratamento do seu passado recente.   

08 abril 2012

Le Conseguenze dell'Amore (Paolo Sorrentino, 2004)



Numa belíssima cena de 30 Rock, Tina Fey, num encontro amoroso com Wayne Brady, dizia, com uma frontalidade cómica de tão despropositada: “Há qualquer coisa em ti de que eu pura e simplesmente não gosto”. É o que digo deste Le Conseguenze dell'Amore, primeiro filme do italiano Paolo Sorrentino a estrear em Portugal, narrativa sobre o vazio existencial de um financeiro preso pela Máfia numa cidade suiça onde deposita os milhões lavados pela Cosa Nostra, vivendo um degredo onde todos os dias se imitam, longos, despojados e empobrecedores, até conhecer uma jovem por quem se enamora. Enquanto nos concentramos na maneira como o protagonista Tita di Girolamo gere esta situação (recorrendo à companhia de um casal que que perdeu o hotel ao jogo e a uma dose semanal de heroína, tudo corre razoavelmente bem. O problema reside na maneira de filmar de Sorrentino, barroca, berrante, querendo demonstrar a cada imagem o seu virtuosismo, tendência que se agudiza à medida que o filme avança. O que consegue é um filme que se assemelha a um videoclip de duas horas, um pedaço sofisticado de filmagem onde tanta pretensa modernidade, tanto ângulo de câmara esquizóide e tanto corte na montagem são cansativos e vaidosos. Salva-se a cena final, onde à paralisia na vida de di Girolamo se sucede outra, bem mais real e bem mais irrecuperável. Não chega aos niveis de grotesco do posterior Il Divo (2008), mas também não é grande espingarda.  

05 abril 2012

A Espalhar


O texto anterior em que, algo ingenuamente, declaro vitória, foi uma ejaculação precoce de quem quer que a causa tenha sucesso. Se lamento por ele, não me sinto na obrigação de pedir desculpa. Peço apenas que, se estiverem de acordo connosco, façam o favor de partilhar esta imagem, no Facebook, em blogues ou onde quer que seja. Obrigado.

O Sentido do Fim (Julian Barnes, 2011)


As frases de Julian Barnes são impecáveis. Milimetricamente construídas, com tudo no local certo e sem grama de gordura. Mas um livro tem de ser mais do que a soma das suas frases. A ideia tem de ser suficientemente sólida e suficientemente interessante para sustentar a acumulação de palavras. E é aí que falha O Sentido do Fim, novo romance do autor britânico e vencedor do último Man Booker Prize. Se a obra começa bem, como um retrato da juventude intelectual e afectada que passa ao lado dos "swinging sixties", a segunda parte do livro, passada no presente e focada no protagonista já idoso e reformado no processo de perceber que tudo o que julga saber está errado, é muito menos interessante do que a primeira parte. Há, efectivamente, uma ideia central a percorrer as páginas do livro (a de que a história pessoal é tão difícil de apreender quanto a História mundial) mas todo o segundo momento do livro se torna redundante e algo enfadonha, sobretudo a partir do momento em que a precisão da escrita, por o leitor já estar habituado, já não impressiona. Não é, na generalidade, um mau livro, mas continuo a preferir, e muito, dentro dos escritores ingleses contemporâneos, a obra de Ian McEwan. 

01 abril 2012

As 3 coisas de que não gosto em Terrence Mallick



Depois de uma revisão recente de The New World, sinto-me mais clarividente na enumeração do que não gosto na obra recente de Terence Mallick:

i)                    Voz Off: separando som e imagem de modo a criar uma totalidade fílmica, o uso de monólogo interior por Mallick não só é discutível enquanto principal método de progressão narrativa, como é cansativo na sua utilização permanente. Pior, o mais das vezes estas vozes exprimem-se num cansativo tom poético, enjoativo e meloso, que dificulta em muito o visionamento dos filmes.

ii)         Paganismo: para Mallick, a Natureza é uma totalidade, com as suas próprias regras e componentes, amiúde um mistério para os seres humanos que a habitam. Até aí tudo bem, não fosse isso resultar numa imagética repetitiva, as árvores em contra-picado, a luz que perpassa as florestas e as aves exóticas, como que mostrando o milagre da criação terrena através da sua estética cinematográfica. O que faz dos seus filmes deambulações constantes, o que em The New World até faz sentido mas que, por exemplo em The Tree of Life, resvala para a patetice cosmogénica dos dinossauros e do final feérico (e quão melhor seria essa obra se se cingisse à história central da família de Brad Pitt e Jessica Chastain). É todo um imaginário a derrapar em direcção ao New Age e que, sinceramente, não me agrada.

iii)                Poesia: O meu principal problema com o cinema de Mallick, bem vistas as coisas, não é tanto do cineasta quanto meu. Para o bem e para o mal, no cinema como na literatura, sempre preferi a prosa à poesia. E o cinema de Mallick, através dos dois aspectos anteriormente referidos, fica sempre enredado numa nuvem poética, formal e narrativa, e que ainda mais está, neste preciso momento, numa fase previsível. Quando se vê um filme de Mallick, já se sabe que a câmara vai andar a esvoaçar por ali, que as personagens vão intercalar a narração do filme num tom de voz vaixo e confessional em off e que haverá meia-dúzia de planos a mostrar o lado misterioso da existência humana. Quando penso em Mallick, e apesar de reconhecer a enorme beleza das imagens que cria, penso sobretudo em Badlands (1973), seco, pequeno e direito ao assunto. Em suma, dos filmes que vi de Mallick até hoje o único que é em prosa.  

10 março 2012

Poder, podia... e até era bem melhor!

Depois de uma sabática de vários anos, voltei a uma sala Zon Lusomundo para ver o óptimo Shame de Steve McQueen. Os motivos prendem-se sobretudo com questões de ordem prática: trabalho perto de Oeiras, o Oeiras Parque fica a poucos minutos do emprego e é sempre útil poder jantar a preços acessíveis antes de ir ver o filme. Por outro lado, a hipótese não me agradou muito: tenho um ódio figadal a tudo o que diga respeito ao “amigo Joaquim”, à forma como tornou o DN um jornal da direita mais grunha, à falta de isenção da informação que os seus orgãos de comunicação prestam e a um dos maiores exemplos de integração vertical da economia nacional.

Este último ponto é particularmente visível na experiência de ir a um cinema Zon Lusomundo. Se o acto de os cinemas passarem publicidade comercial (não confundir com os trailers de outros filmes, que ajudam o espectador a saber o que pode ver futuramente em sala) já de si é abjecto, porquanto representa uma feia maximização do lucro à custa da disponibilidade mental de alguém que, lembremos, já despendeu um valor significativo para ali estar, no caso da Zon Lusomundo isso é ainda pior. Porque cerca de metade da publicidade que os cinemas Zon Lusomundo passam é a produtos da própria Zon. Se a isto juntarmos o facto de grande parte das pessoas que vão a cinemas do grupo o fazem por terem um cartão do serviço de tv por cabo da empresa, que lhes dá um bilhete grátis na compra de outro, o que fica é a sensação de o cinema ser apenas uma pequena roda na engrenagem de muitos milhões que rege a companhia.

Se as salas têm óptimas condições de imagem e som e são amplamente confortáveis, continuo a preferir outras (algumas, como o Monumental, também situadas em centros comerciais), onde parece que o cinema está mais alto na hierarquia de preocupações. Porque, para a Zon Lusomundo, vender é vender, seja filmes, couves ou cães de loiça. O tempo dos cinemas isolados, com maus cafés ou sem café de todo, parece ter terminado (compare-se o King ao arejadíssimo CinemaCity Classic Alvalade, com um bom café à entrada), mas tem de haver melhor solução do que este mercantilismo desenfreado, ainda para mais em prol de outros produtos.

06 março 2012

They Live! (John Carpenter, 1988)

They Live! é a carta de ódio de John Carpenter à administração Reagan e, num sentido mais lato, ao neo-liberalismo que este passou, como uma doença contagiosa, ao resto do mundo. Como sempre acontece, a ficção científica serve aqui como comentário e intervenção sobre o tempo presente, embora, nas sequências em que o wrestler e protagonista Roddy Piper põe os óculos escuros, haja também um visual vintage que serve de homenagem ao passado do género. Filme, então, sobre a desigualdade e a alienação geradas pelo capitalismo desenfreado, ganha uma nova dimensão na segunda parte, quando se torna um pastiche dos filmes de acção da década de 80, dois brutamontes ao tiro a tudo o que mexa e a debitar one-liners pelo caminho. Acima de tudo, é isto They Live!: uma sátira irrisória a um tempo, feita de acordo com as regras do seu tempo mas que, na sua essência, é como se tivesse sido feita de 2008 para cá.

28 fevereiro 2012

As Tears Go By (Wong Kar-Wai, 1988)


As Tears Go By, primeira longa-metragem de Wong Kar-Wai, é um objecto extremamente interessante, pela forma como já contém os elementos estéticos que viriam a compor a obra do realizador. Ainda sem o habitual director de fotografia Christopher Doyle, esta assumida revisão oriental de Mean Streets (19739 de Martin Scorsese tem desde logo o lado ultra-estilizado associado ao cineasta, com a profusão de filtros de côr, câmaras lentas e efeitos visuais dos mais variados, num todo que inclusivamente arrisca o kitsch para atingir o romântico (não apenas na extraordinária cena do beijo mas também na versão oriental de "Take My Breath Away" dos Berlin). Se ainda não chega aos melhores momentos da carreira de Wong é porque tudo aqui ainda se encontra num estado não propriamente embrionário, mas num estado caótico, virtuoso mas ainda pouco sofisticado, como num big bang estético. Há quem fale em John Woo como influência para este filme, sobretudo pela intriga de gangsters, mas o que aqui está é já Wong Kar-Wai, ainda para mais com uma energia, uma força e um entusiasmo de um jovem a pôr a carne toda no assador do seu primeiro filme. Pela beleza das suas imagens, pela sua competência narrativa e pelo seu romantismo não apologético, é uma bela estreia.


05 fevereiro 2012

02 fevereiro 2012

Retrato dos artistas enquanto miúdos


Just Kids é um acto de generosidade e o último presente dado por Patti Smith a Robert Mapplethorpe: o retrato do(s) artista(s) enquanto miúdos, as pessoas em busca dos artistas que vivem dentro deles. O que a poeta/cantora faz é apresentar o fotógrafo a uma nova geração e mostrá-lo, numa luz mais intima, a todos os conhecedores, perpetuando a sua memória como prova de amor. Ao mesmo tempo, cria também um fresco de uma época, um livro poético sobre a

comunidade artistica nova-iorquina dos anos 60 e 70.


Patti Smith e Robert Mapplethorpe conhecem-se em Nova iorque no final dos anos 60, quando Smith acaba de chegar. Cedo se tornam inseparáveis, ele um rapaz pacato de de uma família católica, os olhos verdes e a indumentária extravagante, ela a fugir de uma vida sem futuro enquanto trabalhadora fabril e sonhando com uma carreira na poesia. Ele de Wharhol e autor de colagens, ela a escrever esboços de poemas e a desenhar profusamente. Até que um estabilizasse na musica e outro na fotografia, passar-se-ia quase uma década, povoada pelas mais importantes figuras do seu tempo. A viver no Chelsea hotel, ambos convivem com figuras como William Burroghs (a quem Patti chamava um táxi todas as noites), Allen Ginsberg (que confunde Patti com um prospectivo engate masculino) e Janis Joplin, que transmite a Smith a sua imensa solidão. São também frequentadores do famoso Max’s, onde a troupe Wharholiana, incluindo as musas Candy Darling (“Candy says...”) e Edie Sedgewick, se reúne. São tempos sem dinheiro, em que um fica a porta dos museus por não poderem pagar dois bilhetes e o outro entra, a exposição e relata-a ao parceiro, batendo à porta do mundo das artes que se faz dificl.


Mas estes são, sobretudo, tempos de definição pessoal. Para Patti, na sua escrita e no caminho que percorre até à música. Para Robert, no percurso em direcção à fotografia mas, mormente, na sua definição sexual, nomeadamente no assumir da homossexualidade, dificultada por uma educação católica restrita. No momento em que Robert finalmente encontra um parceiro no milionário Sam Wagstaff, já Patti teve relacionamentos com o dramaturgo Sam Shepherd e com Allen Lanier, teclista dos Blue Oyster Cult, antes de casar com Fred Sonic Smith, guitarrista dos MC5. É nessa altura que podem ambos seguir em frente, estando cumprido o voto reciproco de se acompanharem até estarem ambos em posições confortáveis e estáveis. É este o fulcro de Just Kids: duas pessoas fundamentais na formação um do outro, que partilharam uma época histórica imprescindível do século XX e que, até à morte de Robert Mapplethorpe, de SIDA, em 1989, mantiveram o tipo de ligação que acontece uma vez na vida.


Se a escrita de Smith não deixa de lado o aspecto poético, Just Kids é também um livro solido, de progressão ritmada e que, mais do que a nostalgia por uma época vivida, se foca num poder evocativo que mergulha o leitor num contexto de criatividade mirambolante misturada com uma crónica falta de dinheiro. Uma recordação tranquila, evocando toda a beleza da relação entre os protagonistas, que possui a veracidade de uma biografia e o cuidado estético de um romance. Tanto quanto um grande livro rock n roll, este livro está, na carreira de Patti Smith, ao nível dos álbuns Horses (1975) e Easter (1978) como pedra-de-toque de um percurso singularíssimo.

31 janeiro 2012

Estranho bailado


No percurso de PT Anderson, Punch-Drunk Love representa, de forma muito concreta, um "back to basics". Depois de Sidney/Hard Eight, filme de câmara, focado essencialmente em três personagens, os magníficos Boogie Nights e Magnolia era objectos de maior fôlego, narrativas corais inspiradas, respectivamente, em Scorsese e em Altman mas demonstrando sempre o virtuosismo e a visão particulares do seu autor . Punch Drunk Love regressa a um escopo mais pequeno, centrando-se num par romântico composto por Emily Watson e Adam Sandler e, sendo um filme que, mesmo numa revisão, mantém uma lado esdrúxulo e fora do normal, é um cabal exemplo de como a renovação que Anderson tem imposto no cinema americano se pode aplicar também a filmes menos épicos e mais focados numa particular (mesmo que minimalista) história.


Misto de melodrama com comédia romântica com um sentido particular de espaço (é um filme que não tem horror ao vazio no enquadramento), é também um filme de estrutura e organização musical. A banda-sonora de Jon Brion, mais do que constituída por pedaços musicais propriamente ditos, é composta por sons e ruídos que se articulam e influenciam o desenvolvimento visual da narrativa mais do que o enredo, facilmente resumível. Tudo isto redunda num estranho bailado, num filme em que as personagens, sobretudo a de Adam Sandler, parecem dançar ao som de uma musica que eles ouvem.


Punch Drunk Love resume-se também como história de amor pouco comum, não por ser a mulher o elemento dominante, mas porque genuínas duvidas sobre o desenlace deste romance (contrariamente ao que acontece na maioria das comédias românticas, que não deixam qualquer duvida quanto ao final feliz que espera o espectador), bem como uma sensação de perigo extraordinariamente bem conseguida na intriga que opõe a personagem principal ao gang dos telefones eróticos. Há muita competência no modo como PT Anderson organiza a narrativa idiossincrática que escreveu para este filme.


Na senda dos filmes anteriores, também este é um filme inspirado na memoria de antanho do cinema americano. Onde os anos 70 eram reis, aqui a referência parece ser mais as comédias românticas dos anos 50 e 60, os filmes garridos, por exemplo, de Doris Day e Rock Hudson. Embora haja espaço para outras influencias (Sandler a correr lembra Ben Gazzarra no The Killing of a Chinese Bookie de Cassavettes), a cena central do encontro do casal no aeroporto no Hawai, com um azul metalizado contra as cores da paisagem natural e com o grupo de passageiros a passar por trás é a que melhor sintetiza as características estéticas do filme.


Não sendo uma obra-prima, Punch Drunk Love apresenta-se como um passo em frente na carreira de um dos mais interessantes mavericks do cinema americano dos últimos vinte anos, uma prova dada à saciedade de que consegue fazer filmes diferentes dos anteriores e de que não ficaria preso ao sucesso que a formula coral usada em Boogie Nights e Magnolia. De referir, para finalizar, que muito do filme assenta também no talento de Adam Sandler, que mostra o quanto, depois de passarem pelo crivo dos brilhantes sketches de Saturday Night Live, o problema de muitos destes actores de comédia é não encontrarem material ao seu nível. Aqui, Sandler é ultra-credível e pelo seu embaraço e timidez passa muito do que torna este filme num objecto pungente sobre a conquista do amor verdadeiro.


25 janeiro 2012

Angelopoulos RIP

Para mim, a culpa foi do árbitro!

E pronto, este blogue foi eliminado da copa A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penálti. Apenas por um voto, a equipa do numa paragem do 28 venceu justamente, num jogo marcado por 17 penáltis por marcar a nosso favor e a expulsão perdoada a pelo menos dez jogadores da equipa adversária. Agora, é levantar a cabeça e pensar no futuro.

24 janeiro 2012

Gangsta frouxo


Quando realizou The Untouchables (1987), Brian DePalma exibia, nos seus filmes, claros sinais exteriores de riqueza: no elenco luxuoso (aos joven Kevin Costner e Andy Garcia juntavam-se os já reconhecidos Robert DeNiro e Sean Connery) ou nos colaboradores que trouxe para o filme, como Giorgio Armani para o guarda-roupa e Ennio Morricone para a música. Prestes a entrar na primeira divisão do mainstream americano, DePalma perdeu a oportunidade: por uma lado, com o falhanço genial de The Bonfire of Vanities (1989), por outro, com este mole panegírico do heroísmo americano.

Nos antípodas da amoralidade e do sentido de tragédia dos filmes de gangsters dos anos 30 (que tinha transformado no muito bem conseguido remake de Scarface, 1982), The Untouchables joga-se todo no maniqueísmo mais básico, na bondade insossa dos bons e na maldade desinteressante dos maus. Semelhante posicionamento moral demasiado evidente prejudica o desenvolvimento das personagens, que aqui parecem meras folhas planas onde nada foi escrito. E naturalmente que isso prejudica o trabalho dos actores, mormente o Al Capone de Robert DeNiro, salvando-se apenas o polícia duro interpretado por Sean Connery.

Não conhecendo eu os bastidores da feitura de The Untouchables, parece-me que das duas uma: ou DePalma desaproveitou um bom argumento de David Mamet ou o dramaturgo e cineasta norte-americano escreveu aqui uma das suas obras mais fracas. Pouco imaginativo, previsivel e sem a dimensão verbal rápida e obscena que caracteriza os seus melhores textos, em boa hora Mamet se lançou no seu próprio cinema e deixou de operar tarefas destas.

Salva-se a sequência na escadaria da estação de comboios, clara piscadela de olho a O Couraçado Potemkine (1927), mas não chega para fazer um bom filme.

18 janeiro 2012

Romain meurt


Romain (desde já digo, extraordinário Melvil Poupaud) está a morrer. Sabe-o depois de um desmaio durante uma sessão onde fotografa duas modelos em cenário parisiense. Um médico cordato e amigável diz-lhe que tem um cancro metastasiado e que as suas hipóteses são poucas, mas reais. Romain não quer passar pela degradação física causada pela quimioterapia, nem tão pouco prestar-se à comiseração e preocupação dos outros. Assim, corta com o companheiro e esconde a doença de todos menos da avó, porque esta “também vai morrer em breve”. E é neste pressuposto de morte iminente que Le temps qui reste, filme pequeno e solar, se desenvolve.

Como a sua personagem principal, Le temps qui reste é um filme que se joga todo na contenção e na recusa do pathos habitualmente presente nas histórias de morte. Seco e despojado, com pouco menos de 80 minutos, rejeita em larga medida a encenação das cinco fases da morte (que tanto fez, por exemplo, pelo All that Jazz de Bob Fosse) para encenar sobretudo as tarefas necessárias para que Romain atinja a paz que procura. É como se, mais do que a austeridade no olhar ser um método, esta fosse o próprio objectivo central do filme: o de mostrar o turbilhão emocional de alguém confrontado com a sua própria morte da forma menos lacrimejante possível. O que, se torna compreensível a ideia de distanciamento emocional de que o filme foi acusado – pejorativamente – por alguma crítica à época da sua estreia, só pode ser tido como feitio e não como defeito.

A juntar a este despojamento, refira-se a capacidade de encenação de Ozon, nomeadamente no aproveitamento das potencialidades do scope (até nas suas potencialidades metafóricas – veja-se os dois planos, em momentos cirúrgicos, dos passos de Romain da esquerda para a direita do plano, como que a simbolizar a sua caminhada para a morte) e o lado berrante, cromaticamente, que o filme tem, com uma enorme profusão de amarelos, verdes e vermelhos. O melhor do filme é, contudo, a sequência final, extraordinário momento de paz interior a contrastar com os 70 e tal minutos de dor que vimos antes. Não deixa de ser estranho que François Ozon, uma das maiores esperanças do cinema europeu no início desta década, se tenha eclipsado e desde este filme só tenha feito obras ignoradas por meio mundo. Quem faz filmes destes, com este controlo, esta subtileza e esta inteligência, não pode ser considerado mau cineasta.

A Angústia do Blogger Cinéfilo no Momento do Penalty - Meias Finais

Com sacrifício, força de vontade, tranquilidade e espírito de sacrifício e outros valores típicos do futebolês nacional, a equipa deste blogue levou de vencida a equipa do A Última Sessão. Nas meias finais, segue-se o fortíssimo conjunto do Numa Paragem do 28. Podem votar aqui ao lado.

15 janeiro 2012

Enquanto o vento não muda


Jafar Panahi parecia ter tudo encaminhado para ter uma boa vida. Casa ampla, bem decorada e numa zona nobre de Teerão; o iPhone e o Macbook parecem indiciar uma vida material confortável; nos diálogos com a família, sempre por telefone, é evidente a cumplicidade e a harmonia; e é um homem respeitado internacionalmente na sua vida profissional. Acontece que os tiranos barbudos do costume, postos no poder pela incapacidade das potências ocidentais em lidar com as complexidades do Irão, condenaram-no a seis anos de prisão e a proibição de filmar durante 20 anos, por alegada participação cinematográfica nas manifestações que se seguiram à “re-eleição” de Mahmoud Ahmadinejad. Não deixa de ser curioso que, no presente, seja uma teocracia totalitária a defender o cinema como as democracias há muito não fazem: dando-lhe a importância que se dá a uma arte que (ainda) consegue mudar o mundo.

Isto não é um filme, espécie de video-retrato de um dia na vida de Jafar Panahi, construído pelo próprio cineasta com a colaboração do documentarista Mojtaba Mirtahmasb, é uma obra simples, a maneira possível e limitada que um cineasta tem de continuar a produzir num contexto em que não resta mais do que a mera documentação da sua vida quotidiana e o cinema enquanto construção linguística e mental. No huis clos doméstico em que Panahi se encontrava, inaugurava-se então um novo género cinematográfico persa: aquele que explana, nas palavras do realizador, os argumentos que a censura iraniana proibiu de filmar. Sabendo que esta maqueta viva do que seria um filme não substitui o objecto a criar, mas que a sua feitura é, ao mesmo tempo, um acto de resistência e um acto de sobrevivência.

Assim, a solução encontrada por Panahi parece ter sido a de tornar tudo cinema, o mais banal, o mais feérico (os extraordinários momentos de Jafar à janela a ver o fogo de artifício do feriado iraniano) e mais doloroso, sabendo que o real está cheio de motivos para filmar. É assim que se justifica que Panahi filme tão sofregamente o estafeta (a juventude iraniana que se desmultiplica em empregos para estudar e que, corra tudo bem, fará a revolução) . A dada altura, o jovem sai do prédio e Panahi tem de ficar à porta, a ver uma fogueira gigante, das mesmas que as tiranias usam para queimar obras de arte. Acaba ali o seu percurso, pelo menos o que o deixam fazer. Até que o vento mude.