26 abril 2009

IndieLisboa 2009 (II)


Cobra Verde de Werner Herzog, Herói Independente, Sábado 25 de Abril , Fórum Lisboa, 19h00m

Não deixa de ser curioso que os filmes feitos por Werner Herzog com Klaus Kinski, sendo todos sobre falhanços (o de Aguirre, o de Fitzcarraldo ou o até o do Conde Drácula), sejam em si tão bem conseguidos. O último filme da autêntica sinergia criativa entre os dois germânicos, datado de 1987, não chega aos píncaros de Aguirre der Zorn Gottes (1972) ou de Fitzcarraldo (1982) mas está muito perto. Contando a história de Francisco Manoel Da Silva, o bandido brasileiro conhecido por Cobra Verde que acaba por ser contratado como capataz por um fazendeiro e mandado para a sua morte em África (onde ainda tem tempo para depor um rei), depois de engravidar as três filhas do patrão, é Herzog naquilo que este faz melhor: um cinema em constante estado de alucinação febril, onde explosões de violência se misturam com uma ideia bastante grotesca de exotismo. Exalando calor tropical e sem espaço para subtilezas, utilizando um traço grosso na definição de situações e personagens, é um cinema de uma fisicalidade imensa que, no limite e despudoradamente, se encontra nos antípodas de um politicamente correcto pós-colonial: é certo que termina com um libelo anti-escravatura, mas o então denominado Terceiro Mundo é aqui um lugar de medo, de um desconhecido fascinante pelo que tem de horrível. Como os outros, é um filme sobre um sonho que corre mal – o da personagem título em ir para a neve, para longe do calor infernal que o limita. E é uma belíssima obra que, na sua cena final, espelha o fim da relação entre Kinski e Herzog.




IndieLisboa 2009 (I)


Snow de Aida Begic, Cinema Emergente, Sexta-feira 24 de Abril, Cinema City Classic Alvalade, 21h30m

O primeiro aspecto a ter em conta no IndieLisboa 2009 é a inclusão das salas Cinema City Classic de Alvalade no grupo de locais onde os filmes são exibidos. Ainda que na periferia do festival – afastadas do eixo Fórum Lisboa/Londres, sem a pompa do S. Jorge e com duas das quatro salas a continuarem a exibir a sua programação comercial –o espaço é pequeno mas agradável, com boas condições de imagem e som, excelentes cadeiras e um muito apelativo foyer, com os bolos do café a sorrirem para o espectador. Tivesse o complexo uma selecção de filmes análoga à do King e seria o fim da cada vez mais cavernosa e desconfortável sala da Avenida de Roma. Uma bela surpresa.

Não me posso queixar, de maneira nenhuma, do primeiro filme que vi no Indie em 2009. A longa de estreia de Aida Begic é um sóbrio retrato de uma semana na vida na Bósnia Herzegovina em 1997, depois da limpeza étnica conduzida pelos sérvios ao longo da década de 1990. A povoação, maioritariamente composta por mulheres (apenas o mullah e um rapaz sobreviveram à chacina selectiva dos anos anteriores), vive na esperança de conseguir sobreviver vendendo compotas, mas não há quaisquer compradores nas imediações. Até ao dia em que chegam um bósnio que sobreviveu e que faz transporte de móveis da Alemanha para a Bósnia e um sérvio que, acompanhado por um estrangeiro, tenta comprar a terra para aí estabelecer um empreendimento turístico.

Snow é um filme sem golpes de asa (e que não os tenta ter, com a excepção da catarse final do grupo) mas que cativa por ser tão sólido. Linear e iminentemente realista, filmado com câmara de mão e com uma montagem fluida, é um duro retrato da persecução da vida por um grupo de mulheres que, comoventemente, continua a sua vida sem nunca perguntarem o porquê do seu destino, com a naturalidade de quem sempre aquilo fez e de quem continuará, aconteça o que acontecer, no único lugar que conhece, à espera de dias melhores. Nessa medida, a neve do título funciona, então, como metáfora da mudança de estação, dos tempos que tragam a melhoria de condições merecida pela manutenção do dever.

Merecia a estreia nacional – até porque já vimos bem pior. Que o senhor Paulo Branco acorde e dê a mais gente a hipótese de ver um filme que, não sendo uma obra-prima, merece todos os pares de olhos que encontrar. Destaque final para a enorme fotogenia da protagonista Zana Marjanovic.

15 abril 2009

Che anti-Che


Steven Soderbergh é, conforme o ponto de vista, a boa ou a má consciência do cinema americano. Na sua constante relação com o cinema comercial, apenas a espaços de negação, mas muito mais frequentemente de contaminação, Soderbergh dá mostras não só de uma modernidade absoluta, como de uma resoluta vontade de elevar, pela sua actividade, aquilo que entra nas designações de comercial e de popular. Quem quiser, pode achar que é a boa consciência deste sistema, dizendo “Estão a ver? Pode ser sempre assim!” Outros, acharão que é a má consciência, dizendo “Estão a ver? Poderia ser sempre assim!”

Che passou a sua quota parte de dificuldades. Obama não existia politicamente à época da busca de financiamento. Não se falava de mudança e Soderbergh bateu muitas vezes com o nariz na porta desde que pensou no projecto, logo a seguir a Traffic (2000). Quando chegou a altura de escolher actores, apenas Benicio del Toro saltou perante a oportunidade – mais nenhum dos habituées do realizador, com a excepção de Matt Damon, num pequeno cameo em O Argentino, se dignam a aparecer. O filme aparenta ter sido feito com relativa escassez de meios – como pode ser visto nas sequências em que os aviões que bombardeiam os acampamentos são mostrados através do som e das sombras que projectam no chão, ultrapassando essas dificuldades através da criatividade.

Qual, então, o resultado final? Óptimo, para mal dos pecados de mestre Eurico. Arrisco dizer que os dois volumes de Che – duas faces de uma mesma moeda, o mesmo filme em dois momentos diferentes da narrativa, o sucesso e o fracasso – são dos objectos mais radicais que o cinema norte-americano – mesmo falado em espanhol e com actores de segunda linha como Rodrigo Santoro, Catalina Sandino Moreno e Joaquim de Almeida (a espalhar a sua falta de talento por ecrãs internacionais) e com fundos europeus –nos deu nesta época. O que Soderbergh consegue fazer com eles é mais um tijolo no seu edificio a um tempo imensamente estilizado e completamente acessível. Com os seus geniais enquadramentos – não me sai da cabeça o da conversa de Che com o chefe da polícia de Santa Clara, uma grande angular onde os dois intervenientes estão em primeiríssimo plano, em contraste com a restante profundidade de campo -, com os seus filtros de imagem potenciadores de mudanças espacio-temporais – adoro a festa nova-iorquina que parece escrita por Truman Capote e filmada por D.A. Pennebaker – e com os desempenhos miméticos de alguns dos intervenientes – é o desempenho pelo qual del Toro será lembrado – o que está em causa é o exercício de estilo para acabar com todas as tentativas de exercício de estilo nesta década, a arte em estado puro de um cineasta para quem uma câmara pouco tem de meramente utilitário. Por outras palavras, Che é exactamente o contrário daquilo que dele poderíamos esperar, ao pôr de lado a história (diz-nos apenas o essencial para perceber a situação em que o herói se encontra), a política (os mais importantes comentários políticos que nele vemos são a diferenciação, no início e no fim de O Argentino, entre Che e Fidel e Raul Castro, os últimos mostrados como muito mais burgueses que o médico seu companheiro, discutindo mojitos depois da vitória ou afastados de Ernesto Guevara, na outra ponta do barco que os levou a Cuba). No limite, Guerrilha e o Argentino poderiam ser sobre o caso Freeport, a exibição do Porto em Old Trafford ou a Luciana Abreu que seriam sempre geniais.

No limite, é uma obra totalmente ineficaz enquanto manifesto político. Não há ponta de nostalgia, nem sequer por um tempo em que os revolucionários se pareciam com estrelas de rock (comparem Che, Fidel e Raul circa 1959 com Fulgencio Batista e os seus capangas na mesma época e vejam onde se concentra o carisma), nem por uma revolução que não só trocou a liberdade pelo alinhamento com a URSS como condenou o seu povo ao isolamento e à miséria. Basta referir a prodigiosa batalha de Santa Clara, cena de guerra sem guerra, batalha sem fogo, movimento pelo movimento e dos momentos maiores de cinema desta década, para se perceber estes dois filmes. Nem utópicos nem dialécticos, são apenas Cinema insuportavelmente bem feito, reduzindo a narrativa ao mais abstracto e ficando com a forma. Che Guevara não está aqui; pouco saberemos a mais dele por passar quatro horas e vinte na sala de cinema. A sua sombra, contudo, deu um grande filme.

13 abril 2009

A melhor coisa que alguma vez existiu em todos os tempos desde que a Humanidade foi criada!

Se depois deste pequeno grande exemplo tiverem dúvidas do genial que é 30 Rock e da autêntica génia que é Tina Fey... vão ao médico!

10 abril 2009

Revisão da Matéria Dada - V

Acabados que estão os três primeiros meses do ano, aqui vai uma pequena resenha dos filmes que vi mas acerca dos quais não escrevi neste blogue. Para os próximos dias, espero, fica guardado o texto acerca do diptíco Che de Steven Soderbergh.

The Changelling de Clint Eastwood – É um bom filme, com o melhor desempenho até à data de Angelina Jolie, um John Malkovich em boa forma e uma excelente reconstituição de uma época e de um local, a Los Angeles nas vésperas da Grande Depressão (a primeira, pelo menos…). Para qualquer outro cineasta seria excelente, mas perde um pouco na comparação com o restante que Eastwood tem feito. Falta-lhe mais nervo, mais força, em suma, falta-lhe ser mais cortante. É sobretudo disso que vem a recepção fria que lhe tem sido votada.

Milk de Gus van Sant – Enorme, o filme de Van Sant. Situado confortavelmente dentro do mainstream que o americano abraça a espaços (To Die For, Good Will Hunting e Finding Forrester) é uma tocante exposição da determinação exigida e das dificuldades por que passam aqueles que querem mudar o status quo e um filme daqueles que definem um tempo, pelo modo como, olhando o passado, espelha a presente luta dos homossexuais por mais e melhores direitos. Finalmente, dentro do mainstream referido, até consegue ser bastante subversivo: é narrado por um morto e filma um bairro como se fosse um mundo. Não é para todos.

Revolutionary Road de Sam Mendes – É um mistério para mim a popularidade e respeito que Sam Mendes tem granjeado. Road to Perdition era bom, é certo, mas American Beauty era irrelevante e Jarhead francamente mau. Chegados a este filme, mantém-se a irrelevância. Não há nada neste filme que Ingmar Bergman não tenha feito mil vezes melhor no seu Cenas da Vida Conjugal (1977), que conseguia dar um curso a Sam Mendes não só em formas fílmicas como em meios de retratar o sufoco de uma relação a quebrar. Absolutamente igual ao litro.

Slumdog Millionaire de Danny Boyle – Está chegada a hora de explicar o que é que me ofende mesmo no magnum opus de Danny Boyle: é a ideia de que a televisão é a religião moderna, local de uma transferência crística onde um pobre coitado, ao ganhar um concurso, redime miraculosamente as tristes existências e os múltiplos pecados que o rodeiam. Se a isso juntarmos o facto de este concurso ser a mais bem sucedida exportação televisiva do Reino Unido nos últimos anos, temos um belo exemplo de um desejo colonialista a posteriori, onde a civilização entre para iluminar, mais uma vez, a pobre vida do Terceiro Mundo. Tudo embrulhado num anúncio da Benneton estendido para duas horas e meia, o oscarizado excremento de Danny Boyle é o mais nojento filme que vi em muitos anos.

Doubt de John Patrick Shanley – Excelente texto, o da peça homónima adaptada pelo próprio autor ao cinema. Pena que a realização seja mediana, desbaratando numa estética básica a classe de Philip Seymour Hoffman e, sobretudo, a presença de Meryl Streep, cada vez mais a melhor actriz desde os tempos áureos da Senhora Hepburn – e a grande actriz da nossa era. Vê-se bem, pensa-se nos diálogos mas esquece-se depressa.

The Reader de Stephen Daldry – Quase tudo o que escrevi para Sam Mendes se aplica a Stephen Daldry e a este filme. O pior que pode acontecer a um filme que lida com a culpa colectiva derivada do Holocausto é deixar o espectador incólume. Salvam-se apenas os momentos de solidão do protagonista, nomeadamente no plano subjectivo sobre o dormitório da faculdade e à beira do lago, no fim do Verão.

Rachel Getting Married de Jonathan Demme – Delicioso regresso de Deme, com uma Anne Hathaway em grande forma num filme terno, filmado com câmara à mão, luz natural e com uma grande dose de improviso. Rachel Getting Married convida-nos a entrar no processo de reunificação de uma família, num fim-de-semana de catarse e reconstrução com um toque ligeiro de Cassavettes. Num mundo ideal, os Dogma 95 tinham sido assim, e não pedaços viscosos de moralismo. Este sim! é o fell good movie of the year (até agora).

The Curious Case of Benjamin Button de David Fincher – Injustiçado filme de Fincher, cineasta cada vez mais maduro e cujos filmes funcionam cada vez mais por camadas a serem descascadas pelo espectador. Pictoricamente deslumbrante, sem moralismos bacocos à la Forrest Gump (com o qual é incompreensivelmente comparado) é a mais tocante meditação sobre o tempo desde Once Upon a Time in America de Sergio Leone. Sobretudo, é capaz de criar em que vê uma enorme sensação de perda, do irrecuperável por que passam as personagens. E isso não é fácil.

Happy Go Lucky de Mike Leigh – Longe do betão armado de Naked, Secrets and Lies e Vera Drake, o último do melhor neo-realista em actividade começa por ser irritante, sobretudo devido à felicidade psicótica e verborreica da sua protagonista. Cresce muito em interesse quando essa felicidade tem de se confrontar com a tristeza dos outros, da criança espancada em casa ao magnifico instrutor de condução, interpretado por Eddie Marsan. O resultado final está no ponto médio entre a obra passada e uma nova hipótese de cinema, igualmente realista e incisivo mas menos escuro e desesperado. A ver vamos.

Gran Torino de Clint Eastwood – Se The Changelling é uma faca por afiar, Gran Torino é uma das espadas de samurai que Sonny Chiba faz para Uma Thurman no primeiro volume do Kill Bill de Tarantino. Conciso, parecendo ser tão fácil de fazer quanto é de ver e comoventemente crepuscular, a despedida de Clint Eastwood do grande ecrã (enquanto actor) é mais um exemplo da transcendência do seu actor, de ícone da série B para o melhor que o cinema americano nos deu nesta década. Não há palavras que o definam. Só vendo-o, muitas e muitas vezes.