21 outubro 2011

Mudar de ares faz bem



No inter-rail em que se transformou a carreira de Woody Allen nos últimos anos, a primeira paragem é sempre a melhor: veja-se o exemplo de Inglaterra, onde Cassandra’s Dream e You Will Meet a Tall Dark Stranger não conseguiram acompanhar o nível de Match Point; e especule-se sobre se, voltando à Catalunha, Allen conseguiria replicar os resultados amplamente positivos de Vicky Cristina Barcelona. Chegados a Paris, aproveitando todo o charme e toda a história da cidade, Allen opta por uma comédia romântica esdrúxula, nostálgica e apostada em encantar o espectador. Consegue-o. Mesmo não sendo uma obra-prima, Midnight in Paris é um dos mais agradáveis filmes de Woody Allen em décadas e um onde, contaminado talvez pela cidade-luz, se mostra mais optimista e menos cínico do que alguma vez me lembro de o ver.

E isso é visível desde logo na escolha de Owen Wilson para alter-ego de Allen, muito longe, por exemplo, do cinismo destrutivo de Kenneth Brennagh em Celebrity. Em Paris numa viagem que antecede o seu casamento com a materialista e acelerada Inez (Rachel McAdams de tom correcto), com a qual é, desde o início do filme, vincadamente incompatível, o escritor Gil Pearson, angustiado pela incapacidade de passar de argumentista sensaboração de Hollywood para escritor de pleno direito, começa a passear à noite por Paris, até lhe ser dada uma boleia, num Peugeout antigo, por nada menos que F. Scott e Zenda Fitgerald. O percurso que acompanhamos, num filme que, como muitos Allen, parece ser cronometrado para não ultrapassar a hora e meia, é o de uma descoberta e um espanto quase infantis de todas as figuras que perfazem o modernismo parisiense, desde Ernest Hemingway e Gertrud Stein a Buñuel e Dali, todos caricaturados de acordo com as suas personas históricas (Fitzgerald mortificado pelo seu amor por Zelda, Hemingway sempre lapidar e másculo, Stein matriarcal e pragmática). Aí, nesse mundo que Allen retrata através de tons dourados e quentes e sem nunca o definir liminarmente como imaginação ou sonho, por entre uma Marillon Cottillard luminosa e uma Carla Bruni meramente decorativa, Pearson, que via os anos 20 parisienses como uma era dourada, descobre que os seus habitantes também viam noutras épocas aquilo que a sua não possuía. O que o futuro escritor percebe é que se o passado permite chegar a um presente e melhorá-lo pela experiência e pela memória, permitindo assim o futuro, é que também há um caminho no momento presente para ser traçado e aspectos positivos a descobrir. Não há, então, “épocas douradas”, todas as épocas terão as suas vantagens para quem as quer descobrir. A nostalgia é agradável mas não deve ser impeditiva.

Será que podemos ver aqui um explanar da posição de Allen numa altura em que a sua carreia, do ponto de vista crítico e popular, já viu melhores dias? Creio que sim. Midnight in Paris é um bom Allen, uma auto-afirmação de vitalidade de um cineasta dado como preso na rotina do extertor final da sua carreira e que parece aparecer aqui mais leve, mais despreocupado e até mais sedutor do que ultimamente. Veremos se consegue, caso haja uma segunda obra em Paris (ou no próximo filme, que terá lugar em Roma), manter o bem que lhe fez a mudança de ares.

09 outubro 2011

Portugal no Coração


Aqui há uns tempos, queixei-me de que havia poucos filmes portugueses que falavam da “vida real”, dos subúrbios, das dificuldades financeiras, do ambiente desesperançado, utilizando o vernáculo comum. Não é preciso procurar mais: Sangue do meu sangue é esse filme. Pela primeira vez desde que me lembro, vejo um filme nacional com uma sopeira como personagem principal (Rita Blanco para a qual faltam adjectivos, a mostrar a tremenda actriz que é) secundada por uma filha que tenta superar as limitações do seu meio, cursando enfermagem (belíssima Cleia Almeida), por uma cabeleireira (excelente Anabela Moreira), com personagens que trabalham no Pingo Doce e com dealers em bairros degradados. As ruas estão escuras e sujas, cheias de grafitti e, pormenor fundamental, por trás de toda a acção, aparecem as telenovelas da TVI, os programas de televisão vespertinos e as canções de Tony Carreira. É como se, tendo sempre procurado o “país real”, Canijo o tivesse encontrado com maior veemência e maior relevo não no interior desertificado, mas nos subúrbios onde se tenta viver por entre o aguentar, nas enormes períferias urbanas geralmente preteridas por histórias passadas nos meios mais abastados. Parecendo esta alteração do Portugal profundo para os subúrbios coisa pequena, ao seguir a evolução demográfica o filme ganha mais actualidade, os cenários tornam-se mais reconhecíveis e adquire um lado quase documental. Portugal 2010/2011 passa mais por aqui do que por qualquer outro filme/livro/disco que tenha ouvido.

E, ao mesmo tempo, como em Noite Escura (2004), também aqui estamos sobre a égide da tragédia grega. Todas as personagens de Sangue do meu sangue sofrem precisamente pela sua hybris, pelo desafio ao destino que fazem, por tentarem viver as suas vidas fora das limitações que o seu contexto lhes impõe. Márcia, a matriarca da família, sofre as consequências de uma noite de sonho há vinte e tal anos; Cláudia paga não só pelos pecados da mãe como pela sua vontade de extravasar o seu meio, deixando o namorado de sempre por uma paixão perigosa por um professor; e Joca, o filho mais novo, acaba por arrastar a tia num percurso perigososo, por tentar ultrapassar a hierarquia do mundo em se escolheu movimentar. Neste contexto, a solução ou o paliativo para este sofrimento acaba por ser o sacrifício pessoal, as coisas que as personagens, sobretudo a mãe e a tia cabeleireira, optam por fazer para manter a unidade familiar, para proteger o futuro e por amor àqueles que as rodeiam. Por muito disfuncional ou esquálida que pareça aquela família, é a realidade que aquelas pessoas conhecem e a que pertencem e por ela dão tudo o que têm. É também sobre isso que fala Sangue do meu sangue, sobre a capacidade de amar do "bas fond" português e é esse facto que o agiganta, que o transforma de uma simples crónica familiar num épico proletário em surdina, um filme naturalista e que disseca toda uma facção do povo português.

Atinge aqui o seu corolário o percurso que João Canijo começou com Sapatos Pretos (1998 – se calhar até antes, que as duas primeiras longas, Três Menos Eu e Filha da Mãe escaparam-me), de mostrar o Portugal dos nossos dias, os seus recantos escuros, as suas limitações, o seu atavismo mas também as suas superações, a sua generosidade e a sua beleza. Não sei o que fará a seguir, mas Sangue do meu sangue parece um fim de ciclo. Sei apenas que pela sua força, pelos seus actores (de referir, por exemplo, os sempre excelentes Nuno Lopes e Beatriz Batarda em papéis secundários), pelo retrato que faz de um país por onde não passaram fundos europeus ou expos nem passarão tgvs ou fundos de resgate, é uma obra monstruosa, que merece que o Portugal contemporâneo veja e nele se reveja. Muito do que somos hoje está aqui contido dentro.

04 outubro 2011

A curva errada




Senna (2010) não consegue nem pode esconder ao que vem. No final, conspícuamente antes dos créditos finais, aparece o simbolo da fundação do corredor, dedicada a ajudar crianças pobres no Brasil. Não há qualquer pejo em assumir o panegírico, a homenagem sentida, o lado elegíaco do documentário de Asif Kapadia, onde não lhe é apontado uma única vez focado qualquer defeito ou qualquer imperfeição. Mais, este é um filme puramente desportivo, tratando a vida da sua personagem principal apenas e só na sua componente de corredor de automóveis, recriando-o como um bom filho de pais ricos, atraente, que corre como que por um puro sentido de competitividade, por uma obsessão por ganhar que o define enquanto pessoa. Ayrton Senna é, então, aqui o desportista total, alguém que conta com uma crença sobrenatural em si mesmo e num deus que lhe dará o que merece, justificando assim a sua temeridade num desporto em que um milésimo de segundo separa a vida da morte e, no meio de todo este processo, se torna um símbolo de um país a emergir de duas décadas de ditadura e a lutar com as suas dificuldades sociais.

No entanto, Senna é um filme muitíssimo incompleto. Sem qualquer insight profundo sobre a personalidade da figura que trata, vemos somente o recapitular do seu percurso público; mostra as inúmeras mulheres de quem Ayrton se rodeava mas retrata-o como um bom rapaz, o filho perfeito dos pais e de uma nação, deixando do lado a sua fama de playboy; pouco ou nada explica a turbulência que o país passava naquela altura e, por isso, justifica a adoração nacional que, essa sim, não se coíbe de dar a ver; aflora apenas tenuamente os meandros da política da Fórmula 1, deixando entrever que muito é jogado nas salas de reuniões mas pouco ou nada mostrando do que lá passa; e é um pouco exagerado no último terço quase que dando a entender que Senna, a passar um mau bocado com o bólide que lhe tinha sido entregue pela Williams-Renault e obcecado em recuperar as vitórias e as pole positions, esperava a sua morte, numa visão posterior manipuladora e impossível de comprovar. Objecto cinematográficamente limitado, sem grandes golpes de asa (com a excepção do momento em que Senna vê em directo o acidente que, apenas 24 horas antes do de Ayrton, tira a vida a Roland Ratzenberger na pista de Imola, em Itália), usando apenas imagens da época e colocando todos os depoimentos dos intervenientes em voice over, vê-se melhor enquanto documentário televisivo desportivo e nem dos melhores (The Two Escobars, de Jeff e Michael Zimbalist, sobre a relação entre o traficante Pablo Escobar e a selecção que representou a Colômbia no Mundial de 94 e que passa no ESPN, é bem mais profundo e mais interessante).

E porém, dois factores redentores podem-lhe ser apontados: um, a rivalidade de Ayrton Senna com Alain Prost, o primeiro o jovem candidato temerário mas sem conhecimento dos bastidores, o outro uma raposa velha que se vê ultrapassada pela puto maravilha, que por si só dava um filme. E, outro, concentrando temporalmente as temporadas do desporto, a capacidade de encontrar nas imagens da época (muitas filmadas a partir do próprio monolugar) e na montagem o entusiasmo que falta à Fórmula 1, um desporto que, visto em directo, faz o curling parecer interessante. Vale essencialmente como compêndio histórico de uma época melhor de um desporto que hoje, empurrado para a Ásia pelas restrições publicitárias, parece decadente (e ainda bem que já não dá em canal aberto).