26 novembro 2009

Uma segunda morte


Muitas vezes, ao longo da história do cinema, é o projecto da vida de um cineasta aquele que o acaba por colocar numa posição subalterna. Orson Welles nunca mais teve um segundo de sossego depois de Citizen Kane; Martin Scorsese passou as passas do Allgarve depois de Raging Bull; e Brian DePalma falhou genialmente no seu Bonfire of Vanities, sendo hoje injustamente considerado um realizador secundário. Em Francis Ford Coppola nem é preciso ser muito original para se referir os problemas que surgiram após One From the Heart, simultaneamente a nível de credibilidade artística (apesar de Rumble Fish, Peggy Sue Got Married e Bram Stoker’s Dracula) e de capacidade financeira.

Neste contexto, mais do que uma segunda vida, a carreira de Coppola quis recomeçar com Youth Without Youth é, mais do que uma segunda vida, uma segunda morte. Tetro, novo filme do cineasta, história de um família desavinda que pensa avançar em direcção à reconciliação mas que acaba por se afogar no derradeiro abismo, em nada impede a queda, mesmo que não a acentue tanto quanto a obra anterior. Num preto e branco expressionista, a lembrar Rumble Fish (como o lembra a frase "He´s like a genius without enough accomplishment", que rima com a frase "He´s like royalty in exile" desse mesmo filme), em tons propositadamente arty, nomeadamente nos interlúdios a cores, com um Vincent Gallo inconsequente e uma história que se arrasta sem grande necessidade, é um filme sem alma mas que quer parecer relevante, demonstrando até um certo desespero no modo como tenta chamar a atenção através dos ângulos de câmara ou do argumento demasiado rebuscado, sobretudo na segunda metade do filme. Como quem veste o casaco de peles para ir jantar ao McDonald's.

O que levanta uma questão: se estes são os filmes que Coppola queria fazer desde sempre, supostamente arriscados e experimentais, até que ponto as obras-primas que fez não o foram também muito por culpa dos constrangimentos de que alegadamente se terá entretanto libertado? Por outras palavras, até que ponto o sistema que Coppola agora critica não ajudou a limar e a controlar a megalomania que sempre teve, melhorando assim a qualidade dos filmes? A resposta, para aqueles como eu que sempre defenderam o autor contra o estúdio, pode ser assustadora.

23 novembro 2009

TAKE 20 - Novembro


A Take é como as derrotas do Benfica - tarda mas não falha. E cá está a edição de Novembro, capa dedicada a Francis Ford Coppola. Da minha parte contem com críticas a Welcome, Pride and Glory, ao magnífico Andando, Morrer como um Homem, Il Divo e Desgraça, entrevistas a Fernando Lopes, Agnès Jaoui e Nuno Galopim, coberturas da Festa do Cinema Francês e do Queer Lisboa e com a antevisão ao ciclo Monte Hellman.


Passem por lá, que a gerência agradece.

20 novembro 2009

O regresso

Não deve ser novidade para muitos, mas só esta semana reparei que a rubrica "Cinco Noites, Cinco Filmes" está de regresso à RTP 2. Apesar da hora tardia (filmes a começar pela meia-noite) há que dar o mérito a quem tomou a medida e esperar que a programação seja equilibrada e relevante. Ao fim de anos a negligenciar o cinema na estação pública, alguém deve ter acordado.

17 novembro 2009

Conto de Fadas do Estoril à Avenida de Roma


O Estoril Film Festival acabou este sábado. E teve tudo para ter sido um sucesso, desde a habitual presença de grandes nomes do cinema internacional às ante-estreias de filmes dos mais esperados dos próximos 12 meses, desde o óptimo Os Sorrisos do Destino de Fernando Lopes até aos muito aguardados Tetro, The White Ribbon e Un Prophète. Contudo, não lá estive, nem este ano nem nos anos anteriores, numa decisão a meio caminho entre o prático e o ideológico.

No ambito prático, vivendo na linha de Sintra, teria de ou comprar bilhete(s) para outra linha de comboio ou ir de carro, gastando dinheiro que não tenho. Adicionalmente, teria de jantar e ou lanchar quando estivesse no festival, o que faria a despesa crescer. Dado que grande parte dos filmes serão lançados em sala, pareceu-me pouco recompensador, mesmo que me doa não ter visto Francis Coppola, David Cronenberg ou Juliette Binoche.

Mas o âmbito ideológico falou ainda mais forte. Peguemos no festival na sua essência: um produtor com problemas económicos conhecidos (uma falência aberta há poucos anos) resolve juntar meia-dúzia dos filmes que vai lançar, alguns amigos, reunir tudo num casino, que ajuda a dar charme, e cria uma secção competitiva, sem grande interesse na medida em que se o tivesse, o mesmo produtor, na sua faceta de distribuidor, estreá-los-ia em sala. E pronto, nasce um festival que vale essencialmente por esses amigos que o produtor traz.

E, de caminho lembramo-nos de um pequeno cinema, apesar de tudo com três salas, sito na Avenida de Roma, chamado King mas cujo estatuto real parece o de monarca deposto. As cadeiras mais desconfortáveis que alguma vez experimentei, um interior cavernoso, coberto de carpetes que provavelmente não são limpas há muitos meses e que, mesmo ao fim-de-semana, tem apenas meia-dúzia de resistentes que ainda não foram ver esses filmes ao Monumental ou ao um pouco menos decrépito Fonte Nova ou por um ou outro morador da zona. Ao longe, lembro-me de outros tempos em que aquelas salas estavam preenchidas, em que se viam lá excelentes filmes, em que, em suma, a sensação de abandono era apenas um pesadelo distante, tendo os empregados realmente trabalho a desempenhar e não que suportar o tédio enquanto o patrão serve champagne aos comparsas no casino.

Alguém perguntou ao sr. Branco quanto do dinheiro que investe no Estoril Film Festival poderia ser usado para re-tornar o King num cinema atractivo, com filmes interessantes que lá passassem em exclusivo (deixem-me sonhar: com uma sala permanentemente dedicada ao cinema asiático contemporâneo) ou para dar vida ao Nimas (porque não como cinema de reposição?) em vez de o transformar num espaço multi-funções com rentabilidade ainda por demonstrar? Não, e o próprio decerto deve estar-se borrifando. No fundo, ele está apenas a fazer aquilo que o país faz. O trabalho é precário ou inexistente? Não há problema, temos a maior àrvore de Natal do Mundo. O ensino é cada vez pior? Temos aqui uns computadores azulinhos para ofertar, pelo que está resolvido. A cultura está de rastos e o cinema ainda mais pelo chão se encontra? Não; se assim fosse, teríamos o Coppola, o Cronenberg e a Binoche no Casino?

E então, como por magia, parece estar tudo bem. Mesmo que filmes como Takeshis' e Ne Touchez Pas la Hache tenham sido remetidos para dvd ou que a estreia de filmes como A Turma ou Ne Change Rien e a reposição de O Sangue tenham ocorrido num centro comercial. De luxo, claro está, que é o que importa acima de tudo.

15 novembro 2009

Sumaríssimos (7)


The Brothers Bloom tem, antes de tudo, um mérito: demonstra que Wes Anderson criou descendência. O segundo filme de tem um mesmo leque de personagens neuróticas, a um tempo cómicas e comoventes, o mesmo sentido romanesco na escrita do argumento, a mesma neurose omnipresente e um idêntica cuidado visual. Contudo, o realizador Rian Johnson mascara essas componentes de filme de golpe, onde as sucessivas fraudes acabam por servir de esqueleto à narrativa que o espectador acompanha. É neste aspecto que The Brothers Bloom acaba por me perder, tornando-se algo repetitivo, cansativo e previsível, apesar das diferentes cidades em que se passa e da tentativa de encenar cada golpe como uma micro-narrativa. Apesar disso, é uma boa surpresa, com personagens bem construídas, uma história interessante, actores que defendem muito bem as suas personagens e momentos francamente bons – destaque para o malabarismo de motoserras por parte de Rachel Weisz, das mais originais cenas de cinema que vi este ano. Consiga Rian Johnson afastar-se da influência de Wes Anderson, multifacetar os argumentos e dosear a sua criatividade (a páginas tantas, parece um filme demasiado cheio) e temos cineasta.

10 novembro 2009

O melhor depois de Preud'homme


Flint, Michigan


Antes do som e da fúria que Capitalism: A Love Story causará, importa caracterizar desde logo o método Michael Moore. A estrutura documental de filmes como Bowling for Columbine (2002) é directamente herdada da televisão, combinando entrevistas, visitas a locais e pessoas, entrevistas e acompanhamento situacional. A estas componentes juntam-se os dois que mais diferem da maior parte dos documentários: a componente humorística, que impede que Moore alguma vez seja considerado artista por quem quer que seja; e a utilização de uma "personagem" Michael Moore, espécie de americano típico que utiliza a câmara como arma mas que, em vez de vinculado aos ideais do GOP, é assumidamente liberal, na conotação americana do termo. Assim, o cinema de Moore utiliza uma camada de humor para impor os factos investigados, ultrapassando a habitual monotonia apontada aos democratas e auto-promovendo-se no sentido de tornar os seus filmes cada vez mais vistos. É isto que ninguém lhe perdoa.

E é por isto que Roger & Me (1989), primeiro documentário de Moore aparece hoje como tão desconcertante e, no limite, como a sua melhor obra. Todo o seu cinema estava ainda numa fase embrionária, em que os motivos gerais já lá estavam mas que ainda não tinham nem o carácter óbvio nem o lado determinante que hoje lhes é atribuído. Moore na primeira pessoa, sim, mas ainda não era a estrela do filme; pose de americano típico, sim, mas uma barriga menos luxuosa e um lado menos caricatural, mais credível e natural; entrevistas, sim, mas muito menos manipuladas, ainda centradas única e exclusivamente no assunto em causa; lado eminentemente político e esquerdista, mas apontando ainda ao senso comum e aos valores básicos e não a qualquer radicalismo que eventualmente se lhe possa apontar.



Filme sobre a terra queimada em que se tornou a cidade natal de Moore, Flint, no estado do Michigan, quando a General Motors decidiu eliminar 30 mil postos de trabalho, entretanto exportados para o México, intercala cenas do quotidiano da população, acompanha um delegado do Xerife local cuja função é despejar inquilinos incumpridores e mostra o percurso de Moore enquanto tenta chegar à palavra com Roger Smith, o obscenamente remunerado presidente da General Motors. Longe de espalhafatoso, mantendo os momentos bombásticos ao mínimo (a piada anti-semita do apresentador de televisão), é um filme que opera uma curiosa inversão face aos filmes posteriores que conhecemos: em vez de partir do nacional para o local (do governo para as pessoas) começa antes por ser um filme sobre aquela cidade, beneficiando com o conhecimento de causa do cineasta. São abundantes os planos a mostrar a degradação, a comparar o espaço com o passado (e, atente-se, a um passado que pode ser mera construção nostálgica), cartografando a perda de horizontes e o fim do sonho americano à medida que a economia se ia globalizando. O que o torna algo de mais emotivo, de mais sério e menos generalizador, como se houvesse uma espécie de deriva "neo-realista", saindo para a rua e vendo, e não uma deriva tão circence – não há nenhum momento tão grotesco e explorador como o da mãe do soldado morto no Iraque como em Farenheit 911 (2004). Para o bem e para o mal, é um filme claramente beneficiado pelo escopo mais pequeno, mesmo que o inimigo (a cultura empresarial os EUA), seja o mesmo.

Depois disto, o caminho foi diferente, com momentos muito bons e outros menos positivos. Mas é pena que a este Roger & Me, sóbrio, inteligente, comovente e completamente sério, não tenha sido dada a atenção merecida. A rever quando, daqui a umas semanas nos quiserem de novo convencer que Moore é apenas o palhaço rico da esquerda americana. Roger & Me é muito engraçado, utilizando toda a panóplia de métodos de comédia, dos mais contidos aos mais satíricos e insultuosos. Mas quem pensa que este filme é para rir está bem enganado. É do mais sério que vi nos últimos tempos.

07 novembro 2009

Bellum sine bello

Dos filmes de John McTiernan, prefiro Predator (1987), Die Hard (1988, que filme do catano!) e, sobretudo, The Last Action Hero (1993), dos melhores exercícios de mise-en-abime da década de 1990. Mas nunca tinha prestado a devida atenção a este magnífico Hunt for Red October (1990), talvez porque tantas vezes passou na televisão que pensei haver sempre outra oportunidade de o ver. Houve e em boa hora, pois dos filmes feitos aquando do final da Guerra Fria, o de McTiernan não apenas é o que tem o substracto mais subtil como o que lhe adiciona um maior cuidado e interesse estéticos.

Comecemos pelo lado político. Ao contrário de outros filmes que têm na propaganda o seu fulcro (veja-se o horroroso The House of Russia de Fred Schepsi, 1991), o de McTiernan consegue desenhar a ideia da superioridade ocidental em apenas duas sequências, cada uma com mais tacto do que a outra: a conversa entre Sean Connery e Sam Neill nos aposentos do comandante, onde o sonho da liberdade é enumerado com tacto e descrição; e a conversa final entre Connery e Alec Baldwin, onde são frisadas as semelhanças mais do que as diferenças. E, parecendo que não, este ponto é importante. Porque é o que o localiza em pleno estertor final da referida guerra, quando já não era necessário o fulgor propagandístico mas antes a aproximação. De certo modo, apesar dos seus inequívocos bons e maus, ao longo deste filme quase conseguimos ver Reagan passear com Gorbatchev na Praça Vermelha. Num filme onde o espectro da guerra nuclear paira sempre, é obra.


John McTiernan, ao contrário de um James Cameron, que sabe escolher quando ser clássico (Titanic, etc) e quando ser moderno ou pós-moderno (o novo Avatar, espera-se), é uma perfeita mescla de ambas as hipóteses. Por um lado, no rigor dos planos, na linearidade no bullshit do filme, no seu classicismo apenas entrecortado pelos cibernéticos indicadores de hora e local, quase que é um filme que se poderia imaginar noutras eras. Tudo isto em claro ambiente pipoqueiro, de blockbuster típico dos pós-76, com um orçamento confortabilíssimo e com elenco cheio de nomes reconhecíveis (Connery, Baldwin, Neill, James Earl Jones, Scott Glenn ou Stellan Skarsgaard), onde é óbvio que o espectáculo é a principal motivação. Mas o espectáculo... pouco tem de explosivo. Com a excepção da fabulosa acoplagem do helicóptero ao submarino e apesar do tom grandioso que empresta à sua progressão e filmagem, ... Red October mais não é do que um jogo do gato e do rato estendido para duas horas e um quarto, onde o interesse reside mais na gestão dos encontros e desencontros, dificuldades técnicas e relação entre a ordem política e o desempenho militar que um filme de confrontação, na constante expectativa de um encontro que parece inevitável. Como resume brilhantemente a personagem de Sean Connery, é “uma guerra sem guerra” e o filme sabe mostrá-lo.

E quando o encontro chega, é magnífico. As melhores cenas do filme, aliás, dão-se na última meia-hora. Primeiro, quando os militares americanos e o analista da CIA entram no submarino russo. Apesar de absolutamente equivalente, esse encontro é dado como se fosse um encontro entre humanos e alienígenas, em posições inter-mutáveis. Há uma brilhante tensão, em constante crescimento nos seus passos titubeantes apesar do respeito pelo protocolo militar, gerida magníficamente por McTiernan, que contamina o momento. E, finalmente, o belíssimo combate entre o submarino russo extraviado e o “oficial”, que coloca uma hipótese estimulante: e se Hunt for Red October fosse, afinal, um swashbuckler entre submarinos? Fazia todo o sentido e só contibuía para o fascínio que exerce.


Como os outros filmes que McTiernan fez entre 1985 e 1995 e aos quais se pode juntar o muito razoável Basic (2003), Hunt for Red October só faz lamentar que a carreira de McTiernan tenha sofrido os empecilhos que sofreu por parte dos estúdios, com especial enfase para os problemas que resultaram nos cortes e no descrédito de The 13th Warrior (1999) e Rollerball (2002) – falamos de um cineasta com apenas 11 filmes em 22 anos e que não filma desde 2003. Afinal de contas, era disto que se devia falar quando se fala de thriller político, filme de acção ou blockbuster. A ser visto pelos produtores da saga Bourne.

01 novembro 2009

Sérgio RIP


A morte é por definição imprevisível, é certo, mas soubesse eu que o dia de hoje traria a noticia da morte de António Sérgio e não teria poluído este blogue com mais um texto sobre bola.


Comecei a ouvir o Lobo há sensivelmente dez anos, companhia noctívaga de insónias ou trabalhos atrasados. A ele agradeço ter descoberto, por exemplo, os Pavement e os Red House Painters, que hoje muito admiro. E nunca deixei de me sentir intrigado, fascinado até, por aquela rouquíssima voz, e pelas dificuldades que me dava em fazer perceber os nomes das bandas que passava.

Um obrigado, António Sérgio. Se houver mesmo um Great Gig in the Sky, que o esteja já a ver.

E como esta homenagem não pode ser silenciosa, aqui vai um nome da sua preferência