16 fevereiro 2011

A dignidade do mamarracho


A Família Real Britânica é o mamarracho mais caro do mundo. Fundado na ideia do direito divino ao trono e sem qualquer poder executivo, são um garante de uma sociedade de classes com elementos anacrónicos e um conjunto de entidades e práticas tão inúteis quanto tradicionais. Afinal, alguém imagina o Reino Unido sem eles? Eu não e lembro que na ocasião em que foi tentada a República, não resultou muito bem.

Apesar de, segundo o realizador Tom Hooper, a génese do projecto ser muito anterior, é difícil não ver o muito nomeado The King’s Speech como vindo na senda de The Queen. Porque com esse belíssimo filme, Stephen Frears traz para o “estrelato” uma rainha humanizada e um ethos relacionado com a dignidade em todas as circunstâncias. O filme que dará o Óscar de Melhor Actor a Colin Firth (e quem sabe, talvez, ao excelente Geoffrey Rush) pelo retrato de um Jorge VI em luta com a sua gaguez e com os seus medos mais profundos segue o mesmo caminho, ainda para mais tratando de uma maleita que, tendo o monarca de falar ao país durante a 2ª Grande Guerra, assumia contornos de assunto público.

Poderia ser um filme muito interessante, não fosse o carácter enfadonho a que não consegue escapar. Na senda de um James Ivory (o cineasta mais chato do mundo), a reconstituição é tão perfeita, a escrita do argumento tão fluente e a imaginação tão pouca que o que poderia ser um interessante filme histórico torna-se num bocejo de duas horas. É como numa casa, um pouco de pó dá personalidade. The King’s Speech é imaculadamente limpo.

14 fevereiro 2011

10 fevereiro 2011

Cagar num caleidoscópio


Oh! Tristes aqueles que ainda não viram os males do século através do estrabismo de Alejandro Gonzalez Iñarritu! A sua mundividência de sarjeta, consubstanciada em obras da prima como Amor Cão, 21 Gramas ou o sacrossanto Babel, atinge com o novo Biutiful o supra-sumo da coerência artística: a capacidade de fazer sempre maus filmes, qualquer que seja o argumentista (parece que, afinal, Guillermo Arriaga era apenas uma pústula no pestilento todo anterior), a localização geográfica ou a mão-de-obra (vulgo actores). Para o mexicano, o mundo é um gigantesco esgoto a céu aberto, onde os mais pobres tentam encontrar beleza e felicidade no meio do lodo. Até aí tudo bem (estou de acordo), não fosse a forma igualmente feia como Iñarritu filma. Ao ver aquele desfile de tom cinzentos, de planos mal-amanhados a armar ao artístico, todo aquele asco dos planos de câmara à mão prometendo crueza e verdade, tudo cheio de certezas acerca da sua validade estética e do estado do mundo actual. O único resultado prático acaba por ser um visual idêntico à vista de um caleidoscópio para dentro do qual alguém esvaziou os intestinos.

Político, muito político é o seu cinema! Iñarritu é um estudioso da decadência civilizacional, um académico do apocalipse iminente e dono de várias pós-graduações em imigração, injustiça social e infelicidade em geral. O seu olhar é bem-intencionado, pretende o melhor para tudo e para todos e tem uma enorme vontade de harmonia. Mas pouco mais tem do que essas boas vontades. Não me recordo de, em qualquer um dos seus filmes, ter visto algo de semelhante a uma ideia, um ponto de vista, uma perspectiva própria. Habitualmente, o cinema é meio para diversas denúncias sociais e políticas, mostrando realidades sem destaque na imprensa normalizada e na televisão exígua. Mas a pergunta mantém-se: quando o faz sem perspectiva, debitando lugares comuns e, ainda por cima, sem ponta de talento estético, não enfraquecerá precisamente a mesma denúncia que tenta fazer?

Adicionalmente, permitam-me interrogar: Biutiful é sobre o quê? Sinceramente, não percebi. Há um herói, terminalmente enfermo, que fala com os mortos, que com a companheira prostituta, os filhos, os imigrantes que ajuda a explorar e os bairros mais pobres de Barcelona, caminha numa lenta viagem em direcção à morte. E quando digo lenta, é no sentido literal: para o mexicano, mais importante do que filmar o vazio é esticá-lo em durações pouco recomendadas, sobretudo em filmes cujo interesse é zero. Perdido em si mesmo, no seu deserto de ideias que confunde com uma floresta, é uma experiência dolorosa, a quarta que Alejandro Gonzalez Iñarritu nos deu em outros tantos filmes.

E se assim é, se todos os seus filmes são maus, porque continuo a ir vê-los? Os outros, já não sei dizer porque os vi, a este, porque estava frio na rua e a sala estava quente e porque, naquela particular noite de sábado, não havia bola de jeito na tv. Ah, e porque Javier Bardem é sempre excelente, mesmo quando nem o papel nem o filme o merecem.

08 fevereiro 2011

O Outro que era Ela

Lentamente, Darren Aronofsky transforma-se num autor a seguir com toda a atenção no panorama cinematográfico norte-americano. Pi e Requiem para um sonho foram filmes de culto, que já anunciavam este interesse actual mas que, como um cantor de voz potente mas que ainda não a sabe controlar, se perdiam frequentemente num maneirismo decorrente do fascínio com as suas próprias potencialidades. Depois de The Fountain, que ainda não vi, o caminho da manipulação fílmica e da profusão de efeitos visuais e narrativos foi controlado e posto em segundo plano em prol de uma clara herança naturalista, visível nos abundantes momentos em que a câmara à mão persegue os movimentos dos actores bem como pelos diversos cenários realistas e mundanos. Depois de The Wrestler ter estruturado este modo de filmar, surge agora Black Swan, que o expande e amplifica.

No limite, Black Swan funciona lindamente enquanto duplo do filme anterior. Aronofsky parece estar a especializar-se nos requiens daqueles que sonham e a quem o sonho destrói a vida. Nina é uma jovem bailarina que, instada pela mãe, que abdicou do seu próprio sonho naquela profissão para a criar (possessiva e castradora Barbara Hershey, num regresso bem conseguido), almeja a perfeição nos seus movimentos em detrimento do sentimento, o que a retrai enquanto bailarina. Quando a sua disciplina férrea dá frutos e consegue o papel de Rainha Cisne em O Lago dos Cisnes, tem de pôr de lado a sua pureza e entrar no seu lado negro utilizando sobretudo os seus impulsos sexuais largamente reprimidos. O caminho seguido é então o de uma descida aos abismos que Nina desconhecia ter, enquanto cresce progressivamente o seu talento. Como o amigo diz a Gustav Aschenbach no Morte em Veneza de Visconti, “arte é corrupção”. Mas a que custo?

Black Swan é um filme muitíssimo inteligente no modo como, em termos estruturais e narrativos, utiliza a narrativa de O Lago dos Cisnes, no seu esquema d passagem da pureza à corrupção (inicialmente personificada na boa prestação de Mila Kunis, a voz de Meg de Family Guy) e como, desde o início, vai inserindo pequenas notas de perturbação que irão crescendo até se tornarem o cerne do filme (é belíssima a cena em que Nina encontra o seu duplo, numa passagem aérea nova-iorquina). Porém, é precisamente o exponenciar dessa componente de perturbação que ocupa a última meia hora, em que a obra avança irremediavelmente para um final climático e onde o excesso se instala. Não é que alguma vez perca a coerência narrativa, mas torna-se um filme menos coeso. Pecado menor, pois os ambientes reminiscentes de Polanski (tem-se falado muito de Repulsion, pela sua marcada componente sexual, mas a tensão malsã que cresce lentamente e tudo contamina lembra Rosemary’s Baby) e do Carrie de Brian DePalma (grandes paralelismos na relação entre mãe e filha), bem como o teor simultaneamente adulto, experimental e comercial do filme, tornam-no um objecto a milhas de praticamente tudo o que por aí se vê.

Duas notas finais. Uma, para a extraordinária entrega e talento de Natalie Portman, a serem merecidamente coroadas com um Óscar. Já muito acima da média em papéis pequenos em filmes como Heat, Everyone Says I Love You e Mars Attacks, perdeu os pudores (recordo-me de a ter lido dizer que nunca faria nada num filme que não fizesse na vida real, um insulto à nobre profissão de actor) e, a partir de Closer, tornou-se uma das mais interessantes actrizes do nosso tempo. Outra, porque era capaz de jurar que vi um fantasma neste filme: a actriz que faz da decana que Nina destrona é tão, mas tão parecida com a Winona Ryder…

02 fevereiro 2011

Contos das quatro estações


Para Mike Leigh, em muitos anos de carreira, parece haver uma questão subjacente a quase todos os filmes: o que é a felicidade? O que se altera, moderadamente, de filme para filme, é o modo de a perguntar. Assim, pondo de lado o ímpar Naked (1994), durante muito tempo Leigh colocou essa questão dentro do universo familiar, organizando filmes como Secrets and Lies (2002) e o menor All or Nothing (1999) em crescendo até atingirem finais catárticos, numa progressão onde a atenção à personagem era fundamental e onde o social, não estando em primeiro plano como na obra de Ken Loach, era sombra omnipresente. O anterior (e mediano) Happy Go Lucky parece ter colocado uma nova matiz nesta questão: como é que as pessoas felizes lidam com a infelicidade alheia? No filme anterior, era através da postura francamente irritante da personagem de Sally Hawkins, quase psicótica no exterior da sua alegria.

Neste novo e belíssimo Another Year, o feliz casal Tom e Gerri (sim, é isso mesmo) serve como que de pêndulo entre diversas figuras a braços com vectores da infelicidade como a solidão, a decadência corporal ou a morte de entes queridos. Filme solene e de progressão lenta, narrativamente estruturado de acordo com as estações do ano, vemos nele como este casal serve de amparo, conselheiro, catalisador ou esperança àqueles que os rodeiam, sobretudo à estouvada Mary (extraordinária Leslie Manville, mais um dos grandes desempenhos que Leigh saca dos seus actores). Longe de indiferentes ou meros espectadores, Tom (grande Jim Broadbent) e Gerri (belíssima Ruth Sheen) vêem passar à sua frente todos os males do mundo, o que contribui para uma vertente solidária, para uma total placidez e para uma certeza absoluta da sua felicidade. A sua tarefa acaba por ser a de gerir a infelicidade dos que os rodeiam, conquanto estes o mereçam, servindo quase de paliativo para a sua insatisfação.

O cinema de Mike Leigh está longe de ter, nos tempos que correm, uma qualquer inovação estética ou urgência de actualidade. Como, por exemplo, o de Woody Allen, tem a fluência do hábito e a facilidade da prática. Mas a diferença fundamental entre o britânico e o nova-iorquino é que enquanto o segundo se deixou prender na rotina, o primeiro, na harmonia dos seus objectos, nas diferentes pequenas mutações formais, na humanidade que destila nas suas personagens e nas narrativas que vai acrescentando ao seu tecido contínuo, consegue aqui mais um exemplo de vitalidade invejável. Aqui, por exemplo, é curioso que enquanto a Primavera e o Verão replicam as cores de Happy Go Lucky, mais alegres e solarengas, o Outono e o Inverno aproximam-se, cromaticamente, dos tons cinzentos e sombrios dos filmes da década. Quem sabe se, baseados nisto, poderemos ver no circulo perfeito de Another Year uma súmula da carreira do cineasta.