27 fevereiro 2008

Noites Brancas

Mais um anos, mais uma edição dos Óscares, mais uma noite mal dormida. Eu não queria, mas se começo a ver aquela merda, só páro quando aquilo termina. E, como toda a gente, também tenho mais que fazer do que ver um programa de variedades da RTP com um orçamento exponencialmente maior e com mais pompa, que é o que mais se compara àquela cerimónia.

Mas, finalmente, ao fim de vários anos de noites brancas de mediocridade, em 2008 descobri porque vejo os Óscares. Neste caso, não foi para ver filmes de que gostasse premiados - o dos Coen ainda não estreou e ainda não tive tempo para ver o novo de Paul Thomas Anderson, que foi o grande perdedor da noite. Mas as únicas partes da cerimónia em que emocionei foi nas montagens acerca de grandes do cinema homenageados pela Academia. Aí, viu-se Cary Grant, grisalho mas sempre elegante, chorar em frente aos seus pares. Viu-se Ingrid Bergman e Audrey Hepburn, já pródigas em rugas mas com a classe de sempre, apresentarem prémios. Viu-se John Wayne, já em final de carreira, finalmente segurar o Óscar com aquelas suas mãos descomunais. E viu-se Chaplin, velho, inchado e à beira das lágrimas, agradecer com uma humildade surreal para um génio, a atenção que, tarde e a más horas, a Academia lhe deu.

Percebi, então, que vejo os Óscares em busca da Hollywood clássica que tanto aprecio e que, tenho-o sempre em mente, nunca voltará. Quando a certeza se superiorizar à busca, deixarei de os ver.


(Outro) Mundo Fantasma


Tem um filme de ser brilhante ou genial para que a sua visão seja prazenteira? Naturalmente que não e Juno de Jason Reitman, a versão 2008 do filme independente que a Academia todos os anos resolve destacar nas suas nomeações para tentar fingir que o dinheiro não é a sua prioridade, prova-o facilmente.

História de uma gravidez indesejada que se torna numa lição de maturidade para a personagem-título (se o Óscar tivesse ido para Ellen Page, teria sido muito bem entregue), Juno é um filme quente e acolhedor sobre encontrar um lugar no mundo e sobre o difícil caminho para a felicidade. Situado numa small town, preenche a sua hora e quarenta minutos com interessantes pedaços de idiossincrasia humana, dando o cunho de liberdade a um espaço que, muitas vezes ao longo da história do Cinema, é tido como claustrofóbico – veja-se a madrasta fetichista por canídeos e o interesse amoroso misto de marrão e jock de Michael Cera para se ter uma ideia.

Jason Reitman, filho de um dos mais bem-sucedidos tarefeiros norte-americanos das ultimas duas décadas, Ivan Reitman, demonstra ter um bom sentido de imagem (como na cena inicial, o olhar sobre o cadeirão que se abre para toda a narrativa) e forte capacidade para utilizar a música enquanto meio de reflexão e concretização das suas ideias cinematográficas (lembremo-nos da cena final, deliciosa de contenção no meio da sua descoberta amorosa). Não se pode, contudo, é dizer que, pelo menos de momento, tenha demonstrado capacidade ou vontade de inovar dentro do género que escolheu para este filme. Inversamente, dá a ideia de que segue uma espécie de livro de estilo sobre o que é “fazer independente” , não sendo um objecto particularmente pessoal. Pior, há a sensação de que Juno se esgota em si mesmo, não ficando muito em que pensar ou que tratar depois da sua visão.

É pela sua personagem principal que Juno será recordado. Neurótica, distante e com algo de profundamente agressivo na sua eloquência, Juno é, por si só, um mundo fantasma, um exemplo de uma adolescência que descobre ter tudo a ganhar com a sua abertura ao mundo e uma deliciosa portadora das dores de crescimento. Se o filme se bem e interessa enquanto dura é por ela e pelo garbo com que Ellen Page lhe dá vida. Não é Little Miss Sunshine (o destaque independente dos Óscares no ano passado), mas ao menos não chateia.

13 fevereiro 2008

Ficar é morrer

Will: Oh, come on! What? Why is it always this? I mean, I fuckin' owe it to myself to do this or that. What if I don't want to?

Chuckie: No. No, no no no. Fuck you, you don't owe it to yourself man, you owe it to me, 'cause tomorrow I'm gonna wake up and I'll be 50, and I'll still be doin' this shit. And that's all right. That's fine. I mean, you're sittin' on a winnin' lottery ticket. You're too much of a pussy to cash it in, and that's bullshit. 'Cause I'd do fuckin' anything to have what you got. So would any of these fuckin' guys. It'd be an insult to us if you're still here in 20 years. Hangin' around here is a fuckin' waste of your time.
Will: You don't know that...
Chuckie: Let me tell you what I know. Every day I come by your house and I pick you up. And we go out. We have a few drinks, and a few laughs, and it's great. But you know what the best part of my day is? For about ten seconds, from when I pull up to the curb and when I get to your door, cause I think, maybe I'll get up there and I'll knock on the door and you won't be there. No goodbye. No see you later. No nothing. You just left. I don't know much, but I know that.
idem

Esperar por algo melhor

Will: Why shouldn't I work for the N.S.A.? That's a tough one, but I'll take a shot. Say I'm working at N.S.A. Somebody puts a code on my desk, something nobody else can break. Maybe I take a shot at it and maybe I break it. And I'm real happy with myself, 'cause I did my job well. But maybe that code was the location of some rebel army in North Africa or the Middle East. Once they have that location, they bomb the village where the rebels were hiding and fifteen hundred people I never met, never had no problem with get killed. Now the politicians are sayin', "Oh, Send in the marines to secure the area" 'cause they don't give a shit. It won't be their kid over there, gettin' shot. Just like it wasn't them when their number got called, 'cause they were pullin' a tour in the National Guard. It'll be some kid from Southie takin' shrapnel in the ass. And he comes back to find that the plant he used to work at got exported to the country he just got back from. And the guy who put the shrapnel in his ass got his old job, 'cause he'll work for fifteen cents a day and no bathroom breaks. Meanwhile he realizes the only reason he was over there in the first place was so we could install a government that would sell us oil at a good price. And of course the oil companies used the skirmish over there to scare up domestic oil prices. A cute little ancillary benefit for them, but it ain't helping my buddy at two-fifty a gallon. And they're takin' their sweet time bringin' the oil back of course, and maybe even took the liberty of hiring an alcoholic skipper who likes to drink martinis and fuckin' play slalom with the icebergs, and it ain't too long 'til he hits one, spills the oil and kills all the sea life in the North Atlantic. So now my buddy's out of work and he can't afford to drive, so he's got to walk to the fuckin' job interviews, which sucks 'cause the shrapnel in his ass is givin' him chronic hemorrhoids. And meanwhile he's starvin' 'cause every time he tries to get a bite to eat the only blue plate special they're servin' is North Atlantic scrod with Quaker State. So what did I think? I'm holdin' out for somethin' better. I figure fuck it, while I'm at it why not just shoot my buddy, take his job, give it to his sworn enemy, hike up gas prices, bomb a village, club a baby seal, hit the hash pipe and join the National Guard? I could be elected president.
in Good Will Hunting de Gus van Sant

11 fevereiro 2008

Requiem por um cineasta muito prezado

Woody Allen tem utilizado o crime como método de encenação da sua problemática das relações humanas desde, pelo menos, o sucesso de Crimes and Misdemeanours, em 1989. Neste método, longe das comédias dramáticas (ou dramas cómicos) de relações humanas de que fazem parte os seminais Annie Hall (1977), Manhattan (1979) ou Hannah and Her Sisters (1986), encontrou espaço para explorar um muito Bergmaniano tema da sua predilecção: o sentimento de culpa, tanto maior quanto não é acompanhado de uma punição por parte do mundo exterior. Neste novo Cassandra’s Dream, que de novo pouco mais tem do que a data, volta a fazê-lo, tomando de novo Londres como local do crime. Após o seu visionamento, a pergunta que se apraz fazer é: o que é que Woody Allen ainda quer do cinema? É que, cada vez mais, o cinema parece já ter recebido tudo o que tinha a receber de Woody Allen.

História de dois irmãos proletários ingleses com a mania das grandezas (competentes Ewan McGregor e, estranhe-se, Colin Farrell), sempre em busca de um esquema que os liberte da sua condição social – a sociedade de classes britânica foi bem apreendida por Allen – que, a pedido do tio que sempre lhes amparou os golpes (clássico Tom Wilkinson), assassinam uma testemunha incómoda, não ofende ninguém. Pelo contrário, são 108 minutos razoavelmente bem burilados e filmados com uma sabedoria feita de muitos anos, onde até pode ser encontrada uma síntese de algumas das obsessões do nova-iorquino. O problema é o tom mecânico, habitual, paradigmático de uma história que desaproveita o sangue novo trazido pela Londres de Match Point (2005), numa história indiferente e banal, um pouco à imagem do que já fazia Scoop (2006).

O que levanta uma questão: até que ponto, caso haja alguma nova vitalidade com a mudança para Barcelona, essa não será prontamente eliminada pelo lado esquemático e habitual do cinema de Allen? Há razões para que a carreira de Allen tenha dado esta volta, em que o cinema mais parece um emprego do que uma arte: a idade já não perdoa e as conquistas foram mais do que muitas, podendo estar o cineasta num período de descanso do guerreiro. Nada de novo, num fundo: o mesmo parece ter acontecido, em larga medida, no final da carreira de Billy Wilder. Mas custa ver um cineasta de que se gosta muito enveredar por filmes menores (mesmo que nunca maus). E, custa ainda mais ter a consciência de que isso já dificilmente mudará.

08 fevereiro 2008

Nunca Mais!

A moral é um privilégio. As inquietações morais tendem a desenvolver-se sobretudo em contextos que não impeçam a sobrevivência básica. Quando esta está em perigo, na maioria dos casos as pessoas optam por se sair o melhor possível, deixando para o futuro qualquer culpa que daí advenha – mesmo que depois não se fale nela. É a isso que se dá o nome de instinto de sobrevivência.

4 meses, 3 semanas e 2 dias de Cristian Mungiu, Palma de Ouro em Cannes no ano transacto, estava obviamente na linha da frente para receber aquele prémio. É um filme duro, impressionante, de uma base realista sem contemplações para com o espectador, num tipo de cinema que recentemente tem encontrado aclamação crítica nos filmes dos irmãos Dardenne. A história de duas colegas de faculdade que, durante o “reinado” de Ceausescu, são obrigadas, respectivamente, a fazer e a criar condições para um aborto clandestino é filmada num estilo de betão, que contribui grandemente para a imersão na realidade demonstrada.


E essa realidade é uma terra queimada, onde quase nada se pode fazer ou consumir mas onde tudo pode ser feito ou consumido numa economia paralela que se aproveita da situação. Na Roménia de 1987, mil olhos parecem vigiar tudo e todos a cada momento. Filme inesperadamente sensorial (depois de o ver, nenhuma falha numa lâmpada fluorescente tem o mesmo efeito em nós), segue sempre Otília, a colega de quarto que ajuda a sua amiga grávida. Mungiu é extremamente destro no tratamento da tensão dramática subjacente ao percurso da personagem principal, que tem de tratar de todos os aspectos burocráticos, sem saber como terá Gabriela reagido à intervenção. O efeito gerado é o de uma corrida contra o tempo, povoada de obstáculos e de final incerto – a qualquer momento, perante as suas acções, e num país onde para qualquer coisa se tem mostrar a identificação ou de prestar favores sexuais em troca de algo mais, a prisão é uma hipótese concreta. Que o espectador seja convidado para esta viagem é, mais do que uma fórmula estética, um testemunho histórico. Não é por acaso que, por muita documentação existente sobre a vida debaixo do jugo dos regimes comunistas, são filmes como este e As Vidas dos Outros que mostram a real dimensão da opressão política.

Em entrevista ao Público, Mungiu diz não ter vontade de enveredar pela nostalgia que alegadamente pontuava o sucesso Goodbye Lenin. É discutível que o filme de Wolfgang Becker seja assim tão nostálgico – o realizador decerto não quereria voltar a viver naquele contexto. A indignação de Mungiu prende-se com outro factor: Goodbye Lenin é o filme de um país já em paz consigo próprio. 4 meses, 3 semanas e 2 dias é, ao invés, o filme de um país ainda em guerra com o seu passado, de quem o senhor Bebe e, não esquecer, os familiares do namorado de Otília, muito bem-intencionados mas, na sua vida confortável, completamente ignorantes das dificuldades que se desenrolam naqueles quartos de hotel e outros lugares infectos, são meras consequências. A esses, Mungiu prefere a capacidade de sobrevivência e a solidariedade daquelas duas jovens. Pelo meio, ficou aquele feto abortado, símbolo de tudo o que morreu naqueles tempos.


06 fevereiro 2008

As inúmeras capacidades de Wes Anderson

Pode haver quem filme melhor que Wes Anderson, mas ninguém filma como Wes Anderson. Colocando a acção dos seus filmes a meio termo entre a concentração espacial e panos de fundo colossais (a Nova Iorque de The Royal Tenenbaums, o mar de The Life Aquatic with Steve Zissou e, agora, a Índia de The Darjeeling Limited), todas as cenas realçam um virtuosismo técnico muito próprio. O que temos neste novo e soberbo filme é uma estranha sucessão de panorâmicas (numa quantidade invulgar), "ralentis", "travellings" e estranhos níveis de câmara (parece estar sempre um pouco abaixo do nível dos olhos de uma pessoa de altura média). E o que é mais espectacular de tudo é que sendo o cinema de Anderson palavroso (os dois Anderson, Wes e P.T., são os mestres do palavrão bem utilizado), focado muito mais nas personagens do que na acção propriamente dita, The Darjeeling Limited não deixa nunca de ter um ritmo interno muito próprio, veloz na sua montagem e nos movimentos de câmara mesmo que, na realidade, o essencial se passe num mesmo espaço – o comboio que dá nome ao filme. Esta capacidade de impor ritmo é marca de um cineasta muito pessoal.

Se há uma ideia de cinema, há também uma ideia de literatura em toda a obra de Anderson. O segredo da densidade extrema das suas personagens reside, maioritariamente, na sua capacidade de serem extremamente complexas dizendo apenas palavras das mais banais, quando não mesmo monossílabos e fazendo os actos mais simples – é incrível a densidade que os gags do cinto e dos passaportes adquirem. Na melhor tradição pragmática da literatura americana do pós-guerra (passam por aqui ecos de Hemingway e, sobretudo, de J.D. Salinger), vale pelo que mostra, pelos imensos silêncios, pelo não dito no meio da torrente de palavras. A estes junta-se a capacidade poética de fazer sobressair, com uma tremenda ajuda da capacidade técnica, os momentos à primeira vista menos importantes e até, à partida, mais banais: só por aquele "ralenti" e pela sua conjugação com a música se safa um momento tão óbvio como os três irmãos livrando-se da sua bagagem emocional ao livrarem-se das malas que herdaram do pai. As imagens de Anderson são, então, nos seus aspectos formais ou imaginativos, uma arte da superação da banalidade, do seu embelezamento e da absorção de todo o seu significado escondido.
Poderá sempre ser afirmado que nada de original há aqui e que Anderson mais não faz do que continuar o caminho iniciado com Bottle Rocket (1994). Se assim é (o tema tratado é, como de costume, a dissolução familiar; alguns dos actores – Jason Schwartzman, Owen Wilson e Bill Murray – são presenças recorrentes), o que se pode ver é que o virtuosismo demonstrado começa a depurar-se e a manifestar-se apenas em função do retrato feito. Por exemplo, o corte transversal no barco de Steve Zissou, grande truque do filme anterior, também aqui aparece mas de forma muito mais sóbria, simples e directa. Cinema de um conhecimento total das suas capacidades, avança calmamente na construção de uma obra, de um tecido contínuo, onde cada peça mantém o seu valor próprio para além do seu valor colectivo. Dentro desse valor, se o filme anterior era menos bom, mero paliativo depois da excelência de The Royal Tenenbaums, este torna a levantar a fasquia. E depois de The Darjeeling Limited, esta talvez esteja mais alta do que alguma vez esteve.

E se não se fala dos sentimentos gerados por The Darjeeling Limited, é porque este encontrará a sua forma de se relacionar com cada espectador, sendo inútil reduzi-los a uma visão pessoal. Como todos os grandes filmes, aliás.


03 fevereiro 2008

O meu herói



A Fome e a Fartura


Durante anos, filmes de Hou Hsiao Hsien só em festivais, dvd ou, como diz o Tejo, encomendados no Amazule. Agora, de acordo com o mapa de estreias da Medeia, estrearão dois na mesma semana (14 de Fevereiro).

Filmes do Mês - Janeiro de 2008

Ano novo, regresso desta rúbrica, para já contando apenas com filmes vistos em sala. Para o próximo mês regressam os filmes vistos em casa. Classificação de 0 a 10.

Call Girl de António Pedro-Vasconcelos (3)
4 meses, 3 semanas e 2 dias de Cristian Mungiu (8.5)
Cristovão Colombo - o Enigma de Manoel de Oliveira (5)
The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford de Andrew Dominik (8)
The Darjeeling Limited de Wes Anderson (8.5)