30 setembro 2010
29 setembro 2010
Sobre Lisboa nos filmes
Estream em breve dois filmes em que a cidade de Lisboa será retratada. O Filme do Desassossego de João Botelho e Os Mistérios de Lisboa de Raoul Ruiz. Não sei ainda da qualidade de ambos e, dada a sua duração (272 minutos!) dificilmente verei, para já, o do chileno, mas creio que está a faltar um certo filme sobre a cidade de Lisboa. Não aquele que mostra a luz da cidade, as suas travessas e vielas, o seu fado e a ideia canonizada das suas gentes, que isso já temos muito. Um que mostre a Lisboa dos engarrafamentos e da forma como os carros tornam a nossa vida imposível; a Lisboa dos centros comerciais em cada esquina; a Lisboa dos magotes de gente que enchem esses centros comerciais ao Domingo porque não há muito mais que fazer; a Lisboa dos SUV's que passam a alta velocidade pela mendicidade constante; a Lisboa das tias, dos freeks, dos geeks e dos yupies; a Lisboa das pessoas que esbanjam todo o seu dinheiro a crédito; a Lisboa do Rossio deserto às nove da noite e a Lisboa dos milhares que enchem os transportes públicos ao fim da tarde quando gostavam era de poder viver na cidade; a Lisboa ultra-urbana e provinciana, cosmopolita e retrógrada, futurista e saudosista.
Para quando um filme desses?
26 setembro 2010
How Hard You Can Get Hit
Não há pessoa neste mundo de quem eu tenha tão pouca pena quanto de Sylvester Stallone. De um lado, um domínio da câmara e da caneta até bastante apreciáveis, do outro, a conjugação de tudo quanto foi errado e mesmo asqueroso na década de 80, no reaganismo belicista, no filme de acção excrementício, no derrubar de toda a digna obra até então construída. Depois de uma péssima década de 90, misto de péssimos filmes de acção (Cliffhanger, Assassins) e de horrendas comédias (Oscar, Stop! Or my mom will shoot!), Stallone aparece agora a cantar o fado do desgraçadinho, como se não fosse ele o principal culpado dos seus tempos de irrelevância. Com Rocky Balboa (2008), Stallone faz o pior: depois de ter lançado os foguetes, pede que tenhamos pena dele enquanto apanha as canas.
Nesse processo, conquista-nos? Absolutamente. Rocky Balboa é um imenso soco emocional, uma obra que faz arte de lamber as feridas e que nos reconcilia com uma personagem que em tempos adorámos mas que com o tempo passámos a ver apenas como um bronco com o tronco em V e uns calções demasiados patrióticos.
30 anos depois, encontramos Rocky como dono de um restaurante e que passa os seus dias como contador de histórias de boxe aos seus comensais, relembrando o que fez a Ivan Drago, àquele senhor das correntes de ouro e ao outro que agora faz filmes série-b. Numa parte de Filadélfia que provavelmente nunca saiu da crise, tenta ajudar uma mãe solteira e o seu filho proto-problemático e vai passando o tempo por entre memórias de Adrian, entretanto falecida (há uma belíssima sequência de um périplo quase sacro de Rocky aos lugares que lhe lembram a esposa) e tenta lidar com um filho que não aguenta a sua filiação, sentindo-se esmagado pela lembrança da glória do pai. Até que um combate virtual num programa desportivo entre Balboa e o campeão da época (imaginativamente nomeado Mason “The Line” Dixon) lhe dá a ideia de regressar, para um último combate, precisamente com o novo campeão.
O que se segue é uma glosa do primeiro filme, voltando a premir todos os botões que o primeiro premiu: a crença em si mesmo, a necessidade de sofrimento necessária ao sucesso, a possibilidade de ver vitórias mesmo nas derrotas – pormenor nada despiciendo, a vitória de Rocky neste filme também é conseguir aguentar o combate até ao fim, aquilo que ganhava o primeiro filme – e dois discursos verdadeiramente notáveis (ver os clips), que mostram que Stallone tem um notável talento para a escrita. Nada de novo, até tudo bastante cínico na utilização de uma receita já experimentada. Mas é impossível para quem cresceu com a personagem (lembro-me de pedir autorização aos meus pais para ficar acordado até mais tarde para o ver derrotar Mr. T) não se sentir verdadeiramente emocionado com este filme. Pode ser que a história de redenção, quando minimamente bem feita (são notórias as limitações de Stallone enquanto realizador, por exemplo, na forma como abusa de filtros de imagem e na montagem algo tosca do filme) seja imbatível. Ou pode ser que Stallone seja um daqueles sacanas encantadores, em cuja mudança acreditamos sempre (podia ter escrito este texto a propósito de Copland, feito já há 13 anos) mas que, no fundo, sabemos que nos enganava de novo se pudesse – o que só nos faz gostar mais dele.
Para o bem e para o mal, Rocky Balboa foi o filme do meu Verão de 2010.
Nesse processo, conquista-nos? Absolutamente. Rocky Balboa é um imenso soco emocional, uma obra que faz arte de lamber as feridas e que nos reconcilia com uma personagem que em tempos adorámos mas que com o tempo passámos a ver apenas como um bronco com o tronco em V e uns calções demasiados patrióticos.
30 anos depois, encontramos Rocky como dono de um restaurante e que passa os seus dias como contador de histórias de boxe aos seus comensais, relembrando o que fez a Ivan Drago, àquele senhor das correntes de ouro e ao outro que agora faz filmes série-b. Numa parte de Filadélfia que provavelmente nunca saiu da crise, tenta ajudar uma mãe solteira e o seu filho proto-problemático e vai passando o tempo por entre memórias de Adrian, entretanto falecida (há uma belíssima sequência de um périplo quase sacro de Rocky aos lugares que lhe lembram a esposa) e tenta lidar com um filho que não aguenta a sua filiação, sentindo-se esmagado pela lembrança da glória do pai. Até que um combate virtual num programa desportivo entre Balboa e o campeão da época (imaginativamente nomeado Mason “The Line” Dixon) lhe dá a ideia de regressar, para um último combate, precisamente com o novo campeão.
O que se segue é uma glosa do primeiro filme, voltando a premir todos os botões que o primeiro premiu: a crença em si mesmo, a necessidade de sofrimento necessária ao sucesso, a possibilidade de ver vitórias mesmo nas derrotas – pormenor nada despiciendo, a vitória de Rocky neste filme também é conseguir aguentar o combate até ao fim, aquilo que ganhava o primeiro filme – e dois discursos verdadeiramente notáveis (ver os clips), que mostram que Stallone tem um notável talento para a escrita. Nada de novo, até tudo bastante cínico na utilização de uma receita já experimentada. Mas é impossível para quem cresceu com a personagem (lembro-me de pedir autorização aos meus pais para ficar acordado até mais tarde para o ver derrotar Mr. T) não se sentir verdadeiramente emocionado com este filme. Pode ser que a história de redenção, quando minimamente bem feita (são notórias as limitações de Stallone enquanto realizador, por exemplo, na forma como abusa de filtros de imagem e na montagem algo tosca do filme) seja imbatível. Ou pode ser que Stallone seja um daqueles sacanas encantadores, em cuja mudança acreditamos sempre (podia ter escrito este texto a propósito de Copland, feito já há 13 anos) mas que, no fundo, sabemos que nos enganava de novo se pudesse – o que só nos faz gostar mais dele.
Para o bem e para o mal, Rocky Balboa foi o filme do meu Verão de 2010.
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Sylvester Stallone
Balanço
A ideia, do Luis Mendonça e minha, de se fazer uma petição Pelo Regresso da Exibição Regular de Cinema à RTP2 tem quase um mês. Desde então, angariámos já 1222 assinaturas, entre as quais as de figuras como a deputada e actriz Inês de Medeiros, os cineastas João Mário Grilo, Manuel Mozos, Catarina Alves Costa, Raquel Freire e Lauro António; o produtor Paulo Trancoso; o engenheiro de som Vasco Pimentel; o actor Gonçalo Waddington e a actriz Anabela Ferreira; o crítico da Premiere e webmaster do site Cinema2000 Nuno Antunes e os críticos Eduardo Cintra Torres, Jorge Mourinha, Jorge Leitão Barros, Vasco Baptista Marques e Mário Jorge Torres; a coordenadora da rádio Oxigénio Isilda Sanches; académicos como Manuel Villaverde Cabral, Rui Cádima, João Milagre, Teresa Cadete, Pedro Eiras, Arsélio de Almeida Martins, Adriano Duarte Rodrigues, Nilza Sena e Fernando Cabral Martins; o autor e jornalista Pedro Teixeira Neves; o historiador José Mattoso; e ainda a escritora Alice Vieira.
Contudo, a maior barreira quebrou-se precisamente hoje. Depois de textos de opinião nas colunas A Minha TV de Jorge Mourinha e Olho Vivo de Eduardo Cintra Torres, aparece hoje, finalmente, uma notícia acerca desta iniciativa, precisamente no Público, onde as outras referências haviam também constado. A terminar a notícia, um pormenor delicioso: Jorge Wemans, director da RTP2, contactado pelo diário, escusou-se a comentar.
No entanto, tudo permanece por fazer. Peço mais uma vez a todos quantos lêem este espaço que passem a palavra, assinem e instem os vossos amigos, conhecidos e familiares a assinarem. Apenas com um número suficientemente grande e compacto de pessoas poderemos aspirar a ter alguma influência.
Obrigado.
21 setembro 2010
Shaw Bros: Uma introdução à Hollywood Chinesa
(Artigo originalmente escrito para publicação na Take. Um obrigado especial à revisora H.)
No início do ano, a redacção virtual da Take escolheu Kill Bill como o filme da década. Altura perfeita para uma pequena introdução à história e ao trabalho dos estúdios Shaw Bros, glorioso império cinematográfico que marcou indelevelmente a história do cinema nos anos 60 e 70.
Em 2003, Quentin Tarantino anunciou que o seu próximo filme seria uma homenagem às produções de artes marciais do estúdio Shaw Bros. Assim nasceu Kill Bill, cujo primeiro tomo é um ersatz da Shaw e em cujo segundo tomo é recuperada uma das principais personagens do estúdio, o mestre Pai Mei. Pese embora a beleza e a utilidade da homenagem, Kill Bill nada fez pelo conhecimento ou pelo nome da companhia chinesa no Ocidente. Como sempre acontece no universo de Quentin Tarantino, a referência, mais do que gerar curiosidade e potenciar a descoberta, acaba por ser absorvida pelo universo do seu criador, tornando-se parte dele, num movimento que, paradoxalmente, até contribui para tornar irrelevante a mesma homenagem que pretende prestar. Assim, tanto quanto por curiosidade cinéfila quanto pela importância do estúdio e pela qualidade de algumas das obras por si produzidas, importa conhecer um pouco mais da história de uma instituição marcante no panorama asiático do seu tempo.
O INÍCIO
Como o próprio nome indica, os estúdios da Shaw Bros começaram enquanto empresa familiar. A família Shaw começou a sua carreira no mundo do espectáculo nos anos 20, através da fundação da Tianyi, produtora associada a algum conservadorismo, a dramas históricos e filmes de fantasia e artes marciais. Em competição com outra companhia da época, dois dos irmãos foram mandados para o Sudeste Asiático para explorar os mercados, nomeadamente junto de mercadores e trabalhadores de plantações, facilmente atraídos pelos enredos simplistas dos filmes da Tianyi. Este mercado viria a decair no final dos anos 20 mas já em 1924 a empresa passa a operar a partir de Singapura, quando os fundadores passam a distribuir os filmes da United Artists de Chaplin, Fairbainks e Pickford e criam uma rede de parques de diversão e cinemas. Quando se dá a crise dos anos 30, os gestores da empresa compram vários cinemas falidos e equipam-nos para o cinema sonoro. Esse equipamento é confiscado pelo exército japonês aquando das invasões nos anos 40 e os fundadores da companhia refugiam-se em Hong Kong, onde não apenas encontram protecção do Império Japonês como, futuramente, também dos nacionalistas chineses do Kuomintang e do comunismo que se lhe segue. No imediato pós-guerra beneficiam de um contexto rico de criatividade, diferente do ambiente na China Continental, onde o cinema passou a estar totalmente controlado pelo Partido Comunista Chinês e onde filmes de artes marciais e outras “superstições” foram banidos até começar o período de reforma no final dos anos 70. Com financiamento vindo do jogo e da prostituição, asseguram os direitos de exibição de diversos filmes americanos e pelo início dos anos 50, conseguem recuperar as salas que haviam perdido durante a Guerra nas comunidades de chineses ultramarinos e de Hong Kong, mas não na “Mainland”, onde todos os estúdios foram nacionalizados. Contudo, foi apenas em 1957 que os irmãos Run Run e Rumne Shaw, instruídos no Ocidente e dois dos homens mais ricos do mundo, percebendo a desvantagem em que estavam face a diversas outras companhias, nomeadamente de Hong Kong, começaram a dedicar-se também à produção. A companhia que daí nasceu foi a Shaw Brothers.
A IDADE DE OURO (1957 – 1970)
Depois de uma série de filmes históricos, baseados em óperas chinesas, que geram os primeiros sucessos de bilheteira, entre os quais se destaca The Kingdom and the Beauty (Han Hsiang Li, 1959), em 1961 termina a construção do estúdio Movietown, localizado no enclave de Kowloon, na China Continental, com uma equipa de 1500 pessoas e capacidade para rodar até sete filmes em simultâneo. Em breve seguir-se-ão os estúdios de Kuala Lumpur e de Singapura. A produção passa a basear-se no modelo hollywoodiano, procurando trazer, quase sempre de Hong Kong, toda a qualidade técnica que o dinheiro possa comprar e, ao mesmo tempo, impor a centralização e a sistematização da produção de filmes, tornando o produto final mais barato e formalmente mais competente. Chegados a meados da década de 60, a Shaw Brothers possuía 127 cinemas um pouco por todo o Sudeste Asiático, três estúdios com aura de Hollywood antiga (por alguma razão o logótipo da Shaw se assemelha ao símbolo inicial da Warner Bros), diversos parques de diversão e uma produção que se situava entre os 30 e os 40 filmes por ano, num total de cerca de 300 filmes nos primeiros 12 anos de actividade. No que concerne aos realizadores, actores e equipa técnica, havia uma política de contratos ferozmente negociados, que incluíam 4 a seis filmes por ano, um salário mensal fixo e um bónus consoante os resultados de cada filme. Muitos dos actores viviam nos dormitórios nos estúdios e tinham percursos delimitados consoante o género. Assim, um homem, normalmente com experiência enquanto duplo ou na ópera chinesa, entrava na escola de representação da Shaw aos 18 anos e conseguia obter papéis principais até perto dos 35 anos, altura em que poderia sair ou ficar como actor secundário. Já grande parte das mulheres era contratada através de audições gigantes ou através de anúncios nos jornais e saia por volta dos 25 anos para casar, sendo poucas as personagens femininas com mais idade nas obras da companhia. A remuneração, para actuantes como para criativos, era pequena: um argumentista ganhava cerca de 1250 dólares HK por filme e um realizador cerca de 3000. Por último, a carga de trabalho imposta aos participantes era imensa: os horários ascendiam a 16 horas diárias e era comum que todos os intervenientes fizessem dois filmes em simultâneo. Tamanha conjugação de estrutura com rigor e disciplina na organização das equipas e com o talento angariado permitiu à companhia a um tempo dotar os filmes de meios de produção e, apesar de tudo, torná-los lucrativos. Falados em Mandarim e não em cantonês, como a maioria dos filmes produzidos em Hong Kong no mesmo período, os filmes conseguiram penetrar os mercados de Singapura e Taiwan, onde a língua também é falada. Como tal, os lucros de bilheteira permitiam que os filmes seguintes fossem ainda mais confortáveis em termos de orçamento, normalmente situado entre os 300 mil e os 800 mil dólares HK, muito acima da média de 20 mil dólares HK que custava a produzir um filme cantonês.
Depois de um início baseado em filmes históricos como o já referido The Kingdom and the Beauty e musicais como The Love Eterne (Han Hsiang Li, 1961), que rapidamente atingiram, segundo diversos historiadores, a monotonia, a Shaw Bros revitalizou o panorama do cinema asiático através da transposição cinematográfica de um género literário que ainda hoje perdura – o wuxia, que redutoramente pode ser chamado de “romance de artes marciais”. Ainda que os filmes não fossem estritamente adaptações literárias, mantinham a mesma estrutura, misto de artes marciais, melodrama, tratamento de códigos de honra e aproveitamento da mitologia chinesa. Seguindo o método de capitalizar em tudo aquilo que se mostrasse comercialmente bem-sucedido, The One-Armed Swordsman (Chang Cheh, 1967 – o título é auto-explicativo) inaugura uma fase em que são filmadas histórias uni-dimensionais, com enredos típicos e muito semelhantes entre si, normalmente acerca de um estranho vindo do campo que chega à grande cidade para ou vingar um ente querido ou para mudar o statu quo através das suas capacidades técnicas e da sua sede de riqueza, trazendo sempre justiça a uma situação desequilibrada. Distinguem-se igualmente pelo lado social evidente ainda que simplista mas onde impera uma claridade moral: o pobre justo ascende à riqueza derrotando o rico ímpio e patriarcal, muitas vezes morrendo no processo. Rodados em sumptuosos cenários de estúdio ou nos backlots dos estúdios da companhia, são filmes que podem ir de uma enorme qualidade técnica e formal a exemplos de “skid row cinema”, deliciosamente xungas e com pontas no argumento atadas através de voice-over, misturando violência estilizada e ballet marcial com momentos de sentimentalismo, num todo por vezes precário e por vezes recompensador.
OS REALIZADORES
De entre os realizadores pertencentes aos quadros da Shaw Bros, um ganha especial destaque: Chang Cheh. Mais popular e mais bem-sucedido realizador de sempre no género wuxia, foi o realizador do seminal The One-Armed Swordsman (1967), primeiro filme a ultrapassar o milhão de dólares HK nas bilheteiras. Com cenas de luta influenciadas por técnicas de combate japonesas, tinha como principal objectivo tornar a acção dos seus filmes o mais realista possível. Para tal, era frequente o uso de sangue nos seus combates e a existência de armas feitas de metal e, contrariamente ao que algumas produções de filmes de kung fu faziam nos anos 50, coreografava abundantemente as suas lutas. A sua estética era então, verosímil, ao que juntava, nos seus filmes, relações filiais e conflitos geracionais com que a audiência dos anos 60 e 70 se podia identificar. Com mais de 100 filmes no currículo, cristalizou também o motivo do forasteiro campestre que chegava à cidade ou para vingar ou para perseguir sonhos de riqueza, conseguindo os seus objectivos mas morrendo de caminho. Tecnicamente virtuoso, teve como assistente de realização um jovem John Woo e é possível ver a sua influência não apenas na montagem virulenta como também, por exemplo, no tiroteio inicial de Hard Boiled (1992), num café preenchido por gaiolas de pássaros. É o grande esteta do Wuxia cinematográfico.
Anterior a Chang Cheh, King Hu realizou o fundamental Come Drink With Me (1965), dos primeiros grandes sucessos de wuxia da Shaw Bros. Fundindo estilos ocidentais e orientais de realização, criou uma abordagem inovadora ao cinema de artes marciais que ainda hoje perdura. Estudante de ópera chinesa, desenvolveu uma estética única baseada na pintura, literatura e teatro do Império do Meio. Sem ser especialista em filmar cenas de luta, conseguia no entanto adaptar movimentos fluidos a uma montagem construtiva. Um dos seus truques era tornar a luta o mais rápida e o mais afastada possível do primeiro plano, disfarçando assim quaisquer defeitos existentes. Outro era, quando pretendia insuflar de sentimento épico as paisagens que filmava, dar apenas um muito rápido plano de conjunto, que assim perdurava e era engrandecido pela imaginação do espectador. Teve na sua equipa, como assistente de realização, um jovem Ang Lee, que o homenageou em O Tigre e o Dragão (1999), inspirado no importantíssimo A Touch of Zen (1969). Por contraponto à ideia de realismo professada por Chang Cheh, era um fantasista, situando quase sempre os seus filmes nos mitos da antiguidade chinesa.
O FIM
Tempos houve em que o cinema de kung fu era muito visto e apreciado no Ocidente. Em salas de bairro, de puro ambiente “grindhouse”, perante o niilismo do policial de inícios de 70 (filmes como Dirty Harry ou Madigan, ambos de Don Siegel) ou antes do assumido pendor artístico dos movie brats, estes filmes proporcionavam ao espectador momentos de espectacularidade nas suas lutas, de violência catártica e uma claridade moral, ancorada no maniqueísmo das personagens que davam uma ideia de um todo simples e exótico. Contudo, paradoxalmente, se os filmes da Shaw Bros foram muito vistos no Ocidente à época, não foi este o estúdio que mais lucrou com a febre do cinema de artes marciais. Tal posto pertence à Golden Harvest, formada pelo dissidente da produtora Raymond Chow e que revelou ao mundo Bruce Lee, com os seus filmes de torneio e que haveria de, com a sua morte precoce, tornar-se o único mártir deste género cinematográfico, bem como, a partir da década de 80, a Nova Vaga da acção de Hong Kong, com uma grande componente de comédia, protagonizada acima de todos por Jackie Chan e Sammo Hung. Por todos estes factores, bem como por um certo cansaço do género (até a vedeta David Chiang disse, em meados de 70, querer afastar-se da pancadaria para se dedicar a outros temas) e pela transformação dos mercados orientais, mais permeáveis aos filmes ocidentais, a Shaw Bros perdeu o seu estatuto de Hollywood chinesa e hoje sobrevive apenas como produtora e distribuidora de vídeo, conteúdos informáticos e televisão. O seu espólio, no entanto, permanece riquíssimo e está a ser lançado em dvd (disponível, frequentemente a baixo preço, na cadeia de lojas FNAC) e, mesmo que apenas através da interposta pessoa de Quentin Tarantino, faz já parte do imaginário colectivo de uma geração. No Oriente como no Ocidente, o tempo de grandes estúdios funcionando como linhas de montagem já terminou.
E os filmes? Não se fala especificamente de Vengence (a obra-prima de Chang Cheh, 1970), de A Touch of Zen ou de The 36th Chamber of Shaolin (Chia Liang-Liu, 1978)? Não; a porta está aberta. Resta ao leitor, através do dvd ou das maravilhas da Internet, entrar por ela.
No início do ano, a redacção virtual da Take escolheu Kill Bill como o filme da década. Altura perfeita para uma pequena introdução à história e ao trabalho dos estúdios Shaw Bros, glorioso império cinematográfico que marcou indelevelmente a história do cinema nos anos 60 e 70.
Em 2003, Quentin Tarantino anunciou que o seu próximo filme seria uma homenagem às produções de artes marciais do estúdio Shaw Bros. Assim nasceu Kill Bill, cujo primeiro tomo é um ersatz da Shaw e em cujo segundo tomo é recuperada uma das principais personagens do estúdio, o mestre Pai Mei. Pese embora a beleza e a utilidade da homenagem, Kill Bill nada fez pelo conhecimento ou pelo nome da companhia chinesa no Ocidente. Como sempre acontece no universo de Quentin Tarantino, a referência, mais do que gerar curiosidade e potenciar a descoberta, acaba por ser absorvida pelo universo do seu criador, tornando-se parte dele, num movimento que, paradoxalmente, até contribui para tornar irrelevante a mesma homenagem que pretende prestar. Assim, tanto quanto por curiosidade cinéfila quanto pela importância do estúdio e pela qualidade de algumas das obras por si produzidas, importa conhecer um pouco mais da história de uma instituição marcante no panorama asiático do seu tempo.
O INÍCIO
Como o próprio nome indica, os estúdios da Shaw Bros começaram enquanto empresa familiar. A família Shaw começou a sua carreira no mundo do espectáculo nos anos 20, através da fundação da Tianyi, produtora associada a algum conservadorismo, a dramas históricos e filmes de fantasia e artes marciais. Em competição com outra companhia da época, dois dos irmãos foram mandados para o Sudeste Asiático para explorar os mercados, nomeadamente junto de mercadores e trabalhadores de plantações, facilmente atraídos pelos enredos simplistas dos filmes da Tianyi. Este mercado viria a decair no final dos anos 20 mas já em 1924 a empresa passa a operar a partir de Singapura, quando os fundadores passam a distribuir os filmes da United Artists de Chaplin, Fairbainks e Pickford e criam uma rede de parques de diversão e cinemas. Quando se dá a crise dos anos 30, os gestores da empresa compram vários cinemas falidos e equipam-nos para o cinema sonoro. Esse equipamento é confiscado pelo exército japonês aquando das invasões nos anos 40 e os fundadores da companhia refugiam-se em Hong Kong, onde não apenas encontram protecção do Império Japonês como, futuramente, também dos nacionalistas chineses do Kuomintang e do comunismo que se lhe segue. No imediato pós-guerra beneficiam de um contexto rico de criatividade, diferente do ambiente na China Continental, onde o cinema passou a estar totalmente controlado pelo Partido Comunista Chinês e onde filmes de artes marciais e outras “superstições” foram banidos até começar o período de reforma no final dos anos 70. Com financiamento vindo do jogo e da prostituição, asseguram os direitos de exibição de diversos filmes americanos e pelo início dos anos 50, conseguem recuperar as salas que haviam perdido durante a Guerra nas comunidades de chineses ultramarinos e de Hong Kong, mas não na “Mainland”, onde todos os estúdios foram nacionalizados. Contudo, foi apenas em 1957 que os irmãos Run Run e Rumne Shaw, instruídos no Ocidente e dois dos homens mais ricos do mundo, percebendo a desvantagem em que estavam face a diversas outras companhias, nomeadamente de Hong Kong, começaram a dedicar-se também à produção. A companhia que daí nasceu foi a Shaw Brothers.
A IDADE DE OURO (1957 – 1970)
Depois de uma série de filmes históricos, baseados em óperas chinesas, que geram os primeiros sucessos de bilheteira, entre os quais se destaca The Kingdom and the Beauty (Han Hsiang Li, 1959), em 1961 termina a construção do estúdio Movietown, localizado no enclave de Kowloon, na China Continental, com uma equipa de 1500 pessoas e capacidade para rodar até sete filmes em simultâneo. Em breve seguir-se-ão os estúdios de Kuala Lumpur e de Singapura. A produção passa a basear-se no modelo hollywoodiano, procurando trazer, quase sempre de Hong Kong, toda a qualidade técnica que o dinheiro possa comprar e, ao mesmo tempo, impor a centralização e a sistematização da produção de filmes, tornando o produto final mais barato e formalmente mais competente. Chegados a meados da década de 60, a Shaw Brothers possuía 127 cinemas um pouco por todo o Sudeste Asiático, três estúdios com aura de Hollywood antiga (por alguma razão o logótipo da Shaw se assemelha ao símbolo inicial da Warner Bros), diversos parques de diversão e uma produção que se situava entre os 30 e os 40 filmes por ano, num total de cerca de 300 filmes nos primeiros 12 anos de actividade. No que concerne aos realizadores, actores e equipa técnica, havia uma política de contratos ferozmente negociados, que incluíam 4 a seis filmes por ano, um salário mensal fixo e um bónus consoante os resultados de cada filme. Muitos dos actores viviam nos dormitórios nos estúdios e tinham percursos delimitados consoante o género. Assim, um homem, normalmente com experiência enquanto duplo ou na ópera chinesa, entrava na escola de representação da Shaw aos 18 anos e conseguia obter papéis principais até perto dos 35 anos, altura em que poderia sair ou ficar como actor secundário. Já grande parte das mulheres era contratada através de audições gigantes ou através de anúncios nos jornais e saia por volta dos 25 anos para casar, sendo poucas as personagens femininas com mais idade nas obras da companhia. A remuneração, para actuantes como para criativos, era pequena: um argumentista ganhava cerca de 1250 dólares HK por filme e um realizador cerca de 3000. Por último, a carga de trabalho imposta aos participantes era imensa: os horários ascendiam a 16 horas diárias e era comum que todos os intervenientes fizessem dois filmes em simultâneo. Tamanha conjugação de estrutura com rigor e disciplina na organização das equipas e com o talento angariado permitiu à companhia a um tempo dotar os filmes de meios de produção e, apesar de tudo, torná-los lucrativos. Falados em Mandarim e não em cantonês, como a maioria dos filmes produzidos em Hong Kong no mesmo período, os filmes conseguiram penetrar os mercados de Singapura e Taiwan, onde a língua também é falada. Como tal, os lucros de bilheteira permitiam que os filmes seguintes fossem ainda mais confortáveis em termos de orçamento, normalmente situado entre os 300 mil e os 800 mil dólares HK, muito acima da média de 20 mil dólares HK que custava a produzir um filme cantonês.
Depois de um início baseado em filmes históricos como o já referido The Kingdom and the Beauty e musicais como The Love Eterne (Han Hsiang Li, 1961), que rapidamente atingiram, segundo diversos historiadores, a monotonia, a Shaw Bros revitalizou o panorama do cinema asiático através da transposição cinematográfica de um género literário que ainda hoje perdura – o wuxia, que redutoramente pode ser chamado de “romance de artes marciais”. Ainda que os filmes não fossem estritamente adaptações literárias, mantinham a mesma estrutura, misto de artes marciais, melodrama, tratamento de códigos de honra e aproveitamento da mitologia chinesa. Seguindo o método de capitalizar em tudo aquilo que se mostrasse comercialmente bem-sucedido, The One-Armed Swordsman (Chang Cheh, 1967 – o título é auto-explicativo) inaugura uma fase em que são filmadas histórias uni-dimensionais, com enredos típicos e muito semelhantes entre si, normalmente acerca de um estranho vindo do campo que chega à grande cidade para ou vingar um ente querido ou para mudar o statu quo através das suas capacidades técnicas e da sua sede de riqueza, trazendo sempre justiça a uma situação desequilibrada. Distinguem-se igualmente pelo lado social evidente ainda que simplista mas onde impera uma claridade moral: o pobre justo ascende à riqueza derrotando o rico ímpio e patriarcal, muitas vezes morrendo no processo. Rodados em sumptuosos cenários de estúdio ou nos backlots dos estúdios da companhia, são filmes que podem ir de uma enorme qualidade técnica e formal a exemplos de “skid row cinema”, deliciosamente xungas e com pontas no argumento atadas através de voice-over, misturando violência estilizada e ballet marcial com momentos de sentimentalismo, num todo por vezes precário e por vezes recompensador.
OS REALIZADORES
De entre os realizadores pertencentes aos quadros da Shaw Bros, um ganha especial destaque: Chang Cheh. Mais popular e mais bem-sucedido realizador de sempre no género wuxia, foi o realizador do seminal The One-Armed Swordsman (1967), primeiro filme a ultrapassar o milhão de dólares HK nas bilheteiras. Com cenas de luta influenciadas por técnicas de combate japonesas, tinha como principal objectivo tornar a acção dos seus filmes o mais realista possível. Para tal, era frequente o uso de sangue nos seus combates e a existência de armas feitas de metal e, contrariamente ao que algumas produções de filmes de kung fu faziam nos anos 50, coreografava abundantemente as suas lutas. A sua estética era então, verosímil, ao que juntava, nos seus filmes, relações filiais e conflitos geracionais com que a audiência dos anos 60 e 70 se podia identificar. Com mais de 100 filmes no currículo, cristalizou também o motivo do forasteiro campestre que chegava à cidade ou para vingar ou para perseguir sonhos de riqueza, conseguindo os seus objectivos mas morrendo de caminho. Tecnicamente virtuoso, teve como assistente de realização um jovem John Woo e é possível ver a sua influência não apenas na montagem virulenta como também, por exemplo, no tiroteio inicial de Hard Boiled (1992), num café preenchido por gaiolas de pássaros. É o grande esteta do Wuxia cinematográfico.
Anterior a Chang Cheh, King Hu realizou o fundamental Come Drink With Me (1965), dos primeiros grandes sucessos de wuxia da Shaw Bros. Fundindo estilos ocidentais e orientais de realização, criou uma abordagem inovadora ao cinema de artes marciais que ainda hoje perdura. Estudante de ópera chinesa, desenvolveu uma estética única baseada na pintura, literatura e teatro do Império do Meio. Sem ser especialista em filmar cenas de luta, conseguia no entanto adaptar movimentos fluidos a uma montagem construtiva. Um dos seus truques era tornar a luta o mais rápida e o mais afastada possível do primeiro plano, disfarçando assim quaisquer defeitos existentes. Outro era, quando pretendia insuflar de sentimento épico as paisagens que filmava, dar apenas um muito rápido plano de conjunto, que assim perdurava e era engrandecido pela imaginação do espectador. Teve na sua equipa, como assistente de realização, um jovem Ang Lee, que o homenageou em O Tigre e o Dragão (1999), inspirado no importantíssimo A Touch of Zen (1969). Por contraponto à ideia de realismo professada por Chang Cheh, era um fantasista, situando quase sempre os seus filmes nos mitos da antiguidade chinesa.
O FIM
Tempos houve em que o cinema de kung fu era muito visto e apreciado no Ocidente. Em salas de bairro, de puro ambiente “grindhouse”, perante o niilismo do policial de inícios de 70 (filmes como Dirty Harry ou Madigan, ambos de Don Siegel) ou antes do assumido pendor artístico dos movie brats, estes filmes proporcionavam ao espectador momentos de espectacularidade nas suas lutas, de violência catártica e uma claridade moral, ancorada no maniqueísmo das personagens que davam uma ideia de um todo simples e exótico. Contudo, paradoxalmente, se os filmes da Shaw Bros foram muito vistos no Ocidente à época, não foi este o estúdio que mais lucrou com a febre do cinema de artes marciais. Tal posto pertence à Golden Harvest, formada pelo dissidente da produtora Raymond Chow e que revelou ao mundo Bruce Lee, com os seus filmes de torneio e que haveria de, com a sua morte precoce, tornar-se o único mártir deste género cinematográfico, bem como, a partir da década de 80, a Nova Vaga da acção de Hong Kong, com uma grande componente de comédia, protagonizada acima de todos por Jackie Chan e Sammo Hung. Por todos estes factores, bem como por um certo cansaço do género (até a vedeta David Chiang disse, em meados de 70, querer afastar-se da pancadaria para se dedicar a outros temas) e pela transformação dos mercados orientais, mais permeáveis aos filmes ocidentais, a Shaw Bros perdeu o seu estatuto de Hollywood chinesa e hoje sobrevive apenas como produtora e distribuidora de vídeo, conteúdos informáticos e televisão. O seu espólio, no entanto, permanece riquíssimo e está a ser lançado em dvd (disponível, frequentemente a baixo preço, na cadeia de lojas FNAC) e, mesmo que apenas através da interposta pessoa de Quentin Tarantino, faz já parte do imaginário colectivo de uma geração. No Oriente como no Ocidente, o tempo de grandes estúdios funcionando como linhas de montagem já terminou.
E os filmes? Não se fala especificamente de Vengence (a obra-prima de Chang Cheh, 1970), de A Touch of Zen ou de The 36th Chamber of Shaolin (Chia Liang-Liu, 1978)? Não; a porta está aberta. Resta ao leitor, através do dvd ou das maravilhas da Internet, entrar por ela.
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12 setembro 2010
08 setembro 2010
07 setembro 2010
Sopram ventos adversos (mas por pouco tempo)
Ao fim de dois dias, o primeiro precalço. Estamos com algumas dificuldades técnicas relativamente à página da petição, na precisa altura em que atingimos as cem assinaturas. Esperamos ver resolvidas estas questões o mais depressa possível.
Nada que nos vá tirar o sono. Pedimos a todos os que acreditaram neste projecto que o continuem a fazer. A reinvindicação segue dentro de momentos. Até lá continuem a passar a palavra, a fazer tudo o que podem para promover este projecto. Em breve teremos sucesso.
05 setembro 2010
Em andamento!
Depois de um mês de pausa, o projecto de petição para o regresso da exibição regular de cinema na RTP2, desenvolvida pelo Luis Mendonça e por mim, teve esta semana grande desenvolvimentos. Assim, aqui ficam os endereços para se juntarem a esta iniciativa.
Blog- http://peticao-rtp2-cinema.blogspot.com/
Blog- http://peticao-rtp2-cinema.blogspot.com/
Petição - http://www.peticaopublica.com/PeticaoVer.aspx?pi=P2010N2948
02 setembro 2010
Adenda ao post anterior
No meu Facebook, o meu amigo Filipe Niny Duarte alerta-me que a geração de Joseph Gordon-Levitt é a mesma de Ryan Gosling, Jake Gylenhaal, James Franco ou do falecido Heath Ledger. As minhas desculpas, sobretudo a Gosling e a Ledger, perante a hipérbole face ao (ainda assim) brilhante actor de Mysteryous Skin e 500 Days with Summer.
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