04 outubro 2011

A curva errada




Senna (2010) não consegue nem pode esconder ao que vem. No final, conspícuamente antes dos créditos finais, aparece o simbolo da fundação do corredor, dedicada a ajudar crianças pobres no Brasil. Não há qualquer pejo em assumir o panegírico, a homenagem sentida, o lado elegíaco do documentário de Asif Kapadia, onde não lhe é apontado uma única vez focado qualquer defeito ou qualquer imperfeição. Mais, este é um filme puramente desportivo, tratando a vida da sua personagem principal apenas e só na sua componente de corredor de automóveis, recriando-o como um bom filho de pais ricos, atraente, que corre como que por um puro sentido de competitividade, por uma obsessão por ganhar que o define enquanto pessoa. Ayrton Senna é, então, aqui o desportista total, alguém que conta com uma crença sobrenatural em si mesmo e num deus que lhe dará o que merece, justificando assim a sua temeridade num desporto em que um milésimo de segundo separa a vida da morte e, no meio de todo este processo, se torna um símbolo de um país a emergir de duas décadas de ditadura e a lutar com as suas dificuldades sociais.

No entanto, Senna é um filme muitíssimo incompleto. Sem qualquer insight profundo sobre a personalidade da figura que trata, vemos somente o recapitular do seu percurso público; mostra as inúmeras mulheres de quem Ayrton se rodeava mas retrata-o como um bom rapaz, o filho perfeito dos pais e de uma nação, deixando do lado a sua fama de playboy; pouco ou nada explica a turbulência que o país passava naquela altura e, por isso, justifica a adoração nacional que, essa sim, não se coíbe de dar a ver; aflora apenas tenuamente os meandros da política da Fórmula 1, deixando entrever que muito é jogado nas salas de reuniões mas pouco ou nada mostrando do que lá passa; e é um pouco exagerado no último terço quase que dando a entender que Senna, a passar um mau bocado com o bólide que lhe tinha sido entregue pela Williams-Renault e obcecado em recuperar as vitórias e as pole positions, esperava a sua morte, numa visão posterior manipuladora e impossível de comprovar. Objecto cinematográficamente limitado, sem grandes golpes de asa (com a excepção do momento em que Senna vê em directo o acidente que, apenas 24 horas antes do de Ayrton, tira a vida a Roland Ratzenberger na pista de Imola, em Itália), usando apenas imagens da época e colocando todos os depoimentos dos intervenientes em voice over, vê-se melhor enquanto documentário televisivo desportivo e nem dos melhores (The Two Escobars, de Jeff e Michael Zimbalist, sobre a relação entre o traficante Pablo Escobar e a selecção que representou a Colômbia no Mundial de 94 e que passa no ESPN, é bem mais profundo e mais interessante).

E porém, dois factores redentores podem-lhe ser apontados: um, a rivalidade de Ayrton Senna com Alain Prost, o primeiro o jovem candidato temerário mas sem conhecimento dos bastidores, o outro uma raposa velha que se vê ultrapassada pela puto maravilha, que por si só dava um filme. E, outro, concentrando temporalmente as temporadas do desporto, a capacidade de encontrar nas imagens da época (muitas filmadas a partir do próprio monolugar) e na montagem o entusiasmo que falta à Fórmula 1, um desporto que, visto em directo, faz o curling parecer interessante. Vale essencialmente como compêndio histórico de uma época melhor de um desporto que hoje, empurrado para a Ásia pelas restrições publicitárias, parece decadente (e ainda bem que já não dá em canal aberto).