28 novembro 2011

Frio e clínico


Por esta altura, a ladainha dos filmes "pouco cronenberguianos" de David Cronenberg começa a não fazer sentido. Quanto mais não seja pela quantidade de filmes "pouco cronenberguianos" já existentes, estes começam a constituir um grupo suficientemente grande para terem de ser vistos como parte integrante da filmografia do canadiano. A Dangerous Method é um desses filmes e um, apesar de tudo, com o seu quê de misterioso.

Adaptado de uma peça de Christopher Hampton (autor da versão de palco de Dangerous Liaisons), A Dangerous Method retrata o triângulo intelectual, com o seu jogo de afinidades e sentimentos, entre Carl Jung, Sigmund Freud e Sabina Spielrein, quer na relação sentimental que Jung manteve com a sua paciente tornada médica, quer na relação mestre/discípulo de Freud com Jung e as ríspida cisão que se deu entre ambos, mantendo-se o primeiro firme nas suas crenças científicas e avançando o segundo para terrenos mais "místicos". Afinal de contas, a ciência e o seu conflito com os desígnios insondáveis do ser humano sempre foram a temática de eleição de Cronenberg e aparecem aqui perfeitamente consubstanciados na evolução dos dois psicanalistas.

Aqui há uns tempos, quando revia Scanners (1981), pensava em como, pese embora a (pós-) modernidade evidente dos seus temas, Cronenberg sempre filmou de forma clássica. A Dangerous Method confirma o classicismo do cineasta, a sua forma de filmar racional e clínica, aqui auxiliada não apenas pela económica reconstituição de época como por um argumento baseado em pormenores, nos diálogos densos e nas diferentes entoações, tudo num contexto quase bergmaniano no tratamento da temática da patologia e da doença. Não há, para todos os efeitos, qualquer emoção ou sentimento em A Dangerous Method e cada qual decida se isso é bom ou mau.

E mais não sei dizer. Confesso achar A Dangerous Method desconcertante, não sabendo muito bem o que achar dele, em todo o seu lado teatral, frio e analítico. Do mesmo modo que só a uma segunda visão me apercebi da magnitude de A History of Violence (2005) e da qualidade de Eastern Promises (2007), creio que também só após uma revisão verei este filme em toda a sua profundidade. O que, por sua vez, não implica que não o considere uma obra que de forma alguma desmerece o estatuto merecido de mestre contemporâneo justamente atribuído a David Cronenberg.

23 novembro 2011

O carro era uma mulher!



Quando Christine (1983) surge, John Carpenter vinha de diversos tiros certeiros seguidos. A verdade é que depois de Assault on the 13th Precint, Halloween, The Fog, Escape from New York e The Thing, muito do que hoje associamos de mais mítico ao cineasta, que com o tempo se tornou cada vez mais raro, já estava feito. Christine, das poucas, se não mesmo a única, adaptação literária que me lembro de Carpenter ter feito, não partilha desse mesmo estatuto. Pode-se até dizer que, juntamente com o seguinte Starman, forma uma dupla de filmes considerados menores, antecipando um pouco o que viria a ser a carreira de Carpenter, com filmes idolatrados pelos fãs mas que passam ao lado do grande público.

O lado mais apelativo de Christine prende-se com o seu retrato e exposição da mentalidade adolescente que, longe de datado, aparece como transversal. Arnie Cunningham, interpretado pelo futuro realizador Keith Gordon, é o marrão típico, com dificuldades em abrir cacifos e ainda mais em arranjar miúdas. Quando compra um Plymouth Fire de 1958 por 250 dólares a um velhote sinistro, a sua personalidade passa por uma metamorfose ímpar: rebela-se perante os pais, começa a namorar com a miúda jeitosa acabada de chegar ao liceu 8Alexandra Paul na fase pré-Baywatch) e passa a vestir-se como um rebelde sem causa dos anos 50, dedicando o melhor da sua existência à viatura que apelida com o título do filme. No limite, o que vemos é o carro, na sua componente mais fetichista, servir como catalisador da masculinidade e da independência de um jovem, dando-lhe a força que ele não sabia ter mas, de caminho, colocando-o numa espiral maníaca de obsessão que o afasta de todos e culmina num final trágico.

Ah, o carro também corresponde aos sentimentos exarcebados de Arnie e mata quem se mete no seu caminho, demonstrando toda uma série de comportamentos humanos bem como uma inesperada capacidade de auto-regeneração. Fruto da imaginação de Stephen King, que no início dos anos 80 era adaptado por mestres a uma velocidade avassaladora (lembremos o Shinning de Kubrick e o Dead Zone de Cronenberg), o imaginário automobilistico encontra aqui uma utilização dupla: por um lado, sempre foi um simbolo de independência e liberdade de movimentos bem como da sua posse como ritual de passagem à idade adulta, no que funciona como metáfora da transformação da personagem principal, e como símbolo da América, naquilo que esta de mais industrial e simbólico tem. Este lado americano, aliás, encontra perfeita correspondência perfeita em todo o imaginário visual do filme, que filtra os anos 50 de que Carpenter tanto gosta através dos anos 70, no retrato dos subúrbios como nas roupas das personagens, desde o herói vestido à personagem dos filmes de Nicholas Ray ao vilão com casaco de cabedal e calças de ganga. Como os melhores filmes de Carpenter e de terror em geral, Christine encerra também em si um exacerbado aspecto moralista. Se em Halloween quem sobrevivia era a única adolescente que não cedia às tentações da carne, aqui quem destrói o carro são os dois jovens bem comportados, aqueles que, ao contrário da personagem principal, não tentam mudar de posição social nem desrespeitam os adultos.

Há ainda que referir a qualidade técnica generalizada do filme, desde a belíssima fotografia à iluminação (notáveis as cenas de perseguição em que a viatura é filmada como se fosse Michael Meyers), passando pelo elenco cheio de “character actors” de qualidade, terminando nos efeitos especiais das cenas de reconstrução claramente feitas com o rebobinar da película à magnífica cena em que o carro, para matar um bully, entra por um beco no qual não cabe, num saber fazer artesanal de que vamos sentir falta quando, mais dia menos dia, Hollywood fizer um remake cheio de CGI.

Para se apreciar totalmente Christine, tem de se saber ultrapassar o rebuscado, para não dizer ridículo, da premissa, tipica de Stephen King na sua inverosimilhança. Em bom rigor, não o consigo fazer, até por não me rever nos valores de masculinidade assolapada verificados no automobilismo e no fetichismo que muitos atribuem aos seus carros. Não me sinto, então, tão próximo deste filme quanto de outros do cineasta, desde cedo alguém cujos filmes aprendi a prezar como preciosidades (por influência do meu ex-padrasto, Starman foi um dos filmes que mais vi na minha infância). O que não significa que não deixe de lhe reconhecer a coerência, a qualidade estética e a proficiência de recursos que exibe a cada momento.

16 novembro 2011

Claustrofobia a céu aberto

The Red Badge of Courage (1951) aparece-nos hoje como um objecto problemático. Em primeiro ligar, porque foi adulterado pelo estúdio depois de visionamentos de teste mal sucedidos, que lhe juntou a narração e a introdução a referir conspicuamente a componente de adaptação literária do romance homónimo publicado em 1895 por Stephen Crane. Por outro, aparece na filmografia de John Huston entre The Asphalt Jungle (1950) e The African Queen (1951), possibilitando que seja ignorado a não ser pelos grandes fãs do realizador. Só mesmo estes factores impedem que seja um filme tido como um dos melhores do cineasta, uma quase obra-prima cujo estatuto poderia ter crescido não fossem os factores acima referidos.

História de um jovem combatente na Guerra Civil americana que, durante a primeira batalha em que participa, foge assustado e tem de lidar com a sua consciência depois de ter fugido, The Red Badge of Courage está na exacta antítese dos panegíricos da Cavalaria realizados por John Ford. Em primeiro lugar, porque não se foca tanto na ética e na nobilidade do exército quanto nos tempos mortos da vida militar, as caminhadas, as marchas e os rituais massificadores, mais do que em batalhas e em momentos de acção. Em segundo lugar, porque este é um filme sobre o horror da guerra e sobre a cobardia humana, trocando o que há de heróico na guerra por um olhar aproximado no conflito moral surgido do medo em estado puro. E é, também, um filme sobre as dificuldades de assunção da masculinidade num contexto em que, mais do que exigida, esta é ritualizada e implementada a cada momento.

O que acaba por ganhar The Red Badge of Courage, para lá de todos os problemas que o filme enfrentou, é a forma como Huston gere brilhantemente os meios para atingir os seus fins. Não apenas na forma como filma, com predominância dos grandes planos, com uma personagem à frente, de um dos lados e a outra mais atrás, do lado contrário, potenciando uma claustrofobia a céu aberto que transmite muito bem o medo e o nervosismo das personagens, mas também na escolha de um elenco onde os actores principais, desconhecidos, eram veteranos da Segunda Guerra Mundial. Tamanho realismo e destreza na transmissão das suas ideias acaba por tornar desnecessária a narração; The Red Badge of Courage sobreviveria perfeitamente no silêncio que se confunde com o medo. Ainda assim, excelente filme, ainda para mais disponível no Youtube.

08 novembro 2011

Dardenne, agora a cores



No edificio que os irmãos Dardenne vêm construindo desde meados dos anos 90, Le Gamin au Vélo representa a mudança de tom que o anterior Le silence de Lorna(2008) já antecipava. Por um lado, embora isso não explique tudo, é um filme rodado no Verão, muito menos cinzento do que os anteriores. Por outro, a cinematografia sublinha as opções pictóricas dos cineastas, que aqui optam por corres berrantes, nas roupas dos actores como nos próprios cenários, num todo mais quente e que acaba por tornar este no filme mais acessível que os belgas fizeram até agora.

Cyril, o miúdo do título, é mais um dos meninos selvagens retratados pelos belgas, em que a violência congénita dos que têm de aprender a virar-se sozinhos convive com uma necessidade avassaladora de ser amado, mormente pelo pai, que procura avidamente sem grande sucesso. Este, interpretado pelo habitual Jeremie Renier, é o maior repositório da amoralidade que marca os filmes dos Dardenne, e depois de demonstrar por todos os sinais de que não está interessado, pelos seus próprios interesses, em tê-lo sob o seu cuidado, afirma-o premptoriamente perante a criança. É então que é adoptado por Samantha (Cécile de France, a primeira actriz “famosa” do cinema europeu a filmar com os realizadores), que parece apostada em lhe dar o lar que nunca teve. E aí aparece Wes, dealer adolescente que convence Cyril a entrar num assalto que acaba por correr mal.

A mudança de tom não muda, no entanto, o fulcro do cinema dos Dardenne e, mesmo com as suas diferenças, continua um tijolo no edifício coerente, sólido e bressoniano erigido desde La Promesse (1996). Não só no estudo das suas personagens e no retrato do meio social em que se inserem, como na própria estética persecutória, sempre atrás das personagens, muitas vezes seguindo-as quando estão de costas. Aqui, porém, tudo é mais quente, o universo, em toda a sua dor, é mais acessível e, nesta sua permeabilidade, mais eficaz. Aqui, inclusivamente, na estrutura tripartida (primeiro, a procura do pai; depois, a indefinição entre as figuras paternais; por último, as consequências do assalto que Cyril perpetra) é um filme que até se pode referir ter morais muito concretas, quer no seu estudo do amor incondicional de Samantha (que abdica da sua relação sentimental por Cyril) quer pela lição que o miúdo vai aprendendo: a de que todas as acções acarretam consequências.

Na sua menor austeridade, Le Gamin au vélo consegue acabar como um “feel good movie”, onde, ao contrário do que costuma acontecer, parece ficar presente a ideia de felicidade por vir. É, a um tempo, uma mudança radical e uma continuação de percurso. E, juntamente com Rosetta (1999, completamente inverso no seu desespero e no seu cinzentismo), é o meu filme preferido dos Dardenne.