23 novembro 2011

O carro era uma mulher!



Quando Christine (1983) surge, John Carpenter vinha de diversos tiros certeiros seguidos. A verdade é que depois de Assault on the 13th Precint, Halloween, The Fog, Escape from New York e The Thing, muito do que hoje associamos de mais mítico ao cineasta, que com o tempo se tornou cada vez mais raro, já estava feito. Christine, das poucas, se não mesmo a única, adaptação literária que me lembro de Carpenter ter feito, não partilha desse mesmo estatuto. Pode-se até dizer que, juntamente com o seguinte Starman, forma uma dupla de filmes considerados menores, antecipando um pouco o que viria a ser a carreira de Carpenter, com filmes idolatrados pelos fãs mas que passam ao lado do grande público.

O lado mais apelativo de Christine prende-se com o seu retrato e exposição da mentalidade adolescente que, longe de datado, aparece como transversal. Arnie Cunningham, interpretado pelo futuro realizador Keith Gordon, é o marrão típico, com dificuldades em abrir cacifos e ainda mais em arranjar miúdas. Quando compra um Plymouth Fire de 1958 por 250 dólares a um velhote sinistro, a sua personalidade passa por uma metamorfose ímpar: rebela-se perante os pais, começa a namorar com a miúda jeitosa acabada de chegar ao liceu 8Alexandra Paul na fase pré-Baywatch) e passa a vestir-se como um rebelde sem causa dos anos 50, dedicando o melhor da sua existência à viatura que apelida com o título do filme. No limite, o que vemos é o carro, na sua componente mais fetichista, servir como catalisador da masculinidade e da independência de um jovem, dando-lhe a força que ele não sabia ter mas, de caminho, colocando-o numa espiral maníaca de obsessão que o afasta de todos e culmina num final trágico.

Ah, o carro também corresponde aos sentimentos exarcebados de Arnie e mata quem se mete no seu caminho, demonstrando toda uma série de comportamentos humanos bem como uma inesperada capacidade de auto-regeneração. Fruto da imaginação de Stephen King, que no início dos anos 80 era adaptado por mestres a uma velocidade avassaladora (lembremos o Shinning de Kubrick e o Dead Zone de Cronenberg), o imaginário automobilistico encontra aqui uma utilização dupla: por um lado, sempre foi um simbolo de independência e liberdade de movimentos bem como da sua posse como ritual de passagem à idade adulta, no que funciona como metáfora da transformação da personagem principal, e como símbolo da América, naquilo que esta de mais industrial e simbólico tem. Este lado americano, aliás, encontra perfeita correspondência perfeita em todo o imaginário visual do filme, que filtra os anos 50 de que Carpenter tanto gosta através dos anos 70, no retrato dos subúrbios como nas roupas das personagens, desde o herói vestido à personagem dos filmes de Nicholas Ray ao vilão com casaco de cabedal e calças de ganga. Como os melhores filmes de Carpenter e de terror em geral, Christine encerra também em si um exacerbado aspecto moralista. Se em Halloween quem sobrevivia era a única adolescente que não cedia às tentações da carne, aqui quem destrói o carro são os dois jovens bem comportados, aqueles que, ao contrário da personagem principal, não tentam mudar de posição social nem desrespeitam os adultos.

Há ainda que referir a qualidade técnica generalizada do filme, desde a belíssima fotografia à iluminação (notáveis as cenas de perseguição em que a viatura é filmada como se fosse Michael Meyers), passando pelo elenco cheio de “character actors” de qualidade, terminando nos efeitos especiais das cenas de reconstrução claramente feitas com o rebobinar da película à magnífica cena em que o carro, para matar um bully, entra por um beco no qual não cabe, num saber fazer artesanal de que vamos sentir falta quando, mais dia menos dia, Hollywood fizer um remake cheio de CGI.

Para se apreciar totalmente Christine, tem de se saber ultrapassar o rebuscado, para não dizer ridículo, da premissa, tipica de Stephen King na sua inverosimilhança. Em bom rigor, não o consigo fazer, até por não me rever nos valores de masculinidade assolapada verificados no automobilismo e no fetichismo que muitos atribuem aos seus carros. Não me sinto, então, tão próximo deste filme quanto de outros do cineasta, desde cedo alguém cujos filmes aprendi a prezar como preciosidades (por influência do meu ex-padrasto, Starman foi um dos filmes que mais vi na minha infância). O que não significa que não deixe de lhe reconhecer a coerência, a qualidade estética e a proficiência de recursos que exibe a cada momento.

1 comentário:

My One Thousand Movies disse...

É um dos meus filmes de culto. Mas do período de ouro do Carpenter, é o que gosto menos.