27 novembro 2007

O proverbial coração de ouro




Captain Lochner: "He’s hiding something. And I have a feeling it’s not the proverbial heart of gold."- do diálogo do filme

De todos os momentos em que In a Lonely Place (1950) revela ao espectador a sua própria estrutura (a história de Althea Bruce que é a história do filme; Bogart a dizer a Graheme como são as boas cenas de amor), o mais eficaz é a frase que serve de epígrafe a este texto. Porque, ao longo da relação de Dixon Steele (o melhor desempenho de Humphrey Bogart) com Laurel Gray (Gloria Graheme a passear a classe conhecida de It’s a wonderful life, The Bad and the Beautiful ou The Big Heat), o que vemos é esse coração de ouro e a destruição paulatina a que é sujeito.



Dixon Steele é frágil. A sua propensão para a violência, mais do que um resquício da experiência na Segunda Guerra Mundial, é consequência da sua falta de controlo sobre o que o rodeia. No limite, essa pulsão é transportada para o seu meio – o do cinema – criticado pela sua arrogância, falta de integridade artística e desrespeito pelo passado (o produtor que deita a cinza dentro do copo do actor ébrio). De ego gigantesco (como diz Mel, o seu agente), precisa de sucesso, de aceitação de ser amado. Pior: precisa de o ser incondicionalmente. É o mesmo Mel que diz a Graheme: “If you love him, you gotta take the good with the bad”.



Quando Steele encontra Laurel Gray, encontra finalmente essa hipótese de aceitação total, de amor incondicional, que até então lhe escapara. No entanto, Gray não consegue (até por força das circunstâncias: o homicídio da jovem que recontou o livro a Steele, e de que este é suspeito, os sempre constantes espasmos de violência) e pelas diversas vozes que a lembram da propensão do argumentista para o uso da força (a mais viperina será talvez a massagista. Steele é então prejudicado pela ideia que os outros, os que não vêem o seu coração de ouro, fazem dele e pela interiorização que já fez da violência como modo de vida.



O fim da relação, previsível desde o início não só pela pressão a que os dois amanteis estão sujeitos e pela condenação a que estão sujeitas as personagens de Nicholas Ray, acarreta a morte em vida (“I died when she left me” – o plano final de Bogart, cabisbaixo, a entrar em casa, não deixa dúvidas). Num universo de mundaneidade – jantares, diz-que-disse nos meandros do cinema, porrada – a relação entre Gray e Steele era uma das poucas hipóteses de transcendência que ambos encontrariam. Mais trágico ainda, é o facto de nunca mais ninguém voltar a conhecer Dixon Steele na sua generosidade (as rosas que manda á jovem assassinada) ou na sua capacidade para assumir os erros (os 300 dólares enviados ao jovem que espancou à beira da estrada).



Filme maior na já de si imensa filmografia de Nicholas Ray, In a Lonely Place foi produzido por Humphrey Bogart através da sua companhia Santana Pictures, e pode ser entendido de um ponto de vista biográfico – não só pela eventual identificação entre Steele e Ray como pelo desmembrar do casamento entre o realizador e Graheme que ecoa. Para falar disso, existe a folha da Cinemateca, da autoria de Bénard da Costa. O que aqui está em causa é outra coisa. A dificuldade (impossibilidade?) de fazer passar num texto a emoção que se tem a ver um filme.