Pode haver quem filme melhor que Wes Anderson, mas ninguém filma como Wes Anderson. Colocando a acção dos seus filmes a meio termo entre a concentração espacial e panos de fundo colossais (a Nova Iorque de The Royal Tenenbaums, o mar de The Life Aquatic with Steve Zissou e, agora, a Índia de The Darjeeling Limited), todas as cenas realçam um virtuosismo técnico muito próprio. O que temos neste novo e soberbo filme é uma estranha sucessão de panorâmicas (numa quantidade invulgar), "ralentis", "travellings" e estranhos níveis de câmara (parece estar sempre um pouco abaixo do nível dos olhos de uma pessoa de altura média). E o que é mais espectacular de tudo é que sendo o cinema de Anderson palavroso (os dois Anderson, Wes e P.T., são os mestres do palavrão bem utilizado), focado muito mais nas personagens do que na acção propriamente dita, The Darjeeling Limited não deixa nunca de ter um ritmo interno muito próprio, veloz na sua montagem e nos movimentos de câmara mesmo que, na realidade, o essencial se passe num mesmo espaço – o comboio que dá nome ao filme. Esta capacidade de impor ritmo é marca de um cineasta muito pessoal.
Se há uma ideia de cinema, há também uma ideia de literatura em toda a obra de Anderson. O segredo da densidade extrema das suas personagens reside, maioritariamente, na sua capacidade de serem extremamente complexas dizendo apenas palavras das mais banais, quando não mesmo monossílabos e fazendo os actos mais simples – é incrível a densidade que os gags do cinto e dos passaportes adquirem. Na melhor tradição pragmática da literatura americana do pós-guerra (passam por aqui ecos de Hemingway e, sobretudo, de J.D. Salinger), vale pelo que mostra, pelos imensos silêncios, pelo não dito no meio da torrente de palavras. A estes junta-se a capacidade poética de fazer sobressair, com uma tremenda ajuda da capacidade técnica, os momentos à primeira vista menos importantes e até, à partida, mais banais: só por aquele "ralenti" e pela sua conjugação com a música se safa um momento tão óbvio como os três irmãos livrando-se da sua bagagem emocional ao livrarem-se das malas que herdaram do pai. As imagens de Anderson são, então, nos seus aspectos formais ou imaginativos, uma arte da superação da banalidade, do seu embelezamento e da absorção de todo o seu significado escondido.
Poderá sempre ser afirmado que nada de original há aqui e que Anderson mais não faz do que continuar o caminho iniciado com Bottle Rocket (1994). Se assim é (o tema tratado é, como de costume, a dissolução familiar; alguns dos actores – Jason Schwartzman, Owen Wilson e Bill Murray – são presenças recorrentes), o que se pode ver é que o virtuosismo demonstrado começa a depurar-se e a manifestar-se apenas em função do retrato feito. Por exemplo, o corte transversal no barco de Steve Zissou, grande truque do filme anterior, também aqui aparece mas de forma muito mais sóbria, simples e directa. Cinema de um conhecimento total das suas capacidades, avança calmamente na construção de uma obra, de um tecido contínuo, onde cada peça mantém o seu valor próprio para além do seu valor colectivo. Dentro desse valor, se o filme anterior era menos bom, mero paliativo depois da excelência de The Royal Tenenbaums, este torna a levantar a fasquia. E depois de The Darjeeling Limited, esta talvez esteja mais alta do que alguma vez esteve.
Se há uma ideia de cinema, há também uma ideia de literatura em toda a obra de Anderson. O segredo da densidade extrema das suas personagens reside, maioritariamente, na sua capacidade de serem extremamente complexas dizendo apenas palavras das mais banais, quando não mesmo monossílabos e fazendo os actos mais simples – é incrível a densidade que os gags do cinto e dos passaportes adquirem. Na melhor tradição pragmática da literatura americana do pós-guerra (passam por aqui ecos de Hemingway e, sobretudo, de J.D. Salinger), vale pelo que mostra, pelos imensos silêncios, pelo não dito no meio da torrente de palavras. A estes junta-se a capacidade poética de fazer sobressair, com uma tremenda ajuda da capacidade técnica, os momentos à primeira vista menos importantes e até, à partida, mais banais: só por aquele "ralenti" e pela sua conjugação com a música se safa um momento tão óbvio como os três irmãos livrando-se da sua bagagem emocional ao livrarem-se das malas que herdaram do pai. As imagens de Anderson são, então, nos seus aspectos formais ou imaginativos, uma arte da superação da banalidade, do seu embelezamento e da absorção de todo o seu significado escondido.
Poderá sempre ser afirmado que nada de original há aqui e que Anderson mais não faz do que continuar o caminho iniciado com Bottle Rocket (1994). Se assim é (o tema tratado é, como de costume, a dissolução familiar; alguns dos actores – Jason Schwartzman, Owen Wilson e Bill Murray – são presenças recorrentes), o que se pode ver é que o virtuosismo demonstrado começa a depurar-se e a manifestar-se apenas em função do retrato feito. Por exemplo, o corte transversal no barco de Steve Zissou, grande truque do filme anterior, também aqui aparece mas de forma muito mais sóbria, simples e directa. Cinema de um conhecimento total das suas capacidades, avança calmamente na construção de uma obra, de um tecido contínuo, onde cada peça mantém o seu valor próprio para além do seu valor colectivo. Dentro desse valor, se o filme anterior era menos bom, mero paliativo depois da excelência de The Royal Tenenbaums, este torna a levantar a fasquia. E depois de The Darjeeling Limited, esta talvez esteja mais alta do que alguma vez esteve.
E se não se fala dos sentimentos gerados por The Darjeeling Limited, é porque este encontrará a sua forma de se relacionar com cada espectador, sendo inútil reduzi-los a uma visão pessoal. Como todos os grandes filmes, aliás.
3 comentários:
Salinger tem sido apontado como uma inspiração clara para o universo de Anderson (e pessoalmente vejo muito mais Salinger que Hemingway no cinema de Wes)... Isto apesar da obras de Anderson terem uma, passe a redundância, particular força visual.
E concordo em absoluto quando dizes que os seus filmes constituem «uma arte da superação da banalidade, do seu embelezamento e da absorção de todo o seu significado escondido». Não há quem mostre as "pequenas coisas" como ele nos tempos de hoje...
H.: ora nem mais.
Quando aparecer alguém capaz de fazer misturar tão ecléticas sem cair no mau gosto, podem falar mal dele...
Grande, enorme filme.
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