Ensaio sobre a Cegueira (1995) é, para o bem e para o mal, um dos mais, senão o mais importante livro de José Saramago. Para o bem, pela força de uma distopia, apocalíptica pela ausência de civilização que se gera, abruptamente, da perda de uma das mais elementares funções biológicas. E, não esquecer, pela capacidade do seu autor em fomentar de forma ampla e loquaz o medo no leitor, seja da animalidade humana, seja da máquina de repressão estatal, que nunca perde oportunidade de impressionar os seus cidadãos quando surge algo que a ponha em causa. Para o mal porque, com ele, Saramago parece ter atingido algo como uma fórmula (o acontecimento inverosímil que põe em causa as estruturas civilizacionais), longe da liberdade patente, por exemplo, no sublime Levantado do Chão (1980). Por exemplo, o Ensaio sobre a Lucidez (2004) segue o mesmo método – até no título – mas de forma muito menos interessante. Vamos ver se o recém-editado livro do paquiderme é diferente….
Ancorado no merecido sucesso internacional que até aqui teve, Fernando Meirelles adapta então, 13 anos, um Nobel e uma pneumonia quase mortal depois, a obra charneira de Saramago. E fá-lo mal.
Em primeiro lugar, porque confunde, do ponto de vista da adaptação literária, a truculência virtuosa da prosa do Nobel (desculpem a repetição, é para chatear críticos literários de direita…) com uma deriva maneirista em que o cinema de Meirelles, correndo sempre esse risco, ainda não havia entrado em Cidade de Deus (2002) ou The Constant Gardner (2005). Desde a “metalização” cromática da imagem, tornando-a asséptica, o que “desrealiza” o que estamos a ver e torna menos eficaz a alegoria, até ao imensamente irritante “fade to white” (sem qualquer comparação com o efeito conseguido com os vermelhos de Bergman em Cries and Whispers, 1972), tudo parece ser uma obrigação cinematográfica de Meirelles face ao livro, uma tentativa de mostrar que, se o material de origem é bom, também o cineasta o é. E, pelo menos aqui, não é esse o caso.
E, segundo factor, não parece haver nada neste filme que não deva algo a Saramago, que tenha sido ideia do realizador (por exemplo, o fabuloso momento de Danny Glover a pensar se o regresso da visão lhe vai acabar com o amor é claramente romanesco), que o cineasta tenha juntado à obra do Nobel (embrulhem!). A estrutura do filme é demasiado fiel, contentando-se em resumir a contento o livro, numa espécie de “Caderno Europa-América” visual do que é o romance. E este é muito mais do que isto.
Ainda não foi desta que se viu um bom Saramago no ecrã – e nem me perguntem pela adaptação de A Jangada de Pedra (1986) por um qualquer holandês voador, que nem quero saber. Que no futuro haja um cineasta português, mais conhecedor do contexto em que surgem estas ideias, que adapte dignamente um romance do Nobel português (dói, não dói?). Candidatos a adaptação? O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984).
6 comentários:
Por acaso também me lembrei dos fades do Bergman, no Lágrimas e Suspiros (também dos do Alan Ball no Sete Palmos de Terra, mas isso não tem nada a ver com este assunto) mas ao contrário de ti, gostei na globalidade das opções estilísticas do Fernando Meirelles. Acho que os problemas do filme estão mais ao nível do argumento, até por ser particularmente complicado transpor a prosa do Saramago deste romance para uma linguagem cinematográfica eficaz. Se achei que essas opções estilísticas deram uma pequena ajuda, não foram suficientes. Faltou também um pouco mais de sujeira humana. Por exemplo, o rei da terceira camarata, e eu até sou grande fã do Bernal (apesar de meter nojo porque sempre que vem à baila nas conversas, a namorada perde-se em suspiros) acaba por parecer demasiado bonitinho e de ar bastante simpático. Pedia-se aqui um vilão mais tipificado, à Eisenstein, com ar nojento e tudo :-P Ainda assim, acho que o filme funciona. O final, por exemplo, parece-me brilhantemente transposto das páginas do Nobel (apoio-te nesta!) para filme. E Julianne Moore é demasiado boa para passar em claro.
Abraço.
(o teclado ingles nao permite acentos e outras coisas, mas agora tem de ir assim)
As opcoes estilisticas sao sempre subjectivas, mas neste caso estava mesmo irritado com o que estava a ver. Parece-me um filme a dizer "oh pra mim que sou tao bom". Ele ja mostrava, como dizes no teu tasco, essa tendencia no Cidade de Deus, mas... nesse filme nao me chocava, ate me parecia justificado por modo a dar a ideia do dinamismo daquele sitio. E aqui choca, porque lendo o livro nao vejo necessidade destes malabarismos.
Quanto ao Bernal, e mostrando desde ja a solidariedade contigo, concordo, tem um ar demasiado clean para fazer de vilao. Quanto a Julianne Moore, e sempre magnifica, mas desde o Haynes que nao tem um filme feito a medida dela.
Posto isto, o Nobel (tomem!)ate gostou. E se ele gostou, deve ter mais razao que nos, nao?
Abraco
Pois, se o Nobel (massacre, massacre) gostou, então a missão parece cumprida, pelo menos na consciencia do Meirelles. Eu cá também não desgostei nada.
Abraço.
Bom, Miguel, eu parei de ler o teu post no segundo parágrafo. "E fá-lo mal" deu-me um nó na garganta! Ainda não vi o filme, e quero ir de mente limpa, quando o for ver. Adorei o livro, aliás, sempre gostei muito de Saramago, mas já estou a ver que o filme não segue os mesmos passos... Bom, esperarei para ver, e depois volto cá para te ler!
Espero que esteja tudo bem contigo!
Beijinhos!
P.S. Teclado inglês? Então, por terras estrangeiras?
Muitas das tais opções estilísticas prendem-se com o contornar da inexistência de algo inerente ao Cinema - o olhar. Quando este não existe, procuram-se outras soluções e, nesse sentido, acho que Meirelles o conseguiu. Não é uma obra-prima, não é sequer tão bom como o livro, mas também não é um filme tão mau como as críticas e reacções em festivais me fizeram antever. Eu (não des)gosto.
Nana - Ah quanto tempo!
Ve e depois diz o que achas. Mas, ca para mim, partilharas algumas dos problemas que aqui exponho...
(O teclado e por motivos profissionais, um dia explico-te...)
Wasted Blues - E uma opiniao. Discordo, sobretudo da parte onde dizes que Meirelles tentou colmatar a falta de olhar no romance. Quando muito, acho que os problemas da adaptacao dele sao um excesso e uma serie de erros no olhar: demasiado virtuosismo para o que isto pedia. Se calhar, posso ser eu a estar errado, mas o tempo no cinema foi penoso para mim.
Cumprimentos
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