22 outubro 2009

Mais uma voltinha, mais uma viagem


Quando Saramago abre a boca, pode ser que diga uma asneira. Que, curiosamente, se desmultiplica imediatamente num chorrilho de outras asneiras, num todo confortante e recorrente. Como um casal que, apesar das discussões constantes, não consegue viver separado.


Se fui educado de acordo com os preceitos católicos, hoje estou calmamente afastado deles. Fartei-me de ver na igreja gente que era do pior durante a semana e achava que quarenta e cinco minutos ao domingo serviam de expiação. Concomitantemente, não suporto ver padres presentes em cerimónias públicas num estado laico e ainda me lembro de calinadas difíceis de engolir mesmo passados anos - lembram-se do padre que, em pleno funeral da menina imersa pela família em água a ferver, afirmou que apesar de tudo teria sido pior se a criança tivesse sido abortada? Nada disto faz com que subscreva as infelizes palavras do Nobel português da literatura. Quanto mais não seja porque a validade cultural daquele livro é indesmentível: para o bem e para o mal, aquele livro, como a Ilíada, a Odisseia, o Dom Quixote e a poesia de Dante está dentro de todos nós, como artefacto civilizacional, mesmo naqueles que não o leram. Simultaneamente, acho estranho que Saramago tenha ignorado quanto há de evolução ontológica na transformação da ideia de Deus do Antigo para o Novo Testamento.


Quanto aos senhores que, muito escandalizados, vêm agora pedir a cabeça de Saramago como Salomé a de João Baptista, muito menos dou para o peditório deles. O problema deles com Saramago começou em 1998, quando um escritor vermelho de ideologia venceu um prémio Nobel, numa rebelião cujo expoente actual é o Cardeal Cerej... perdão, Pedro Mexia. Não por acaso, nenhum desses senhores, tão lestos a denunciar o políticamente correcto e a forma como são supostamente cerceados na sua opinião esquecem-se agora de dar o direito de opinião a outra pessoa, deixando esse papel a Manuel Alegre. Já dominam os jornais, as televisões, as mentalidades de grande parte do país, mas ainda lhes dói que haja um espírito livre. Aguentem.


E, de caminho, aguentem também a ideia, o tão simples mas tão complexo conceito de liberdade de expressão. Também não gosto de ouvir atrasados mentais dizer que o Benfica era o clube do regime (factualmente mentira), o Presidente da Confederação de Industriais Portugueses falar da necessidade de salários baixos ou que o Slumdog Millionaire é um grande filme, mas tenho de lidar com isso. Caso tenham de marrar contra alguma coisa, marrem contra a protecção dada à extrema-direita ou a este pobre prisioneiro político.

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