01 junho 2010

Do eternamente adiado pólo da Cinemateca no Porto


Em lead, para não haver dúvidas: sou a favor de um pólo da Cinemateca no Porto ou, mais importante ainda, de algo que desempenhe função idêntica. A segunda cidade do país, mesmo de um país minúsculo, pode e deve ter instituições culturais que criem riqueza, material e humana. No caso do Porto como muito bem frisou Maria João Seixas, é também uma justiça histórica, por a cidade ter sido o berço do cinema em Portugal. Apesar disto, acho importante ressalvar as seguintes questões:

i) É asquerosa a retórica bairrista que tomou conta da zona de comentários da entrevista. Já não há paciência para a ideia, mentirosa e bafienta, de que Lisboa vive à conta dos impostos pagos pelos portuenses, aproveitando as verbas para pavimentar as ruas de ouro e e comprar veículos topo de gama. Cá em baixo também trabalhamos e também pagamos impostos, que o belo governo nacional não olha à proveniência dos fundos. E, tal como vós, não temos qualquer poder de decisão na utilização do dinheiro. Aí, mouros e tripeiros são exactamente iguais.

ii) Quando se fala do centralismo, papão lisboeta cujo único objectivo é denegrir a qualidade de vida do Porto, não seria positivo lembrar as responsabilidades da edilidade no presente estado de coisas cultural? Afinal de contas, estamos a falar do município que inaugurou duas obras estruturais fundamentais para a Capital Europeia da Cultura 2001 (Metro e Casa da Música) anos depois do fim da iniciativa ; da cidade que ofereceu o seu maior teatro a Filipe La Féria; que votou ao abandono o (segundo as imagens que vi) lindíssimo Cinema Batalha e que se prepara fazer o mesmo com o histórico Teatro Sá da Bandeira; e que tem um autarca que fingiu que ia resolver o défice financeiro da cidade através do corte da meia dúzia de tostões que supostamente esbanjava nos apoios culturais – incluindo à maior bandeira cinematográfica do município, o Fantasporto. Tudo isto numa região em que a vizinha Vila Nova de Gaia, que poderia albergar as estruturas que Rui Rio não quisesse, erigiu e ofereceu um centro de estágio ao um clube de futebol riquíssimo, cobrando de renda o equivalente à de um apartamento, num valor que nem sequer paga o consumo mensal de àgua no Olival. Antes de culpar Lisboa, não seria melhor fazer uma auto-análise que permitisse mudar as condições futuras da cidade?

iii) A história contada por Maria João Seixas, acerca da sessão em Serralves com a presença de Pedro Costa, lança-me uma dúvida: até que ponto esta questão não é mais uma cause célèbre interessada em ter algo com o nome igual a um nome de Lisboa ou se é mesmo um desejo saudável de mais e melhor cinema – lembremos também o insucesso do ciclo da Cinemateca realizado na Invicta durante a Capital Europeia da Cultura 2001, que justificou a posição de JBC até à sua morte. Espero que seja a segunda. O meu conselho é que os portuenses prezem as oportunidades que, mal por mal, ainda lhes são dadas. Se não o fizerem, a margem de manobra para exigências decresce substancialmente.

iv) Há algo de muito contraditório em dizer-se que se quer uma rede de cinemas com projecção digital “até ao Pico” e depois dizer-se que começar pela segunda cidade do país “não é prioritário”. Afinal de contas, os meios para fazer algo na área do cinema serão decerto maiores no Porto do que na Guarda, em Coimbra, em Évora ou em Portimão.

Por último, uma nota. É legítima a preocupação de Maria João Seixas de que uma Cinemateca do Porto retire fundos à de Lisboa. Do mesmo modo que não quero retirar a tripeiros para meter na boca de alfacinhas, não espero que aconteça o contrário. Se a ideia do Ministério for não a de aumentar recursos mas sim a de dividi-los entre duas cidades a 300 km de distância, estive aqui este tempo todo a escrever para o boneco. Afinal de contas, metade de pouco é quase nada.

15 comentários:

Back Room disse...

Metade de pouco é quase nada, mas o pouco deve ser dividido na mesma. Ou se for para dividir os fundos, mais vale ficar com tudo em Lisboa? Assim não vamos a lado nenhum. Ou vamos todos para Lisboa, melhor dizendo.

Mais uma coisa, foi de péssimo gosto essa de "os portuenses devem prezar as oportunidades que lhes dão", como se estivesses a dizer que, por aqui não haver NADA em termos de cinema, devemos ir feitos carneiros aproveitar as migalhas que nos atiram. Calma lá com isso.

Odeio regionalismos desse tipo que falas. São nojentos, prejudiciais ao país e foram fomentados principalmente pelo futebol e pelo presidente do futebol clube do porto nas últimas décadas, o que torna a problemática ainda mais irracional. Isso a mim não me diz nada, o país é só um e eu até sou europeísta.

O mesmo vale para a crítica do Olival, é o que temos. O futebol produziu um monstro nojento e corrupto com muito poder. Vamos ver quando acaba.

Em relação ao público para o Cinema na cidade do Porto... não duvides, É IMENSO!
Basta ir ao blog do Cineclube do Porto ver como estas sessões que estão a tentar organizar enchem sempre.
Basta veres a nova dinâmica cultural da cidade, vibrante como nunca esteve nos últimos anos. Basta veres os Clubbings da Casa da Música, o Serralves em Festa, a animação da Bombarda. O Porto tem público para qualquer oferta cultural que surja. Se não se fizeram estudos, que se façam. Não farão mais do que confirmar o que digo.

Miguel Domingues disse...

Caro Back Room, a tua leitura do meu texto entristeceu-me, pois em nenhum momento quis denegrir ou encarneirar os portuenses. Acontece que não acho que um ciclo dedicado a Pedro Costa com a presença do próprio num sitio que dá a caução de Serralves sejam migalhas, são oportunidades que devem ser aproveitadas. E isto diz-te alguém que já perdeu muitas coisas que devia ter visto na Barata Salgueiro. Ponho a questão de outra forma: se os portuenses não aparecem, ainda por cima em eventos importantes, depois sujeitam-se a que haja gente que pensa que não é preciso fazer. E isso, como portugues, acho mal.

Ademais, quem não quer migalhas cria os seus próprios meios. Não terei alguma razão quando culpo a edilidade portuense por algum desleixo cultural?

Quanto à questão com que abres o comentário, achas que a solução é a caridade dos fundos da Cinemateca de Lisboa para com o Porto? Eu não acho, e a haver um pólo da Cinemateca no Porto defendo que seja o mais independente possível, financeiramente e em termos de programação e de espólio. O que não significa que não faça bem partilhar; significa que, assim, as coisas serão mais escorreitas e ninguém ganha grande coisa com a partilha de fundos exíguos. É certo que o dinheiro é um instrumento ao serviço de uma política cultural, mas 0,3% do orçamento? Só no Burundi. Importa também aumentar o investimento.

Quanto ao resto do texto concordo. E não, para mim, nem todos os portuenses são o Fernando Madureira ou o Bruno Pidá. Como decerto me darás equivalentes lisboetas. Em momento algum fui regionalista no meu texto, pelo menos conscientemente.

Abraço

Back Room disse...

Uma coisa que me esqueci: a questão das salas de espectáculo.

Não conheço o caso do Cinema Batalha, mas até tenho medo de saber. Em relação ao estado de degradação do Sá da Bandeira (mete medo entrar naquela coisa, é um sala lindíssima, mas...) e ao La Feria no Rivoli, é inqualificável sim.
Mas a verdade é que a opinião pública portuense tem falado sempre bem alto contra estes casos, e já conseguiu algumas coisas, por exemplo, em relação ao Coliseu.
O que faz o senhor Rui Rio não tem nada a ver com a vontade do povo portuense em relação à cultura.

Back Room disse...

Não tinha lido o teu comentário quando completei o meu.

Claro que não foste regionalista, eu estava a concordar contigo quando criticas esse regionalismo dos portuenses. E esse existe, de facto.

Um ciclo do Pedro Costa não são migalhas, mas também já houve certamente bons eventos em Lisboa com falta de público. Não é por aí. Garanto-te que público há.

Quando às (ir)responsabilidades do Porto em relação à cultura, plenamente de acordo, mas são responsabilidade de quem governou a cidade nos últimos anos. Já o disse no outro comentário, não reflecte o interesse dos portuenses pela cultura.

Miguel Domingues disse...

Então espero que elejam um autarca que se preocupe com estas questões. Como desejo que haja um autarca lisboeta que acabe com a degradação do Parque Mayer (que belo sítio para uma Broadway lisboeta). Quanto ao resto, fico contente por saber que há público. Agora é criar condições para a sua mobilização e rentabilização. Que a Cinemateca do Porto seja o primeiro passo (já viste se o Bruno Alves tem visto um filme do Godard? era uma paz de senhor eh eh)

Abraço

Unknown disse...

Sim, aqui há alguns pontos interessantes que merecem discussão. O primeiro e mais importante prende-se com a ideia de uma cinemateca no Porto que, enquanto cinéfilo, a vejo como nada menos do que indispensável. Esta jigajoga provocada pela Sra. Seixas entristece-me um pouco pois parece-me, em tudo, pouco convicto das potencialidades de uma cá no norte. Ainda assim, se os recursos têm que ser divididos, sou apologista da solução. Porque não pode Lisboa ter menos para o Porto ter efectivamente alguma coisa? Agora, claro que Braga pode reclamar uma. Setúbal também. Mas na óptica das cidades mais importantes, parece-me que esta seria uma equilibrada decisão.

Quanto aos tais regionalismos, costuma-se dizer que no Porto trabalha-se e em Lisboa goza-se. Embora não seja verdade, tal facto provém de grande parte do entretenimento de qualidade ir parar a Lisboa assim como os fundos para o proporcionar. Veja-se o caso do Estoril Film Festival que recebeu fundos dez vezes superiores ao Fantas (este só existe há mais de 30 anos.. coisa pouca). E isso sim, enfurece-me.

Abraço

Miguel Domingues disse...

Fifeco: Pois. E assim, como há partilha de fundos, o investimento pode relaxar. É um pouco a mesma coisa que dizer que não precisas de ganhar bem porque tens familiares e amigos que te ajudarão a comer. Assim, porque há o teu patrão de te aumentar?

Quanto ao resto, concordo com o aspecto negativo de uma feira de vaidades do sr Paulo Branco receber mais do que o mais antigo festival de cinema em actividade. Mas a Câmara do Porto também cortou subsídios ao Fantas... e era bem mais interessada no caso do que o festival do Estoril.

Já a ideia de que vocês trabalham e nós gozamos só me faz é rir. É daqueles preconceitos que não ajudam em nada. Mas ao menos é um preconceito divertido.

Grande abraço e aparece mais vezes

Back Room disse...

O problema é enquanto o PS continuar a apresentar candidatos ridículos como a Elisa Ferreira, Rui Rio está à vontade, porque ganha naturalmente. Ele ou outro candidato culturalmente vá, inapto, como o PSD nos habituou.

Mas deixa-me reforçar, para acabar, que como disseste não precisa de ser um pólo da Cinemateca. Pode ser um organismo semelhante, mas independente. Desde que exista.

Só deixo mais um ponto: era assim tão complicado o financiamento de uma rede de pequeninas salas de cinema com programação decente, baseada ou não na programação da Cinemateca, em cada capital de distrito? Gasta-se dinheiro em tanta coisa...

Miguel Domingues disse...

Seria possível houvesse vontade política de gastar dinheiro bem gasto na cultura - por exemplo, lembra-te que há fundos europeus destinados à cultura em Portugal que nunca cá chegam porque a UE só os desbloqueia perante um investimento inicial do governo de cada país, que no nosso caso não existe. Houvesse vontade, era possível, saudável e muito positivo. Mas até ver passos concretos nesse sentido, continuarei céptico.

Juom disse...

Bem, o assunto parece-me complexo e já se vem a arrastar desde os tempos do Bénard da Costa, mas também começo por referir que sou um defensor absoluto de um polo da Cinemateca no Porto, ou de outra instituição de funções semelhantes. A começar e a acabar nos motivos históricos que ligam o cinema à cidade.

Como sabes, seja qual for a situação (futebol incluído), detesto a atitude bairrista que aqui referes, mas parece-me indiscutível que a diferença da oferta cultural entre Lisboa e Porto, para não falar no resto do país, é abismal. Claro que parte da culpa tem de ser atribuída também aos próprios portuentes. Rui Rio é um presidente de câmara pouco interessado em incentivar a cultura na cidade, e o cinema específicamente tem vindo a morrer aos poucos, pela falta de espaços de exibição activos. E os restantes exemplos que mencionas (o caso Rivoli, a constante falta de apoio ao Fantas) são sintomáticos, e espelham a total indiferença perante qualquer tipo de tradição - cultural, comercial, popular. Ainda assim, tem ganho eleições com margens confortáveis, e quanto a isso pouco nada há a fazer. Mas, globalmente, o investimento feito na capital é infinitamente superior ao resto do país, disso não tenho dúvidas, e nem o exemplo de promiscuidade autárquica-futebolística serve de desculpa, porque esta também existe na capital.

Por vezes, para o público ter acesso a determinada oferta cultural, é preciso também investir na sua divulgação, e nesse particular parece-me também estar a falhar alguma coisa, como de resto aconteceu com o exemplo de Serralves e Pedro Costa. Ainda assim, a questão da disponibilidade do público para estes eventos é pertinente. Ainda há uns dias, assisti a duas sessões de cinema nas salas Medeia do Bom Sucesso, ao final da tarde, e deveria ter um total combinado de 6 ou 7 pessoas nas salas. Mas a questão relativa à exibição comercial acredito que possa ser explicada pela desertificação do Porto em detrimento de periferias como Gaia, Maia ou Matosinhos, onde há tanta ou mais oferta de cinema comercial do que no centro do Porto. Estas sessões específicas, desde que devidamente divulgadas, podem ter público - em 2001, e ao contrário do que referes, cheguei a assistir a sessões do ciclo (inesquecível Leopardo, o meu primeiro Visconti com Bénard e Cardinale na sala) completamente esgotadas, e por outro lado já vi algumas sessões na Barata Salgueiro com pouco público. E uma coisa é certa: se essa oferta não existir, então é que não irá existir público algum.

Daniel Pereira disse...

Só um pormenor. Sei por pessoa que assistiu a mais do que uma sessão do Pedro Costa em Serralves que o número de pessoas não foi sempre reduzido. Que não se crie agora uma verdade pela história que a Maria João Seixas contou.

Miguel Domingues disse...

Paulo: Concordo quase inteiramente com o que escreveste. Apenas faço dois reparos.

i) se escrevi o que escrevi sobre os ciclos do Costa em Serralves e da CEC 2001 foi porque os dois directores o referiram e não tinha razões para pensar que mentiam - creio que terão generalizado demasiado.

ii) quanto à promiscuidade entre futebol e política, é claro que ela também existe no Sul - e na Madeira, por exemplo. Basta veres os sítios onde estão construídos a Luz e o Alvalade XXI, pior era impossível em termos, por exemplo, de circulação automóvel - para já não falar na hipótese de estádio municipal, de que sou o único defensor que conheço (à época um estádio municipal para Porto e Boavista também teria feito sentido). Agora, o que não me parece é que a cidade de Lisboa se tenha dedicado de forma tão forte ao futebol como a do Porto. Compreendo que o FCP, rebuçadinhos ou não, foi a principal marca da cidade do Porto durante três décadas e não tenho dúvidas de que muita gente no mundo terá ouvido falar do Porto pela primeira vez aquando das duas Taças dos Campeões ganhas pelo clube. Porém, em Lisboa não se deixou que o futebol secasse o resto. Caso houvesse um caso Olival cá em baixo, seria o primeiro a protestar - e decerto não achas bem que o teu clube pague o mesmo por um centro de estágio do que tu, provavelmente, pagas pela tua casa.

O teu último parágrafo é sintomático do que digo. E para o cumprir são tão responsáveis o Ministério e a Cinemateca quanto as entidades culturais da cidade. Espero sinceramente que isto mude.

Grande abraço

Miguel Domingues disse...

Daniel: a resposta à tua objecção está contida no ponto i) do meu comentário anterior.

Grande abraço

Juom disse...

Eu percebi que te referias a dados lançados pelos respectivos organizadores dos eventos, mas também me parece mais uma generalização do que outra coisa, embora admita logo aqui que, devido a uma fase mais intensa a nível profissional, não assisti a qualquer sessão do ciclo do Pedro Costa, coisa que ainda hoje me incomoda bastante.

Quanto às questões da promiscuidade municipal-futebolística, não tenho quaisquer objecções ao que apontas, e há ainda a juntar algumas questões relacionadas com os anteriores presidentes do Boavista muito mal explicadas e que, de certa forma, ajudaram também a contribuir para o declínio do clube histórico - claro que o actual presidente/cowboy, na sua suposta luta contra este tipo de promiscuidades, levou a coisa ao extremo, que culminou na questão das celebrações do título do FCP que todos já conhecemos - mas não esqueças outras polémicas relacionadas, por exemplo, com as célebres dívidas benfiquistas negociadas com Manuela Ferreira Leite, mais um exemplo entre muitos outros que infelizmente são bastante comuns. Porque insisto neste ponto novamente, tendo em conta o tema do tópico? Porque me parece que esta questão dos apoios e financiamentos municipais ou do estado tem, como muita coisa neste país, mais a ver com manias pessoais (de presidentes de câmara, de ministros...) do que com coerência. Enquanto clubes de futebol têm passivos gigantescos e acumulam resultados negativos mas continuam a investir à grande nas suas equipas, as pequenas salas de cinema tradicionais vão acabando o que, sem apoios de qualquer forma, é apenas uma questão de tempo. Problema da pirataria e do home cinema que afasta as pessoas das salas e acaba com lucros? Por essa lógica, os clubes de futebol com relatórios de contas negativos também deveriam sair prejudicados e não o são. O mesmo se passa em praticamente todo o lado, onde directores de bancos são milionariamente recomensados mesmo em anos como este último. Talvez porque a cultura seja o patinho feio da sociedade, e ao que parece nada disto estará prestes a mudar, e qualquer motivo parece suficiente para se estagnarem projectos como este da Cinemateca.

Enfim, já estou a divagar em demasia, desculpa lá.

Grande abraço.

Miguel Domingues disse...

Termino dizendo apenas, sem mais ressalvas: integralmente de acordo!