28 novembro 2010

Re-publicação Take (2)


Quando, na minha primeira acção como colaborador da Take, entrevistei António-Pedro Vasconcellos (APV) durante a preparação do seu novo filme, fiquei surpreendidíssimo com a pessoa que encontrei. Afável, óptimo conversador mesmo por entre testes de maquilhagem e guarda-roupa, menos amargurado do que enérgico quanto ao que quer ver mudado no cinema português e, ao mesmo tempo, mantendo sempre uma enorme frontalidade e honestidade no seu discurso. Teria ficado a falar com o cineasta um fim-de-semana inteiro e apenas parte desse fim-de-semana teria sido passado a falar do clube de que ambos somos confessos adeptos ferrenhos.

Chegada agora a estreia de A Bela e o Paparazzo, a maior dificuldade que se põe é a de conciliar o homem que escreveu o catálogo do ciclo sobre Roberto Rosselini na Gulbenkian, entrevistou Truffaut para a revista Cinéfilo e vê constantemente o inolvidável A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939) com o homem que faz filmes destes e que aparece a discutir bola com duas pessoas que não adjectivarei por medo de represálias judiciais na RTP. A tese de APV é simples: o público é o cliente do cinema e, como tal, tem sempre razão. Se a populaça não reage às Fontainhas de Pedro Costa, ao Portugal profundo de João Canijo ou à incomunicabilidade nas relações humanas de Fernando Lopes, a culpa é dos cineastas e não de quem não lhes dá oportunidade. Logo, a receita para o cinema português é uma terra queimada onde o digno e, custe a quem custar, qualitativamente muito satisfatório passado autoral seria substituído por um cinema acima de tudo comercial, como uma Hollywood à beira-mar plantada. E o resultado prático dessa teoria é um filme que dá ao público aquilo que ele quer, mesmo que o faça deitando pela janela qualquer originalidade ou interesse, quando não mesmo debitando clichés e fazendo piadas sensaboronas.

Soraia Chaves (gostava que lhe fosse dada a oportunidade de fazer um papel sem ter de estar espampanante, decerto se veria melhor o seu apreciável talento de actriz) interpreta uma vedeta de novelas que se apaixona, sem o saber, pelo paparazzo que a persegue (competente Marco d’Almeida) e que, por sua vez, vive numa Bica que só existe nas mentes do argumentista e do realizador com dois freaks saídos de uma sitcom de fraca qualidade (um dos quais um Nuno Markl a expandir para o cinema a sua persona mediática). De cores almodovarianas (e atente-se nas cenas do esgotamento de Mariana nas filmagens da telenovela, que tão bem ficariam num filme do espanhol) e com uma referência explícita a O Apartamento (Billy Wilder, 1960, vejam a cena do esparguete escoado através da raquete de ténis), é um filme frouxo, filmado de forma pouco personalizada e que, no limite, nada acrescenta ou retira, fruto de um argumento que tem sido muito prezado mas que é absolutamente indiferente. O seu maior problema, no entanto, é de índole ético-moral: num filme que pretende criticar e desmistificar a vacuidade do star-system e da produção televisiva portuguesa, a receita encontrada é trazer toda essa linguagem e toda esse mundo para um filme, aproveitando o potencial comercial dos nomes envolvidos, fazê-lo com a mesma normalização estética de uma telenovela bem como com a sua ingénua ideia de felicidade (duas pessoas descalças à noite no Rossio não encontrariam o amor, encontrariam sim alguém com uma navalha na mão e um apetite por carteiras e telemóveis alheios) bem como na sua ideia perigosa de que, de uma maneira ou outra tudo acaba sempre bem. Resumindo-o: dá-se ao público aquilo que ele quer enquanto se critica o que o público quer. E este respondeu, nem que seja pelo imenso esforço publicitário feito em torno de A Bela e o Paparazzo, desde spots radiofónicos e televisivos a uma semana inteira a ele dedicado no programa 5 para a Meia-noite, anúncios em jornais e revistas e uma ante-estreia sumptuosa no cinema S. Jorge. APV, parte integrante do Cinema Novo, a Nova Vaga portuguesa que nunca o foi, está hoje no exacto antípoda do “Eu quero que o público português se foda” do companheiro geracional João César Monteiro aos microfones da SIC. É pena.

Se quisermos, então, voltando ao primeiro parágrafo, tentar conciliar os inegáveis conhecimento e amor pelo cinema de APV com aquilo que é o produto final produzido pelo cineasta, podemos pensar na cena em que Mariana ensaia A Gaivota de Anton Tchékov. O pormenor mais importante é o casting de APV e do produtor Tino Navarro, respectivamente, como encenador e produtor da peça. O que aqui podemos ver, no limite, é a ideia, que APV por diversas vezes repete, de que é tão autor e de que os seus filmes são tanto arte quanto a obra-prima do dramaturgo russo ou quanto qualquer outro filme “de autor” português. O problema é que tal ideia esbarra na realidade dos objectos criados. De caminho, A Bela e o Paparazzo só me faz pensar que muito do que está errado no panorama mediático e artístico português passa por aqui. E, pelo facto de ter adorado falar com o realizador durante algumas horas em Junho, só me entristece escrevê-lo.

Re-publicação Take (1)

A partir de hoje, inicio aqui a republicação de alguns dos textos que escrevi enquanto colaborei activamente com a revista Take. Numa altura em que, por motivos de disponibilidade temporal, sou obrigado a abandonar a publicação, fica aqui o meu obrigado a todos aqueles que fazem parte da mesma, com um especial destaque para o director José Soares e para o editor Miguel Reis.




A obra de João Pedro Rodrigues manifesta, dez anos após a estreia nas longas com O Fantasma (2000), uma admirável coerência estética. O seu cinema é melodramático, filtra Douglas Sirk e todo o melodrama norte-americano através de Rainer Werner Fassbinder, pega em abundantes outras referências americanas e europeias e regurgita-as num todo de cinema que, em Portugal e na Europa, não se confunde com o de mais ninguém, criando simulacros dentro de simulacros, num cinema cuja realidade se alimenta e se configura a si mesma, numa estilização auto-fágica. Só que, confessamos desde já, não gostamos do cinema de João Pedro Rodrigues, no seu indomável gosto pelo escatológico, no seu embelezamento do decadente, na sua mistura complexa de gerir entre a literalidade total do kitsch e o simbolismo artístico máximo mas inconsequente.

Se O Fantasma parece, à distância, um filme insuportável no seu asco e se Odete (2005) entra amiúde pela patetice indesculpável, Morrer como um homem até se pode dizer que melhora um pouco o estado de coisas. A história de Tónia, num fascinante estádio intermédio de definição sexual (já não exactamente homem mas nunca mulher), tem amplos aspectos de relevo nas suas viagens pelos bas-fonds lisboetas, nos poucos momentos em que o seu lirismo atinge a medida certa (o fado final ou o Sempre Ausente de António Variações cantado “a capella” pela janela de um carro), na sequência da canção de Baby Dee em tons vermelhos e na comoção que Alexander David empresta à personagem principal, num desempenho justíssimo de tom.

Justeza de tom que falta a tudo o resto: às cenas na casa junto à barragem, às discussões entre o casal, às cenas no cabaret e sobretudo na incapacidade de usar a suspensão da descrença, mormente na incompreensível guerra alegadamente a ser travada em território nacional. O mais interessante de Morrer como um homem acaba por ser, então, a sua estrutura, à maneira de um musical pós-Hollywood com apenas três ou quatro números, normalmente os momentos mais conseguidos do filme. O que ainda torna mais difícil de aceitar a falta de ritmo da obra, extensível a outros filmes, estendendo a ideia a um ponto que, pela falta de concisão, o torna cansativo. Apesar de tudo, pelas vezes em que acerta, pelo talento visual (indesmentível) que João Pedro Rodrigues possui e pela diferença face ao restante panorama cinematográfico global, sentimos vontade de entrar mas ficamos à porta, a olhar para dentro. Ainda assim, mesmo não gostando, defenderemos sempre o direito de Morrer como um homem a existir.

20 novembro 2010

Sombras e Luzes



A Praça de Touros do Campo Pequeno, belíssimo edifício no exterior, é um feio e desconfortável espaço para concertos. Não há um único aspecto em que o Coliseu dos Recreios não lhe seja superior. No entanto, tem sido esse o local de eleição, nos últimos tempos, para concertos em Lisboa. Como tal, no passado dia 12 de Novembro, fez ontem uma semana, lá me dirigi para ver os Interpol, naquele que acabou por ser um excelente concerto e uma prova de vitalidade dos nova-iorquinos depois da saída do baixista Carlos Dengler.


Antes, os Surfer Blood, misto de indie rock com surf music, fizeram uma primeira parte prejudicada pela falta de qualidade de som. Banda nova, com um razoável disco de estreia, Astro Coast (2010), teve um espectáculo necessariamente curto e competente, embora, pelo meio do potencial, deixem ainda transparecer alguma inexperiência.




Relativamente aos Interpol, há duas formas de se perspectivar o seu percurso: i) o de uma banda que lançou o seu melhor material nos seus dois primeiros álbuns e a partir daí decresceu de qualidade; ii) o de uma banda que apesar da superioridade dos seus dois primeiros álbuns, continua a editar material interessante e a ser uma banda de relevo no panorama internacional. Eu afino pelo segundo diapasão e por isso troquei o bilhete de Arcade Fire por um ingresso neste concerto. Começando com “Success”, tema de abertura do novo disco, o que se viu foi um espectáculo ritmado, sem pontos baixos, de uma máquina de palco muito bem rotinada e coadjuvada por um excelente jogo de luzes. É natural que os melhores momentos do concerto tenham sido temas mais antigos como “Narc”, “Slow Hands”, “PDA” ou “Obstacle 1”, mas a conclusão mais importante a retirar desta noite foi a de que a banda tem temas para além dos mais famosos e que se aguentam perfeitamente no embate com aqueles.

Não se espere dos Interpol um espectáculo “de estádio”, digno de “animais de palco” como os discípulos Editors, pois são uma banda mais cerebral, mais atmosférica, mais comedida mesmo quando o ritmo acelera. Mas passou por aqui uma tão flagrante parte da última década e, tout court, tão boa música que foi o fim ideal para mais uma duríssima semana de trabalho.

15 novembro 2010

Mamas e bolas

No seu depoimento para o artigo do JN para o qual prestei declarações, António-Pedro Vasconcellos diz que a nossa petição lhe é "indiferente". Trata-se já disso:






Confesse lá, agora já gosta mais de nós?

11 novembro 2010

Da criação e outros demónios


O Facebook é um lugar estranho, na mesma medida em que é um excelente negócio. Porque consegue vender um produto que é exactamente o contrário do que é apregoado: propõe uma forma de aproximação enquanto produz distanciamento e alienação, escondendo exemplarmente as suas limitações. Senão, vejamos: com quantas pessoas comunicam no Facebook que não significam nada para vós? Muitas, decerto. E com quantas pessoas de que gostem e são vossas amigas no Facebook estiveram pessoalmente nos últimos seis meses? Infelizmente, decerto que poucas.

Com a notoriedade e importância que o Facebook gerou nos últimos anos, era inevitável a feitura de um filme sobre o assunto. Felizmente, The Social Network é um filme realizado por David Fincher, um dos grandes estetas do nossos, escrito por Aaron Sorkin (da magnífica série The West Wing) e com gente competentíssima a protagonizar (Jesse Eisenberg, no seu melhor papel até agora, junta-se ao irresistível cretino Justin Timberlake) e musicar (a banda sonora é o melhor trabalho de Trent Reznor desde o início da década de 90) e transforma um material digno de telefilme numa obra cinematográfica vibrante e urgente sobre as dinâmicas do poder e as suas influências nos percursos individuais.

Todos os mitos de criação precisam de um demónio, diz o argumento, e o deste filme é Mark Zuckerberg, o mais jovem bilionário de sempre e que, como decerto muitos inventores, gerou a sua criação para impressionar uma mulher. The Social Network é, no limite, a história de como o pequeno-burguês, confrontado com a cabidela dos fortes (a orgia dos privilegiados em Harvard), encontra na técnica a sua vingança, pensando e executando mais e melhor do que foi pensado e executado pelos mais ricos. No seu modo psicoticamente agressivo de relacionamento e na sua brutal frustração sexual, encontra o combustível para a sua criatividade. O problema é que este é um modo difícil, quando não impossível, de desligar e o caminho de Zuckerberg é um de progressivo isolamento e solidão. A personagem principal é, então, um precoce conhecedor de quão inóspitos são os topos das cadeias alimentares. E, de caminho, um curioso precursor do resultado final daquilo que inventou.
The Social Network é, também, magnificamente filmado por David Fincher, que cada vez mais põe de lado a sua estética publicitária, para a sintetizar com o classicismo. Assim, sobrevive a montagem rápida, a que se juntam os velozes e musicais diálogos de Aaaron Sorkin, inseridos numa curiosa acepção de filme de tribunal, que usa as audiências preliminres com modo de estruturar os flashbacks. Depois de Zodiac e do maravilhoso The Curious Case of Benjamin Button, Fincher revela-se, embora de forma discreta, como um nome fundamental do cinema do nosso tempo.

O que ganha The Social Network é, assim, a sua brilhante ironia. Afinal de contas, o que o início da maior rede social do mundo produziu, no meio da sua propalada amizade e vontade de democratização, foi meramente uma versão ancestral da luta pelo poder e do brutal ressentimento a que essa luta conduz. Na modernidade vemos, afinal, o carácter mais básico do ser humano. E não há nada de mais paradoxal do que uma invenção que não muda nada. Digo eu, que escrevo isto enquanto vou dando uma olhada ao meu Facebook.

07 novembro 2010

Hong Kong Fora de Horas


Filme muito pouco convencional, PTU (2003) é uma das grandes obras de Johnnie To e, dos filmes que dele vi, apenas The Mission (1999) e Sparrow (2008) lhe estão próximos. Retrato de uma noite infernal em Hong Kong, em que um sargento da brigada anti-crime perde infantilmente a sua arma, se vê envolvido na morte de um filho de um líder das tríades e recebe a ajuda pouco ética de um pelotão da Police Tactical Unit na busca da pistola, é mais um exemplo de uma enorme mestria de To nos terrenos do thriller e um filme que corta de maneira muito interessante com o maniqueísmo habitualmente associado ao cinema asiático.


Mais do que um filme de acção – que só explode verdadeiramente na última cena – PTU é uma sucessão de deambulações, encontros, desencontros e cruzamentos na selva urbana deserta da madrugada, que o cineasta filma com desenvoltura, com o tradicional cuidado na gestão das diferentes tensões, com belos exemplos de mise en scène em profundidade de campo e com a capacidade, muito típica de Hong Kong, de desenvolver uma narrativa inteira com personagens de pouca densidade, todas definidas em traço grosso nos primeiros 20 minutos de filme. To é um extraordinário utilizador dos meios e da indústria de Hong Kong, conseguindo a um tempo inserir os seus filmes num género perfeitamente definido (o cinema de acção baseado no binómio polícia/tríades) e transcendê-lo completamente. Neste filme, para o fazer, conta com dois aliados particulares: o seu precioso sentido de enquadramento, que coloca em cada frame um sentido de perturbação que ajuda flagrantemente ao ambiente de pesadelo que o realizador procura; e um belíssimo aproveitamento das iluminações cromáticas, desde os tons de vermelho em momentos de violência, os amarelos e dourados perante figuras ou situações de poder e o retrato da urbe numa alternância de tons de preto ou de branco berrante em piscinas de luz, um pouco à maneira do que Robert Siodmak fez em The Killers (1946). Sobretudo, mais do que uma história simples, Johnnie To filma um mundo em que, polícias ou ladrões, toda a gente luta é para safar o próprio coiro, não olhando a meios para o fazer – genial a sequência do “interrogatório” no salão de jogos -, abdicando sagazmente de tomar partido por qualquer das partes interessadas. Infelizmente, esta overdose de estilo sem heróis a que o público se possa agarrar não fez muito pela carreira do cineasta, que desde 2001 tem tido progressivamente mais dificuldade em montar os seus projectos. É o preço do brilhantismo.


Por último, destaque para a belíssima companhia de actores que vemos em quase todos os filmes de To em papéis que correspondem, sem tirar nem pôr, aos tipos que interpretam noutros filmes: o belíssimo Lam Suet, sempre alguém com o seu quê de ridículo, a autoridade natural de Simon Yam ou a obesidade de Tian-lin Yang, que faz dele um óptimo chefe de uma tríade, ajudam o espectador já iniciado a entrar nas obras subsequentes de um universo que, nas suas relações estilísticas e temáticas, se alimenta de si mesmo.

Cintra Ferreira RIP


Nunca o conheci. Cruzei-me com ele várias vezes em visionamentos, ele um dos consagrados que toda a gente conhecia, eu um puto que toda a gente olhava de lado, como que interrogando o que raio faria ali. Homem que falava alto, tinha também um visual muito próprio, onde as vestimentas discretas coincidiam com um boné dificil de ignorar e com um daqueles patuscos cordéis a prender os óculos às orelhas. Por trás de tudo isto estava um dos mais sábios críticos da nossa praça, alguém com um conhecimento absolutamente impressionante do cinema (sobretudo dos anos clássicos americanos) e que, em boa verdade, já não tinha na imprensa portuguesa um espaço que o valorizasse. É, depois de Bénard da Costa, o segundo crítico de valor que perdemos em 2 anos de uma geração que ainda fará muita falta e que dificilmente terá substitutos à altura. Felizmente, ainda guardo dele muitas folhas da Cinemateca que muito me ensinaram ao longo dos anos. Cá ficarão, a amarelecer, sabendo que, como de costume, sobreviveram ao homem que as escreveu.