07 novembro 2010

Hong Kong Fora de Horas


Filme muito pouco convencional, PTU (2003) é uma das grandes obras de Johnnie To e, dos filmes que dele vi, apenas The Mission (1999) e Sparrow (2008) lhe estão próximos. Retrato de uma noite infernal em Hong Kong, em que um sargento da brigada anti-crime perde infantilmente a sua arma, se vê envolvido na morte de um filho de um líder das tríades e recebe a ajuda pouco ética de um pelotão da Police Tactical Unit na busca da pistola, é mais um exemplo de uma enorme mestria de To nos terrenos do thriller e um filme que corta de maneira muito interessante com o maniqueísmo habitualmente associado ao cinema asiático.


Mais do que um filme de acção – que só explode verdadeiramente na última cena – PTU é uma sucessão de deambulações, encontros, desencontros e cruzamentos na selva urbana deserta da madrugada, que o cineasta filma com desenvoltura, com o tradicional cuidado na gestão das diferentes tensões, com belos exemplos de mise en scène em profundidade de campo e com a capacidade, muito típica de Hong Kong, de desenvolver uma narrativa inteira com personagens de pouca densidade, todas definidas em traço grosso nos primeiros 20 minutos de filme. To é um extraordinário utilizador dos meios e da indústria de Hong Kong, conseguindo a um tempo inserir os seus filmes num género perfeitamente definido (o cinema de acção baseado no binómio polícia/tríades) e transcendê-lo completamente. Neste filme, para o fazer, conta com dois aliados particulares: o seu precioso sentido de enquadramento, que coloca em cada frame um sentido de perturbação que ajuda flagrantemente ao ambiente de pesadelo que o realizador procura; e um belíssimo aproveitamento das iluminações cromáticas, desde os tons de vermelho em momentos de violência, os amarelos e dourados perante figuras ou situações de poder e o retrato da urbe numa alternância de tons de preto ou de branco berrante em piscinas de luz, um pouco à maneira do que Robert Siodmak fez em The Killers (1946). Sobretudo, mais do que uma história simples, Johnnie To filma um mundo em que, polícias ou ladrões, toda a gente luta é para safar o próprio coiro, não olhando a meios para o fazer – genial a sequência do “interrogatório” no salão de jogos -, abdicando sagazmente de tomar partido por qualquer das partes interessadas. Infelizmente, esta overdose de estilo sem heróis a que o público se possa agarrar não fez muito pela carreira do cineasta, que desde 2001 tem tido progressivamente mais dificuldade em montar os seus projectos. É o preço do brilhantismo.


Por último, destaque para a belíssima companhia de actores que vemos em quase todos os filmes de To em papéis que correspondem, sem tirar nem pôr, aos tipos que interpretam noutros filmes: o belíssimo Lam Suet, sempre alguém com o seu quê de ridículo, a autoridade natural de Simon Yam ou a obesidade de Tian-lin Yang, que faz dele um óptimo chefe de uma tríade, ajudam o espectador já iniciado a entrar nas obras subsequentes de um universo que, nas suas relações estilísticas e temáticas, se alimenta de si mesmo.

Sem comentários: