A partir de hoje, inicio aqui a republicação de alguns dos textos que escrevi enquanto colaborei activamente com a revista Take. Numa altura em que, por motivos de disponibilidade temporal, sou obrigado a abandonar a publicação, fica aqui o meu obrigado a todos aqueles que fazem parte da mesma, com um especial destaque para o director José Soares e para o editor Miguel Reis.
A obra de João Pedro Rodrigues manifesta, dez anos após a estreia nas longas com O Fantasma (2000), uma admirável coerência estética. O seu cinema é melodramático, filtra Douglas Sirk e todo o melodrama norte-americano através de Rainer Werner Fassbinder, pega em abundantes outras referências americanas e europeias e regurgita-as num todo de cinema que, em Portugal e na Europa, não se confunde com o de mais ninguém, criando simulacros dentro de simulacros, num cinema cuja realidade se alimenta e se configura a si mesma, numa estilização auto-fágica. Só que, confessamos desde já, não gostamos do cinema de João Pedro Rodrigues, no seu indomável gosto pelo escatológico, no seu embelezamento do decadente, na sua mistura complexa de gerir entre a literalidade total do kitsch e o simbolismo artístico máximo mas inconsequente.
Se O Fantasma parece, à distância, um filme insuportável no seu asco e se Odete (2005) entra amiúde pela patetice indesculpável, Morrer como um homem até se pode dizer que melhora um pouco o estado de coisas. A história de Tónia, num fascinante estádio intermédio de definição sexual (já não exactamente homem mas nunca mulher), tem amplos aspectos de relevo nas suas viagens pelos bas-fonds lisboetas, nos poucos momentos em que o seu lirismo atinge a medida certa (o fado final ou o Sempre Ausente de António Variações cantado “a capella” pela janela de um carro), na sequência da canção de Baby Dee em tons vermelhos e na comoção que Alexander David empresta à personagem principal, num desempenho justíssimo de tom.
Justeza de tom que falta a tudo o resto: às cenas na casa junto à barragem, às discussões entre o casal, às cenas no cabaret e sobretudo na incapacidade de usar a suspensão da descrença, mormente na incompreensível guerra alegadamente a ser travada em território nacional. O mais interessante de Morrer como um homem acaba por ser, então, a sua estrutura, à maneira de um musical pós-Hollywood com apenas três ou quatro números, normalmente os momentos mais conseguidos do filme. O que ainda torna mais difícil de aceitar a falta de ritmo da obra, extensível a outros filmes, estendendo a ideia a um ponto que, pela falta de concisão, o torna cansativo. Apesar de tudo, pelas vezes em que acerta, pelo talento visual (indesmentível) que João Pedro Rodrigues possui e pela diferença face ao restante panorama cinematográfico global, sentimos vontade de entrar mas ficamos à porta, a olhar para dentro. Ainda assim, mesmo não gostando, defenderemos sempre o direito de Morrer como um homem a existir.
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