05 dezembro 2010

Iguaria Tex-Mex



Passam despercebidos, sem publicidade, mas Sunshine State(2002) e Lone Star (1996), dois maravilhosos filmes de John Sayles, estão correntemente em exibição no Canal Hollywood. Focando-nos no segundo, Lone Star é um belíssimo whodunnit tex-mex em estilo noir sulista politizado e de elevado toque romanesco. Confusos? Passo a explicar.

Sam Deeds (esplêndido Chris Cooper, num desempenho intenso mas discreto), xerife da povoação de Rio County, na fronteira do Texas com o México, é filho de um antigo xerife, o mítico Buddy Deeds (bom desempenho, embora curto, de Matthew McConaughey) que por sua vez ficou conhecido por retirar desse mesmo cargo e expulsar da cidade o anterior agente da lei, o sádico, corrupto e violento Charlie Wade (competentíssimo Kris Kristofferson). Tendo ganho o cargo por ser filho de quem é, o Deeds Jr encontra o corpo de Wade e, a partir desse momento, enceta uma investigação onde, mais do que tudo, deseja desmascarar o pai devido a este não o ter, na sua adolescência, deixado prosseguir o seu romance com Pilar (excelente Elizabeth Peña), no presente do filme uma professora local acusada de desvirtuar o ensino da História de modo a aumentar a influência da cultura mexicana no Texas. Tudo isto numa cidade de calor abrasador, paisagem inóspita e onde, apesar de a população ser composta maioritariamente por mexicanos e negros, é a minoria branca que retém o poder e a influência mas onde são claras as intersecções humanas e culturais.


Cuidado, o trailer é completamente enganador.

Nas suas duas horas e um quarto, filmadas, pelo cuidado dado aos diálogos e pelo brilhantismo da progressão narrativa equilibrada e cartesiana, como se de um romance se tratasse, Sayles traça um retrato multi-facetado e amplo de uma mentalidade sulista nos seus diversos matizes. Em primeiro lugar, há uma constante influência do passado, que se revela o motor de todas as acções presentes das suas personagens, num todo coral e em que cada narrativa vai reforçando as anteriores, de modo que nem há qualquer necessidade de voice over, tal a clareza da montagem e do diálogo. Em segundo lugar, Lone Star trata também das regras tácitas, dos procedimentos num dado local e num determinado tempo e da forma como, para todos os efeitos, são esses modos de agir que fazem a identidade de um local e, ao mesmo tempo, alimentam a teia de ressentimentos. Por último, e em relação com o segundo ponto, há a temática principal do filme, a noção de fronteira e a forma como todos, em certos momentos e de diferentes maneiras, as ultrapassarmos, tornando as vidas e os lugares muito menos determinados à partida do que eles aparentam ser, quer de um ponto de vista pessoal quer de um ponto de vista sociopolítico. Não sendo nunca alguém com um ponto de vista redutor sobre qualquer destas questões, o cineasta, mais do que afirmar o lugar-comum de que nada é tão simples como parece, dedica-se a provar esta tese, compondo um fresco sulista que se apoia no western mas que fala claramente do seu tempo. Na tradição do cinema liberal de que Sayles faz parte, não é descabido vê-lo também como uma resposta às visões mais extremas da imigração existentes nas fronteiras norte-americanas.

Há, então que perguntar: como é possível que um filme tão rico, tão cheio de ideias (até do ponto de vista visual, com a incorporação dos flashbacks com um simples desviar da câmara, reforçando a ideia de uma continuidade entre tempos naquele local) e com uma tão interessante reflexão cinéfila sobre o western (a última frase do filme é “Forget the Alamo”; à maneira do Liberty Valance de John Ford, quando se descobre a verdade sobre Buddy Deeds, o filho responde “Buddy is a goddamn legend – he can take it”) é ignorado e o seu cineasta alguém que, muitas vezes, para compor o orçamento, tem de aceitar trabalhos como script docter? Simples. Esteticamente, pelo seu carácter romanesco já referido e pelos seus tom e ritmo muito próprios, diferentes de praticamente tudo o que se vê no cinema americano (ou de qualquer outro lado, já agora), o que aqui temos é um filme que, longe de ser hermético (até o criticam por ser demasiado ilustrativo), existe no seu próprio universo formal, na sua própria maneira de ser, dando-se até ao luxo de fugir a sete pés do clímax que a cena final, com a sua revelação bombástica, pediria a qualquer outro cineasta. Absorvente, subtil e profundo, Lone Star é um daqueles filmes que se revê dezenas de vezes e onde se descobre sempre algo de novo e cujos segredos são tantos que parecerá sempre um outro filme. E, a um tempo, um daqueles filmes que nunca arrastará multidões, nunca granjeará reconhecimento generalizado e nunca promoverá o seu criador. Vê-lo no Canal Hollywood não muda muito, mas é uma boa forma de ajudar ao começo da mudança deste estado de coisas.

2 comentários:

Luís Mendonça disse...

Concordo em absoluto. Dois grandes filmes. E também descobri "Limbo", provavelmente "a obra-prima" de Sayles.

De qualquer modo, como disse há pouco tempo no blogue http://paixoesedesejos.blogspot.com/2010/12/memoria-do-cinema-392-terra-do-sol.html

é bom ver que à pessoas atentas à qualidade de um filme como "Sunshine State".

Abç,

Miguel Domingues disse...

Limbo tenho cá para ver. Amo absolutamente este filme, Sunshine State gostei imenso quando vi, mas até rever prefiro este.