23 março 2011
20 março 2011
Ford pós-Rosa Parks
Era claro, desde o primeiro momento, que John Ford tinha um grande filme de tribunal em si. Pensemos em Young Mr Lincoln (1939) e naquelas belíssimas sequências em que o advogado Abraham mostra o seu talento e onde o cineasta ensaia tanto a comédia quanto o trabalho em "huis clos", tratando tão bem os espaços fechados quanto trata os “wide open spaces” do Oeste. Foi apenas, no entanto, com o crepuscular Sargeant Rutledge (1960) que Ford levou até ao fim essa propensão, iniciando, de caminho, os ajustes de contas que caracterizaram o final da sua carreira.
Sargeant Rutledge faz pelos afro-americanos, no seu cinema figuras menores, tratadas com uma tolerância ainda com o seu quê de racismo ou como figuras dignas de respeito mas de menor importância narrativa, aquilo que Cheyenne Autumn (1964) viria a fazer pelos nativos. Neste filme, Ford situa a acção, cronologicamente, numa época pós-escravatura (muito depois da conquista do Oeste), onde as cartas de alforria são abundantes e os negros têm a sua própria brigada na cavalaria norte-americana. Má consciência, talvez, a que leva a que esta homenagem seja feita apenas no ocaso do género e de uma era, mas que essa homenagem exista é é um excelente sinal de uma carreira (a de Ford) bem menos ideologicamente formatada do que se suporia. Por último, nesta questão, refira-se que a homenagem ao papel dos negros no Oeste se concatena com a impressionante figura Woody Strode, aqui retratado, no papel da personagem-título, como a epítome do brio, da galanteria e da competência militares, no melhor dos papéis que o cineasta deu a este grande actor. De resto, de notar também a “coda“ do filme, com os soldados a marchar perfeitamente enquadrados no Monument Valley e o quanto essa atenção particular é uma muito eficaz forma de inscrição.
Se é como homenagem ao papel dos negros na cavalaria que Sargeant Rutledge ganha a sua relevância, é enquanto filme de tribunal que atinge a excelência. Porque, parafraseando o célebre adágio classicista, longe de achar que há apenas uma forma de filmar uma sala de tribunal, o cineasta usa e abusa da estilização formal, da coreografia e, superlativamente, da profundidade de campo. Há um constante jogo entre as diversas câmaras, numa montagem ritmada, mostrando de diversos ângulos os procedimentos e que, através da posição de cada actor no plano, revelam a posição da personagem na relação de forças do mesmo. Simultaneamente, quando estão para ser mostrados os flashbacks onde o espectador toma contacto com os factos, há um enorme trabalho de iluminação, cuja modelação progressiva como que cria um espaço intermédio entre o presente e o passado da narrativa. Semelhante estilização visual, juntamente com a estilização dos cenários, mais artificiais do que nunca e procurando menos o realismo do que a “ideia” do Velho Oeste, colocam Sargeant Rutledge para lá do classicismo da obra do autor, ou seja, como um dos momentos iniciais da fase pós-clássica da obra de John Ford, que culminaria nos seguintes Two Rode Together (1961) e The Man Who Shoot Liberty Valance (1962).
Numa altura em que o western norte-americano definhava e todo o cinema americano era acusado (frequentemente com razão) de se ter deixado ultrapassar pelos tempos, Sargeant Rutledge mostra (como The Grapes of Wrath o havia feito no seu tempo) um realizador em sintonia com a sua época. Afinal, este é também um filme sobre o “separate but equal”, sobre as promessas por cumprir depois do fim da escravatura e do longo caminho que os negros tiveram a percorrer depois de Abraham Lincoln. Filme pós-Rosa Park, é também uma prova de que, a espaços, soube perfeitamente medir o pulso ao seu tempo e que o seu classicismo não era, pelo menos no final da sua carreira, marca de reaccionarismo ou alheamento.
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14 março 2011
Podcast Luis Mendonça/Miguel Domingues
Na sequência das diversas iniciativas que temos levado a cabo no âmbito da Petição Pelo Regresso da Exibição Regular de Cinema à RTP2, chega agora o nosso primeiro podcast. Algo longo, com 40 minutos (afinal de contas, são seis meses de trabalho), serve de resumo do que foi feito até agora e de antecipação do futuro. Enjoy!
12 março 2011
06 março 2011
Na senda de qualquer coisa
The Fighter é, até hoje, o projecto mais pessoal de Mark Wahlberg. Produtor, argumentista e actor principal, Wahlberg empenhou muito da reputação granjeada nos últimos anos na feitura deste filme, no seu realismo (os combates foram filmados pela mesma equipa que os filmou, originalmente, para a HBO) e na escolha de um elenco uniformemente excelente na sua apropriação às personagens. Adicionalmente, contratou o sempre interessante David O. Russell para a realização. Tristemente, consegue apenas que The Fighter seja um filme mediano, sem um golpe de asa que o eleve acima dos largos exemplos de filmes no mundo do pugilismo.
E, apesar de tudo, é um filme que se vê muitíssimo bem, sobretudo, enquanto parte do fluxo de filmes recentes passados na cidade de Boston e que tratam os seus códigos de honra, as suas unidades familiares e até as suas paisagens degradadas (o bairro de Lowell, onde Wahlberg se dedicou outrora à delinquência juvenil), na senda de filmes como Good Will Hunting, Mystic River ou o mais recente The Town. Na senda de certos filmes de boxe (os diversos Rocky à cabeça) é um belo exercício sobre o pugilismo como meio de escape da pobreza material e espiritual desses locais e é, inclusivamente, filmado num estilo cru e ritmado, o que, juntamente com a intriga baseada mais nas personagens do que nas acções, na senda do cinema da década de 70 do cinema americano.
Se tudo correu bem com a escrita do parágrafo anterior, é fácil perceber que o problema de The Fighter é ser sempre na senda de qualquer coisa. Se o interesse humano e cultural está lá, é difícil não pensar em como já vimos todos os elementos que compõem esta obra noutras de qualidade bem maior. O que o redime é o facto de a mão-de-obra ser muito boa: não só o realizador e o actor principal estão em bom plano como os secundários Christian Bale (fenomenal), Amy Adams e Melissa Leo prendem o espectador ao ecrã. Não se perde tempo a vê-lo mas esperava-se mais do projecto mais pessoal de Mark Wahlberg.
E, apesar de tudo, é um filme que se vê muitíssimo bem, sobretudo, enquanto parte do fluxo de filmes recentes passados na cidade de Boston e que tratam os seus códigos de honra, as suas unidades familiares e até as suas paisagens degradadas (o bairro de Lowell, onde Wahlberg se dedicou outrora à delinquência juvenil), na senda de filmes como Good Will Hunting, Mystic River ou o mais recente The Town. Na senda de certos filmes de boxe (os diversos Rocky à cabeça) é um belo exercício sobre o pugilismo como meio de escape da pobreza material e espiritual desses locais e é, inclusivamente, filmado num estilo cru e ritmado, o que, juntamente com a intriga baseada mais nas personagens do que nas acções, na senda do cinema da década de 70 do cinema americano.
Se tudo correu bem com a escrita do parágrafo anterior, é fácil perceber que o problema de The Fighter é ser sempre na senda de qualquer coisa. Se o interesse humano e cultural está lá, é difícil não pensar em como já vimos todos os elementos que compõem esta obra noutras de qualidade bem maior. O que o redime é o facto de a mão-de-obra ser muito boa: não só o realizador e o actor principal estão em bom plano como os secundários Christian Bale (fenomenal), Amy Adams e Melissa Leo prendem o espectador ao ecrã. Não se perde tempo a vê-lo mas esperava-se mais do projecto mais pessoal de Mark Wahlberg.
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02 março 2011
A primeira vez não volta mais
A melhor característica do cinema de Sofia Coppola é a sua omnipresente "coolness". Simultaneamente "high tech" e artesanal, comercial e independente, emocional e distanciado e sempre com uma patine indie a coordenar estas vertentes, o cinema da filha de Francis marcou indelevelmente a última década com a sua frescura e originalidade. Que são precisamente as duas características ausentes do novo Somewhere.
Vencedor do Leão de Ouro em Veneza, Somewhere é Sofia Coppola em modo remix: passado num hotel (como Lost in Translation), trata de um actor (como Bob Harris) em plena crise de identidade, à espera que o vento mude, vivendo no Chateau Marmont (com o luxo e o glamour da Versailles de Marie Antoinette) entre sexo casual, cerveja e os compromissos da vida de actor. Inclusivamente, há uma cena, perto do final do filme, com o muito competente Stephen Dorff ao telefone que parece decalcada da chamada telefónica que Scarlett Johansson faz no início de Lost in Translation.
Estamos, então, em pleno território do baralhar e voltar a dar, da utilização conspícua de uma receita ganhadora e os resultados, até ver, não têm sido brilhantes. Exceptuando o Leão de Ouro em Veneza, bilheteira e crítica têm sido moderadas, relevando precisamente essa pouca frescura actual de uma carreira que, lembremos, ainda só vai no quarto filme. Apesar de tudo, lembremos também que este é o mais seco e depurado de todos os filmes de Sofia Coppola, chegando a trazer à mente, nalguns momentos, a depuração e o carácter rarefeito dos filmes de Jim Jarmusch.
Como em todos os cineastas de universo (demasiado) definido, a opinião de cada um dependerá do seu apreço por esse universo. Eu, fã da filha de Francis desde The Virgin Suicides, consegui passar por cima da repetição e da pose (afinal, Sofia fala do mundo a que sempre pertenceu, denunciando a sua vacuidade sem demonstrar qualquer vontade de sair dele) e dificilmente me senti insatisfeito. Ainda que, como em todos os filmes de um cineasta cuja obra me marcou, tenha sentido pena de que a primeira vez não volta mais.
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