17 abril 2011

All that country


Não sei, já esqueci, o que estava a fazer quando estreou A Prairie Home Companion (2006), mas tê-lo perdido em sala parece-me hoje, depois de uma visão cortesia do disco rígido da minha Meo Box, como uma das minhas maiores falhas na década transacta. O derradeiro filme de Robert Altman, estreado poucos meses antes da morte do cineasta, é o seu grande testamento cinematográfico, um olhar sobre o fim de um mundo e de um tempo e um exemplo cabal do seu modo idiossincrático e coral de filmar.

A Prairie Home Companion é o título de um programa radiofónico que, aos sábados à noite, ainda mete poucas centenas de pessoas num teatro de uma pequena cidade do Minnesota para meia-dúzia de canções country hardcore (nem os comercialismos à Garth Brooks nem o alt de Bright Eyes ou Ryan Adams). Acontece que o teatro foi adquirido por uma multinacional que o planeia demolir para construir um parque de estacionamento. O que seguimos, durante a perfeição que é este filme, é o último espectáculo e que corresponde ao início de uma era de incerteza na melhor das hipóteses, talvez até de apagamento para aqueles artistas, na melhor das hipóteses condenados a seguir o circuito das pequenas feiras em direcção ao esquecimento final. O filme, escrito pelo radialista Garrison Kellor, que se interpreta a si mesmo, intercala os bastidores de que fala o título português com números musicais, interpretados brilhantemente pelo inspiradíssimo casting (as irmãs Meryl Streep e Lily Tomlin são pouco menos que geniais e o duo Woody Harrelson e John C. Reilly pouco fica atrás) e o elenco coral, como habitualmente em Altman (aos actores já referidos juntam-se Kevin Kline, Tommy Lee Jones, Lindsay Lohan e uma esplendorosa Virginia Madsen, anjo da morte a lembrar a Jessica Lange do All That Jazz de Bob Fosse), não lhes fica atrás. Numa carreira em que, entre o genial Shortcuts (1993) e Gosford Park (2002), pouco de interessante houve, A Prairie Home Companion faz, de pleno direito, figura de obra cimeira.

Se assim é, é porque Altman, puxando dos galões do seu virtuosismo (vejamos o início, travelling sobre Kevin Kline a sair de um “diner”num ambiente misto de “film noir” com a América profunda de Tom Waits), e através do método comum nos últimos anos da sua carreira, o mosaico de personagens num mesmo contexto, aproveita o argumento de Kellor para a derradeira encenação: a do seu próprio fim, enquanto pessoa e enquanto cineasta. Voltando a motivos comuns na sua obra (lembremos Nashville, também ambientado no meio do country), Altman junta ao filme uma camada de nostalgia pelo fim próximo de um tempo (vejamos o chiaroscuro constante e a profusão de dourados na fotografia) e malsão pelo medo do futuro. Não sendo um filme assustado com o que aí vem, é um filme com plena consciência do fim que representa – para as personagens, para o cineasta (que o filmou aos 81 anos) e até para o tempo de um certo cinema (não poderá ser feita uma analogia entre este tipo de country e o cinema norte-americano dos anos 70 de que Altman foi nome cimeiro)?

É sempre arriscado perguntar se Altman estaria ciente da proximidade da sua própria morte (embora, quando se atingem certas idades respeitáveis, esta seja sempre uma sombra) e se a encenação que faz dela é consciente. Porém, uma certeza é possível avançar: A Prairie Home Companion bate-se de igual (podendo até perder, mas lutando até ao fim) com filmes de igual função como o já citado All That Jazz (1979) de Bob Fosse ou o Morte em Veneza (1971) de Luchino Visconti. Se isto não é elogio, então não sei o que será…

2 comentários:

João Raposão disse...

Acho que nunca tinha visto dizerem tantas coisas boas sobre este filme. É capaz de ser dos poucos que ainda não vi do Altman, talvez por não me despertar tanto interesse. Vou ver se trato disso.

Miguel Domingues disse...

Para mim, é mesmo a não perder!