09 outubro 2011

Portugal no Coração


Aqui há uns tempos, queixei-me de que havia poucos filmes portugueses que falavam da “vida real”, dos subúrbios, das dificuldades financeiras, do ambiente desesperançado, utilizando o vernáculo comum. Não é preciso procurar mais: Sangue do meu sangue é esse filme. Pela primeira vez desde que me lembro, vejo um filme nacional com uma sopeira como personagem principal (Rita Blanco para a qual faltam adjectivos, a mostrar a tremenda actriz que é) secundada por uma filha que tenta superar as limitações do seu meio, cursando enfermagem (belíssima Cleia Almeida), por uma cabeleireira (excelente Anabela Moreira), com personagens que trabalham no Pingo Doce e com dealers em bairros degradados. As ruas estão escuras e sujas, cheias de grafitti e, pormenor fundamental, por trás de toda a acção, aparecem as telenovelas da TVI, os programas de televisão vespertinos e as canções de Tony Carreira. É como se, tendo sempre procurado o “país real”, Canijo o tivesse encontrado com maior veemência e maior relevo não no interior desertificado, mas nos subúrbios onde se tenta viver por entre o aguentar, nas enormes períferias urbanas geralmente preteridas por histórias passadas nos meios mais abastados. Parecendo esta alteração do Portugal profundo para os subúrbios coisa pequena, ao seguir a evolução demográfica o filme ganha mais actualidade, os cenários tornam-se mais reconhecíveis e adquire um lado quase documental. Portugal 2010/2011 passa mais por aqui do que por qualquer outro filme/livro/disco que tenha ouvido.

E, ao mesmo tempo, como em Noite Escura (2004), também aqui estamos sobre a égide da tragédia grega. Todas as personagens de Sangue do meu sangue sofrem precisamente pela sua hybris, pelo desafio ao destino que fazem, por tentarem viver as suas vidas fora das limitações que o seu contexto lhes impõe. Márcia, a matriarca da família, sofre as consequências de uma noite de sonho há vinte e tal anos; Cláudia paga não só pelos pecados da mãe como pela sua vontade de extravasar o seu meio, deixando o namorado de sempre por uma paixão perigosa por um professor; e Joca, o filho mais novo, acaba por arrastar a tia num percurso perigososo, por tentar ultrapassar a hierarquia do mundo em se escolheu movimentar. Neste contexto, a solução ou o paliativo para este sofrimento acaba por ser o sacrifício pessoal, as coisas que as personagens, sobretudo a mãe e a tia cabeleireira, optam por fazer para manter a unidade familiar, para proteger o futuro e por amor àqueles que as rodeiam. Por muito disfuncional ou esquálida que pareça aquela família, é a realidade que aquelas pessoas conhecem e a que pertencem e por ela dão tudo o que têm. É também sobre isso que fala Sangue do meu sangue, sobre a capacidade de amar do "bas fond" português e é esse facto que o agiganta, que o transforma de uma simples crónica familiar num épico proletário em surdina, um filme naturalista e que disseca toda uma facção do povo português.

Atinge aqui o seu corolário o percurso que João Canijo começou com Sapatos Pretos (1998 – se calhar até antes, que as duas primeiras longas, Três Menos Eu e Filha da Mãe escaparam-me), de mostrar o Portugal dos nossos dias, os seus recantos escuros, as suas limitações, o seu atavismo mas também as suas superações, a sua generosidade e a sua beleza. Não sei o que fará a seguir, mas Sangue do meu sangue parece um fim de ciclo. Sei apenas que pela sua força, pelos seus actores (de referir, por exemplo, os sempre excelentes Nuno Lopes e Beatriz Batarda em papéis secundários), pelo retrato que faz de um país por onde não passaram fundos europeus ou expos nem passarão tgvs ou fundos de resgate, é uma obra monstruosa, que merece que o Portugal contemporâneo veja e nele se reveja. Muito do que somos hoje está aqui contido dentro.

5 comentários:

João Lameira disse...

este é daqueles filmes que apetece arrastar as pessoas da rua para a sala de cinema, obrigá-las a vê-lo. como não se pode fazer isso, resta-nos textos como o teu. haja alguém que o leia e vá pelo seu próprio pé.

Miguel Domingues disse...

Citando-te de memória: é um dos acontecimentos cinematográficos do ano, mesmo que o mundo não saiba. Gostaria que os blogs que defendem este filme fizessem o máximo possível pela sua divulgação.Eu, por mim, só posso fazer esta parte.

Abraço

Ricardo Martins disse...

Caramba, tá-me a dar vontade de ver.

Parece-me que este é "o" filme que fazia há muito tempo falta no cinema português.

Miguel Domingues disse...

Ricardo, É o filme para ver neste momento! Vê no CinemaCity, em Alvalade, que de 2ª a 5ª o bilhete é barato e vês a versão longa!

Abraço

Anónimo disse...

Gostei bastante da crítica. Vou tentar ver o filme esta semana.

Cumprimentos.
bogiecinema.blogspot.com