06 janeiro 2008

Bonecas Russas


Do ponto de vista temático, a filiação de Eastern Promises na obra de David Cronenberg é inequívoca. A metamorfose é aqui a transformação de Nikolai Luzhny (fabuloso Viggo Mortensen, será que a Academia o viu?) de um agente do FSB (antigo KGB), alguém que tenta acabar com a vertente russa do crime organizado em Londres, tornando-se precisamente num dos criminosos que tenta combater. Outra dessas metamorfoses é a de Anna, que de mulher que sente as alegrias da maternidade apenas por interposta pessoa passa a dona do seu próprio agregado familiar. Do lado físico, lembre-se a luta na sauna – a razão por que este filme será recordado no futuro? – onde o corpo humano é mostrado como uma arma, bem como o tradicional horror ao sexo (a única cena de sexo é com uma prostituta, Naomi Watts só se consegue “reproduzir” de forma assexuada, e um beijo é a única prova carnal dos sentimentos partilhados por Anna e Nikolai).

Se nada do que atrás aparece escrito é difícil de perceber, as relações entre essas temáticas e a mise-en-scène de Eastern Promises revela-se bem mais complicada. Porque, à primeira vista, este parece um filme académico, filmado com um classicismo que pouco ou nada parece acrescentar. A uma segunda visão, contudo, revela-se o quanto é esta estrutura lúcida e clínica que permite entrever as bonecas russas que são cada uma destas personagens, e o progressivo entrelaçar das suas ambições, das suas famílias e do seu uso particular da violência. Por outras palavras, mais do que um enunciar brusco da metamorfose e das restantes obsessões, há uma progressão elegante na revelação das diferentes matizes destas personagens que é potenciada precisamente por esta estrutura.

Mais do que uma crítica, este texto pretende ser uma resposta interior à dúvida levantada neste post. Pela minha parte, continuo com dúvidas relativamente á eventual inclusão de Eastern Promises no lote dos grandes filmes de 2007, mas após duas visões já faço parte do grupo que nele vê um interessantíssimo objecto de cinema.

3 comentários:

Daniel Pereira disse...

De facto, a "reprodução" é assexuada e só existe essa prova carnal. Mas parece-me que a personagem de Watts não é, de todo, assexuada. Desde a primeira vez que ela e Nikolai partilham uma sequência, senti uma enorme tensão sexual. Mais do que ela ser "assexuada", achei que a encenação fria de Cronenberg (e o argumento, claro) obriga a essa repressão de desejo.

Ou então isto é o meu cérebro a reagir à imagem da Naomi Watts.

Miguel Domingues disse...

Sem dúvida. Eu não quis dizer que a tensão sexual não existia. Referia-me somente à representação sexual gráfica. Tensão existe, mas o facto de nunca ser concretizada também é uma marca cronenberguiana, ao manter aquela relação "pura".

Gonçalo Trindade disse...

"Por outras palavras, mais do que um enunciar brusco da metamorfose e das restantes obsessões, há uma progressão elegante na revelação das diferentes matizes destas personagens que é potenciada precisamente por esta estrutura."

Creio que é mesmo esse o grande triunfo do filme. Cronenberg consegue colocar-se por baixo da pele das personagens, e todo o filme é um revelar de camadas superficiais até chegarmos finalmente ao que cada personagem é verdadeiramente.