Yi Yi, soberbo filme final de Edward Yang, revela a meio a sua moral, caso o espectador não a tenha ainda percebido: “Os files são como a vida. Se não fossem não gostávamos deles”, diz um adolescente a outro. Esta fascinante obra taiwanesa, que se insere no grupo de mosaicos que saíram no final da década de 90, principio da presente (ao mesmo nível de Magnólia de P.T. Anderson, muito acima de Le Gout des Autres de Agnés Jaoui), é delicado mas fácil de entender, longo mas económico, silencioso mas revelador. O seu grande mérito é esse: pegando no mais trivial, nas pequenas grandes tragédias quotidianas, Yang retira um objecto de fôlego, paradoxalmente grandiloquente na sua timidez. Depois desta maravilha, onde há pérolas como as fotos das nucas das pessoas por Yang-Yang ou o cigarro pensativo de NJ sobre um fundo azul, autênticos tableaux vivants de solidão urbana, será muito mais fácil atacar as quase quatro horas de A Brighter Sumer Day.
29 março 2009
Cornucópia
Na passada sexta-feira, no final da encenação de Luís Miguel Cintra d’A Tempestade de William Shakespeare que tive o privilégio de presenciar, Luís Miguel Cintra dirigiu-se ao público. Com um semblante visivelmente carregado, explicou que, sendo Dia Mundial do Teatro, não haviam sido oferecidos bilhetes porque o concurso para a atribuição de verbas estava atrasado, sendo que qualquer quantia disponibilizada só o seria, findo o concurso dentro de quinze dias e terminados os respectivos aspectos burocráticos, no principio de Junho. As despesas, como é lógico, começaram em Janeiro. De acordo com o encenador, a Cornucópia estava em risco de ter de suspender as actividades dentro de dias, por falta de verbas.
Posto isto, resta-me apenas fazer o que nunca fiz neste blogue e pedir aos leitores que gastem sete euros e meio ou quinze euros e se desloque àquele teatro. Não só pela excelente peça e pelo trabalho da maior companhia de teatro lisboeta mas para tentar contrariar os desígnios de quem gosta dos tachos mas não faz nada para os justificar.
Posto isto, resta-me apenas fazer o que nunca fiz neste blogue e pedir aos leitores que gastem sete euros e meio ou quinze euros e se desloque àquele teatro. Não só pela excelente peça e pelo trabalho da maior companhia de teatro lisboeta mas para tentar contrariar os desígnios de quem gosta dos tachos mas não faz nada para os justificar.
24 março 2009
Escalar a montanha do Serra
Pasme-se: este blogue também fala de cinema e sem usar comentários de mau gosto de jogadores de futebol como piadas parvas no título.
É o seguinte: quando saiu Honra de Cavalaria fui ver ao cinema. Adormeci e sai da sala quando o filme ia a meio, assim que acordei. Na passada segunda-feira, tentei ver O Canto dos Pássaros. Passado três minutos comecei às cabeçadas no ar, rés-vés com o sono, como se estivesse numa tarde de Verão a ver a Volta a Portugal em Bicicleta. Quando olhei para o telefone e vi que, dos 35 minutos de filme que já se tinham passado tinha visto, com atenção, meramente 10, sai.
Duas tentativas. Dois falhanços, qual Sporting a marcar pénaltis. O que me leva a expor aqui duas pequenas reflexões.
Primeira: haverá alguém que mantenha o mesmo nível de capacidade cinefila, nomeadamente a lidar com os filmes ritmicamente mais difíceis, quando passa um dia inteiro a mexer em papelada, a resolver broas, a pagar contas? O cinéfilo faz o seu mundo, é certo. Mas quanto do mundo faz o cinéfilo?
A segunda: creio que só conseguirei ver o Honra de Cavalaria, que tenho gravado da RTP na box do Meo desde há algumas semanas, vinte minutos hoje, dez amanhã, meia hora no sábado. Pode um filme, por muito bom que seja, sobreviver a um contexto tão adverso?
Finalizando: num país onde a magna obra de Andrei Tarkovski continua a ser desconsiderada ou remetida para livros poerentos em obscuras bibliotecas, como pode Serra ser tão prezado? Não me confundam: Serra, do que vi, parece poder vir a ser um mestre, tal qual o russo, que aparenta ser uma influência do catalão. Mas... a lentidão não é a mesma? O cuidado obssessivo em esculpir o tempo não é igual? Não serão irmãs estas duas formas maníacas compor os planos?
Que esta dúvida final seja respondida pelos poucos leitores deste espaço, entre eles por estes dois anti-tarkovskianos convictos.
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Albert Serra,
Reflexões Cinéfilas
22 março 2009
Um mundo perfeito
A Bullet in the Head pode não ser o melhor John Woo. Mas é de certeza dos mais pessoais.
O filme começa parecendo uma reconstituição idílica de uma juventude feliz. Uma boda molhada, logo abençoada, segue-se a um exemplo de um sacrifício pessoal (uma tareia que possibilita o desenrolar da cerimónia) em prol de um amigo, que se segue a um trajecto de bicicleta onde parece existir total harmonia entre os três companheiros (um novíssimo Tony Leung, o cantor Jackie Cheung e Waise Lee, dos dois primeiros filmes da saga A Better Tomorrow). Contudo, desde logo a violência toma conta dos acontecimentos, mesclando-se com a convulsa realidade política da Ásia dos anos 60 – a acção passa-se em 1967. Nesse aspecto, note-se por exemplo a execução de um jovem bombista, em citação da célebre fotografia da execução de um prisioneiro pelo chefe de uma esquadra da polícia de Saigão, e perceberemos que é pela profusão de mortes que Woo recorda este tempo.
Desequilibrado, A Bullet in the Head tem momentos verdadeiramente sádicos – veja-se as cenas passadas num Hilton de Hanói, onde os diversos prisioneiros dos vietcong têm se matar uns aos outros para o divertimento dos carcereiros. É um filme virtuoso, é certo, com momentos de grande espectacularidade, mas que peca às vezes pela multiplicidade de eventos e locais, longe da concentração espacial que tantas maravilhas fazem pela última hora de Hard Boiled. Sobretudo, parece algo atabalhoada a montagem, da responsabilidade do próprio cineasta, demasiado veloz e confusa. Mas é um filme que encontra dois aspectos que o redimem de (estranhamente) até ser um pouco canhestro. O primeiro desses aspectos é a relação dúplice que Woo parece ter com a violência. A dada altura, esta transcende o contexto temporal de que faz parte, tornando-se símbolo de uma mal mais geral, de uma negra visão generalista da vida. Como nos filmes de Pedro Almodovar do início da década de 90, parece que o cineasta está contaminado por um pessimismo quase ontológico, que expande a ideia da impossibilidade de felicidade já presente no final de The Killer. Se em Hard Boiled há um bebé que salva o dia urinando para a perna de Chow Yun Fat, aqui o que há é fogo e uma caveira por onde passaram duas balas e três amigos mortos. Esta violência é, então, parte da época, mas muito mais profunda e muito menos erradicável, impedindo a existência de amanhãs melhores. E, contudo, paradoxalmente, nesta violência está também a hipótese de catarse que o cineasta parece encontrar. A momentos de tristeza pela mortandade sucedem-se claros momentos de retribuição, de justiça, até de vingança. Longe da estetização pura e dura de alguns dos seus filmes, Woo aqui expele a sua bílis em muitos dos planos de corpos despedaçados. Por cada bala na cabeça, sobretudo dos vilões, parece haver um demónio mais perto da derrota.
Na caveira supracitada reside o outro aspecto que salva o filme: o seu lado shakesperariano. Pode parecer que é uma ligação fácil, não só pelo simbolismo hamletiano como pelo tom apocaliptico do seu final, a lembrar peças como Titus Andronicus e King Lear. Mas pensemos no seguinte: por muito que seja duplice na sua relação com a barbárie, não há gota de ambiguidade em A Bullet in the Head. Como todo o cinema de Woo, este filme foca-se em valores simples, postos em prática por bons e por maus. Contudo, parece que, para Woo, se os bons podem ser (e são quase sempre) vítimas de um destino que não controlam, os maus acabarão, sem sombra de dúvida, por sofrerem as consequências das suas acções. Querem moral mais shakesperiana?
O filme começa parecendo uma reconstituição idílica de uma juventude feliz. Uma boda molhada, logo abençoada, segue-se a um exemplo de um sacrifício pessoal (uma tareia que possibilita o desenrolar da cerimónia) em prol de um amigo, que se segue a um trajecto de bicicleta onde parece existir total harmonia entre os três companheiros (um novíssimo Tony Leung, o cantor Jackie Cheung e Waise Lee, dos dois primeiros filmes da saga A Better Tomorrow). Contudo, desde logo a violência toma conta dos acontecimentos, mesclando-se com a convulsa realidade política da Ásia dos anos 60 – a acção passa-se em 1967. Nesse aspecto, note-se por exemplo a execução de um jovem bombista, em citação da célebre fotografia da execução de um prisioneiro pelo chefe de uma esquadra da polícia de Saigão, e perceberemos que é pela profusão de mortes que Woo recorda este tempo.
Desequilibrado, A Bullet in the Head tem momentos verdadeiramente sádicos – veja-se as cenas passadas num Hilton de Hanói, onde os diversos prisioneiros dos vietcong têm se matar uns aos outros para o divertimento dos carcereiros. É um filme virtuoso, é certo, com momentos de grande espectacularidade, mas que peca às vezes pela multiplicidade de eventos e locais, longe da concentração espacial que tantas maravilhas fazem pela última hora de Hard Boiled. Sobretudo, parece algo atabalhoada a montagem, da responsabilidade do próprio cineasta, demasiado veloz e confusa. Mas é um filme que encontra dois aspectos que o redimem de (estranhamente) até ser um pouco canhestro. O primeiro desses aspectos é a relação dúplice que Woo parece ter com a violência. A dada altura, esta transcende o contexto temporal de que faz parte, tornando-se símbolo de uma mal mais geral, de uma negra visão generalista da vida. Como nos filmes de Pedro Almodovar do início da década de 90, parece que o cineasta está contaminado por um pessimismo quase ontológico, que expande a ideia da impossibilidade de felicidade já presente no final de The Killer. Se em Hard Boiled há um bebé que salva o dia urinando para a perna de Chow Yun Fat, aqui o que há é fogo e uma caveira por onde passaram duas balas e três amigos mortos. Esta violência é, então, parte da época, mas muito mais profunda e muito menos erradicável, impedindo a existência de amanhãs melhores. E, contudo, paradoxalmente, nesta violência está também a hipótese de catarse que o cineasta parece encontrar. A momentos de tristeza pela mortandade sucedem-se claros momentos de retribuição, de justiça, até de vingança. Longe da estetização pura e dura de alguns dos seus filmes, Woo aqui expele a sua bílis em muitos dos planos de corpos despedaçados. Por cada bala na cabeça, sobretudo dos vilões, parece haver um demónio mais perto da derrota.
Na caveira supracitada reside o outro aspecto que salva o filme: o seu lado shakesperariano. Pode parecer que é uma ligação fácil, não só pelo simbolismo hamletiano como pelo tom apocaliptico do seu final, a lembrar peças como Titus Andronicus e King Lear. Mas pensemos no seguinte: por muito que seja duplice na sua relação com a barbárie, não há gota de ambiguidade em A Bullet in the Head. Como todo o cinema de Woo, este filme foca-se em valores simples, postos em prática por bons e por maus. Contudo, parece que, para Woo, se os bons podem ser (e são quase sempre) vítimas de um destino que não controlam, os maus acabarão, sem sombra de dúvida, por sofrerem as consequências das suas acções. Querem moral mais shakesperiana?
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18 março 2009
Constatar o óbvio
Dentro de meses ou, na pior das hipóteses, de um ano, quando se fizer o balanço da década, será óbvio constatar que, nesse espaço de tempo, Clint Eastwood realizou três obras-primas (Million Dollar Baby, Letters from Iwo Jima e Gran Torino), bem como uma quase obra-prima (Mystic River). Quem diria que o cineasta da década iria ser alguém que em 2000 já tinha 70 anos!
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Sumaríssimos (2)
Mais do que um filme bom, The Watchmen é um filme útil. Zack Snyder, muito considerado por alguns mas cujo talento ainda me suscita dúvidas, deve ter tido uma tarefa muito fácil: os storyboards já estavam feitos. A eles acrescentou apenas a música, quase sempre muito boa (Dylan, Cohen, Hendrix). Toca a andar, temos blockbuster. E, no entanto, nada da prodigiosa novela gráfica de Alan Moore e Dave Gibbons (que li no primeiro ano de faculdade e me marcou aquela época) sai beliscado. Pelo contrário, há muito respeito – até demais – pelo material original. Quem quiser uma versão condensada, comece por aqui. Destaque final para a prodigiosa composição de Jackie Earle Haley como Rorschack, de movimentos e voz exactamente como o imaginava.
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04 março 2009
O último mergulho
Mickey Rourke sempre foi melhor que a maioria dos seus companheiros de geração - Patrick Swayze, Rob Lowe, Ralph Machio, C. Thomas Howell, até mesmo melhor que Tom Cruise e Matt Dillon. Com algo de hipnótico e vulnerável, este belo brutamontes conseguia, por exemplo, ir muito bem no film noir revisitado de Body Heat (1981) e ser a única coisa a valer a pena no inenarrável Wild Orchid (1989), um dos piores filmes que vi. Tornou-se, depois, uma espécie de Klaus Kinski do cinema americano: más escolhas, cabotinice, estupidez. Hoje é um “broken down piece of meat”, feio e desfigurado mas com uma cara que conta mil e uma histórias sórdidas em cada ruga e cicatriz.
É dele muito do magnífico The Wrestler, filme que se poderia definir como “Cassavettes meets Dardenne meets Frank Capra on steroids”. Rourke traz tanto de si, do que dele conhecemos nos últimos 20 anos, que há uma força ímpar, uma “memória afectiva” que, adicionada ao magnetismo que sempre o caracterizou, faz com que tudo pareça verdadeiro, real, exponencialmente mais doloroso. É hábil a forma como Darren Aronofsky, no seu melhor filme até à data, joga com esta memória, começando o filme com Rourke de costas para a câmara, adiando o momento em que vemos o monstro em que se tornou o belo. Há, então, um efeito de simbiose: Rourke potencia The Wrestler e o filme alimenta-se dele; juntos, completam-se.
É dele muito do magnífico The Wrestler, filme que se poderia definir como “Cassavettes meets Dardenne meets Frank Capra on steroids”. Rourke traz tanto de si, do que dele conhecemos nos últimos 20 anos, que há uma força ímpar, uma “memória afectiva” que, adicionada ao magnetismo que sempre o caracterizou, faz com que tudo pareça verdadeiro, real, exponencialmente mais doloroso. É hábil a forma como Darren Aronofsky, no seu melhor filme até à data, joga com esta memória, começando o filme com Rourke de costas para a câmara, adiando o momento em que vemos o monstro em que se tornou o belo. Há, então, um efeito de simbiose: Rourke potencia The Wrestler e o filme alimenta-se dele; juntos, completam-se.
Mas parte significativa do mérito deste filme reside também em Aronofsky. Pondo de lado o barroco de Requiem for a Dream (2000) e The Fountain (2006), menos estilizado e com um estilo mais directo e movimentado de câmara à mão, Aronofsky filma perfeitamente esta história de uma queda. Não é só Rourke: o cenário à volta é propositadamente white trash, degradado, locais a sonhar com melhores dias sabendo que eles nunca virão. Todo o The Wrestler é um espectáculo descarnado, desde as magnificas cenas de luta, espectáculos grunhos para suburbanos pobres desenvolvidos em reles associações de bairro, ou o supermercado onde Randy “the Ram” Robinson trabalha, local ideal para os sonhos irem morrer. Aronofsky consegue, em suma, traçar brilhantemente o retrato de um meio, numa prova derradeira da maturidade encontrada.
Finalmente, dois aspectos a sublinhar:
i) noutros tempos, este seria um filme passado no pugilismo, desporto igualmente físico e de grande sacrifício pessoal, inclusivamente com uma maior tradição cinematográfica que o wrestling. A escolha deste desporto é não apenas uma questão temporal mas também relacionada com o meio pobre em que o filme é passado. Mas não se deixe de notar quão bem são mostrados os códigos do wrestling: por exemplo, no discurso final de “Ram” e veja-se o quanto, se lhe retirarmos o “pathos”, este poderia fazer parte de uma qualquer programa dos que passam na SIC Radical. Por isto, pelas cenas de luta e pelo tratamento dado às personagens, este é um filme eminentemente realista.
ii) A capacidade do argumento de, em cenas simples e concisas, mostrar as personagens e as suas motivações: a esta grande cena, junte-se o elogio do jovem wrestler Tommy Rotten (como quem diz “não te metas por onde me meti”) ou o momento em que, já no combate final, percebe que Marisa Tomei (outro excelente desempenho) se foi embora. Obra económica, então, nos meios como nos métodos.
The Wrestler é um filme tocante, dos mais comoventes que veremos este ano. O seu núcleo reside numa pergunta pertinente de resposta simples. A pergunta: o que se faz quando se perde tudo? A resposta: o mesmo que sempre se fez, até que chegue o mergulho final.
Já agora: serei o único a achar que isto, a julgar pelo que já se sabe, vai ser brutal?
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