Qual o lugar de John Huston no panteão dos grandes cineastas do período clássico? Mais difícil de definir do que parece. Ora vejamos: um grande filme a abrir (The Maltese Falcon, 1941, um dos filmes definidores do cinema noir) e outro a fechar (Dubliners, 1989, óptima adaptação de The Dead, último e magnífico conto do livro que dá título ao filme, de James Joyce). Um punhado de obras de muito bom nível, como The Treasure of Sierra Madre (1948), The Asphalt Jungle (1950) e The African Queen (1951). Sobretudo, The Misfits (1961), aparecido no momento certo para resumir o que havia sido e o que seria na década seguinte o cinema americano. De resto, mais de uma dezena de obras esquecidas, algumas adaptações de obras-primas da literatura (Moby Dick, 1956 e Under the Volcano, 1984), a desconsideração de Truffaut e o consequente anátema dos Cahiers e um nome de cuja importância ninguém duvida mas que muito raramente (jamais) se coloca ao nível dos maiores.
Key Largo (1948) foi o primeiro filme de John Huston depois do regresso da II Guerra Mundial, onde fez importantes documentários de propaganda, o último filme do par Bogart-Bacall e o último filme que Huston fez sob contrato para a Warner Brothers, antes de se tornar independente. Adaptado por Huston a meias com o (futuro) realizador Richard Brooks (Cat on a Hot Tin Roof, 1958 e In Cold Blood, 1967), a partir de uma peça de teatro de sucesso parco, trata de um homem que regressa da guerra para visitar o pai e a esposa de um companheiro de armas, apenas para ser sequestrado, juntamente com aqueles, em noite de furacão, por um mafioso (mais uma excelente composição de Edward G. Robinson, o habitual papel de gangster com a viscosidade e o excesso do costume) em busca de um regresso, misto de Al Capone e Lucky Luciano.
O filme joga-se, então, em dois parametros.
Em primeiro lugar, é um filme sobre o pós-guerra e sobre a postura dos que sobreviveram à guerra. Se Bogart (a fazer de Bogart - e há alguém que se queixe?) pretende evoluir, sentir que não lutou em vão, Robinson quer regredir e sonha com o regresso da Lei Seca para reconstruir o império que tinha antes do governo o tentar deportar. No limite, são duas personagens com muito mais em comum do que imaginam, lutando por encontrar lugar num mundo que, pelo exílio da guerra ou pelo exílio forçado, já não conhecem.
Por outro, tudo se joga, estilistica e narrativamente, na maneira de trabalhar o huis clos por modo a transformar o teatral em cinematográfico, ritmando e filmando os diálogos e a tensão em mais do que uma mera ilustração. Consegue-o, pelo jogo ocasional com os exteriores e pela colocação idiossincrática da câmara (amiúde num subtil contra-picado, qualquer coisa entre os 50 e os 65 graus de inclinação) bem como pela óptima direcção de actores (destaque para o óptimo desempenho de Claire Trevor) . Mas falha na eficácia, no aumento exponencial da tensão bem como na criação de momentos visualmente distintos, em suma, na falta de capacidade de transformar o que é visto em mais de 100 minutos que desaparecem após a visão. Dele se pode dizer, no fundo, que é como a carreira de Huston: dilui alguns momentos relevantes numa maior quantidade de momentos facilmente esquecíveis.
Para finalizar, uma curiosidade: o final de Key Largo é retirado do To Have and Have Not de Ernest Hemingway, preterido da versão cinematográfica realizada por Howard Hawks pelo próprio cineasta (Fonte: Folha da Cinemateca elaborada por Manuel Cintra Ferreira).
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