Ang Lee tem uma carreira estranha: não é normal que o melhor dos tarefeiros do actual cinema americano, o que melhor segue a tradição “pau para toda a obra” da época dourada de Hollywood, seja asiático. Nem tão pouco é normal que mesmo o mais bem sucedido dos seus filmes asiáticos, Crouching Tiger Hidden Dragon (2000), seja também ele um ersatz do cinema da Shaw Brothers ocidentalizado para espectadores não conhecedores dos filmes do estúdio. No western (Brokeback Mountain, claro, mas também Ride with the devil), no filme de super-heróis (Hulk, sobre uma pobre vítima que espanca stewards) ou no melodrama de raiz norte-americana (este extraordinário The Ice Storm), Ang Lee filma de forma personalizada, incorporando todas as figuras de estilo do cinema americano – que travellings fantásticos! – e fazendo-nos esquecer a sua proveniência cultural. Algo tanto mais estranho quanto a longa tradição de estrangeiros em Hollywood, com os germânicos à cabeça, nunca deixando de fazer cinema americano, influiu de forma decisiva na definição dessa mesma cinematografia – como teria sido Hollywood sem Ernst Lubitsch? Lee, pelo contrário, “dilui-se” no material, não deixando nunca de fazer óptimos filmes por isso.
The Ice Storm (1997) é muito provavelmente o seu melhor filme. Passado durante o feriado de Acção de Graças em 1973, em pleno desencanto do escândalo Watergate (The president really was a crook), a narrativa acompanha duas famílias de vizinhos em pleno processo de desagregação. Numa, a dos magníficos Kevin Kline e Joan Allen, o divórcio aproxima-se a passos largos com um pai adúltero e uma mãe que rouba em lojas; na outra, com Sigourney Weaver em modo hippie envelhecida, essa hipótese já nem é colocada, por mero comodismo. O escape reside no sexo (as personagens de Kline e Weaver estão envolvidos; um dos clímaxes do filme passa-se numa festa de troca de casais), álcool e outras emoções furtivas. Em cenários no futurismo típico dos anos 70, os filhos começam a seguir as pisadas dos pais, dedicando-se ao consumo de drogas e começando a experimentar com a sexualidade. Em ambos, nota-se um sintoma preocupante: aquilo que era suposto servir de escape, permitir o divertimento, expandir a consciência, já nem paliativo consegue ser. A rotina sucede-se, o vazio prolonga-se e antecipa uma tragédia que, no menos subtil dos aspectos do filme, ganha forma na tempestade que lhe dá nome.
Filme sobre a decadência moral da small town americana e sobre o desencanto gerado pela era Nixon (brilhante a cena pseudo-coital em que Christina Ricci enverga uma máscara do presidente), The Ice Storm não é apenas um filme belissimamente filmado, ultrapassando de forma metafórica o kitsch da sua época num cromatismo cinzento e monocórdio e filmado num classicismo destro e loquaz. É, sobretudo, uma enorme re-apropriação e transformação de uma tradição cinematográfica de exaltação dos valores dos pequenos núcleos proto-urbanos, que de guardiões da pureza moral se transformam nos locais onde a corrupção moral e a depressão generalizada se manifestam com mais força. O que, por sua vez, demonstra a grande virtude de Ang Lee no contexto cinematográfico actual: longe de mero artesão capaz de cumprir orçamentos e horários de rodagem, quanto mais de um qualquer case study de aculturação, Lee é um extraordinário caso de adaptação ao material que lhe é dado e tremendamente eficaz no modo como quase sempre encontra o tom certo para passar uma ideia cuja transmissão alguém nele delega. Nos tempos que correm, isso é algo de inestimável.
The Ice Storm (1997) é muito provavelmente o seu melhor filme. Passado durante o feriado de Acção de Graças em 1973, em pleno desencanto do escândalo Watergate (The president really was a crook), a narrativa acompanha duas famílias de vizinhos em pleno processo de desagregação. Numa, a dos magníficos Kevin Kline e Joan Allen, o divórcio aproxima-se a passos largos com um pai adúltero e uma mãe que rouba em lojas; na outra, com Sigourney Weaver em modo hippie envelhecida, essa hipótese já nem é colocada, por mero comodismo. O escape reside no sexo (as personagens de Kline e Weaver estão envolvidos; um dos clímaxes do filme passa-se numa festa de troca de casais), álcool e outras emoções furtivas. Em cenários no futurismo típico dos anos 70, os filhos começam a seguir as pisadas dos pais, dedicando-se ao consumo de drogas e começando a experimentar com a sexualidade. Em ambos, nota-se um sintoma preocupante: aquilo que era suposto servir de escape, permitir o divertimento, expandir a consciência, já nem paliativo consegue ser. A rotina sucede-se, o vazio prolonga-se e antecipa uma tragédia que, no menos subtil dos aspectos do filme, ganha forma na tempestade que lhe dá nome.
Filme sobre a decadência moral da small town americana e sobre o desencanto gerado pela era Nixon (brilhante a cena pseudo-coital em que Christina Ricci enverga uma máscara do presidente), The Ice Storm não é apenas um filme belissimamente filmado, ultrapassando de forma metafórica o kitsch da sua época num cromatismo cinzento e monocórdio e filmado num classicismo destro e loquaz. É, sobretudo, uma enorme re-apropriação e transformação de uma tradição cinematográfica de exaltação dos valores dos pequenos núcleos proto-urbanos, que de guardiões da pureza moral se transformam nos locais onde a corrupção moral e a depressão generalizada se manifestam com mais força. O que, por sua vez, demonstra a grande virtude de Ang Lee no contexto cinematográfico actual: longe de mero artesão capaz de cumprir orçamentos e horários de rodagem, quanto mais de um qualquer case study de aculturação, Lee é um extraordinário caso de adaptação ao material que lhe é dado e tremendamente eficaz no modo como quase sempre encontra o tom certo para passar uma ideia cuja transmissão alguém nele delega. Nos tempos que correm, isso é algo de inestimável.