Quem já experimentou o desemprego sabe que há nele uma condição insidiosa. No primeiro mês, pensamos todos que vamos descansar um pouco, fazer render o peixe, antes de atacarmos o mercado de trabalho. Quando finalmente o fazemos, percebemos que é o mercado de trabalho que nos ataca a nós. Os dias sucedem, enfadonhos mas estranhamente velozes. Do mesmo modo que, quando trabalhamos, o que fazemos define-nos em grande medida, lentamente começamos a pensar em substituir o “estou desempregado” pelo “sou desempregado”. Na altura em que a almofada do Centro de Emprego começa a ameaçar desaparecer, já aceitamos aquilo que nos oferecem. Quando damos por nós, a ideia que fazíamos das nossas capacidades e das nossas ambições alterou-se irremediavelmente.
Comparado com a experiência retratada em Raining Stones (1993) de Ken Loach, o retrato em cima é de um tempo paradisíaco. Até porque nesta periferia de Manchester, a ambição há muito que desapareceu, inclusivamente da própria textura daquela sociedade. É talvez demasiado ilustrativo o momento em que o veterano inglês põe na boca de uma personagem que olha para dois jovens a frase “só lhes resta drogas, álcool e desespero”. Mas, retratando o desemprego biscateiro que surge dos escombros do Tatcherismo, nos anos perdidos de John Major, antes da revolução globalizante de Tony Blair, é difícil não ver neste filme, o maior sucesso de Loach em muitos anos, um poderoso efeito de verdade. Não é uma questão estética; antes uma profunda ligação de Loach a uma camada social e a uma paisagem específicas, como se fosse um acto de amor mostrar as vítimas de um dos mais poderosos apartheids sociais. Por outras palavras, é como se houvesse uma ligação tão forte que o cineasta pode perfeitamente dar-se ao luxo de ser pouco imaginativo sem que o filme sofra com isso.
E Raining Stones, ainda que superlativamente filmado, num estilo quase documental e com um excelente trabalho de câmara, é do menos imaginativo que pode haver, numa tradição de cinema social quase anacrónica. Numa altura em que Mike Leigh extravasava todos os limites do realismo com Naked (1993), Loach embrenhava-se neles, filmando com segurança e conhecimento de causa. Um daqueles filmes em que a falta de imaginação é uma virtude pois, por um improvável golpe de asa, a acumulação episódica de que o filme faz método até à meia hora final em algum momento o enfraquece. Na sucessão de episódios em que Bob (maravilhoso Bruce Jones) é humilhado (desde ser despedido de uma bar, na sua primeira noite, por fazer o seu trabalho a levar com um jacto de esgoto que limpava pro bono) surgem desde momentos de humor delicioso (o roubo da relva do clube conservador local) e momentos francamente comoventes (o enorme Ricky Tomlinson, da hoje esquecida série The Royle Family, a chorar depois de aceitar dinheiro da filha), subjaz essencialmente uma ideia: a da necessidade de manutenção da dignidade humana, assente em valores como a perseverança e a solidariedade. O que colmata as limitações estéticas derivadas talvez de um entendimento demasiado curto das possibilidades e funções do realismo britânico.
Apesar de tudo, existe um fio narrativo em Raining Stones e que, na sua ambiguidade, acaba por ser a sua maior vitória. Afinal de contas, no período da vida de Bob que acompanhamos, tudo gira à volta da sua vontade de propiciar à filha uma primeira comunhão digna, com caros vestido e sapatos novos. Não abandonando nunca um ponto de vista socialista (no placard da associação de condóminos lê-se “Is there a socialist alternative in England today?”), há uma ideia do fenómeno religioso que avança do respeitoso (a personagem que fala do ópio do povo é uma mera nota de rodapé, o catolicismo de Bob permanece inalterado e nunca é julgado) ao francamente solidário. No limite, avanço dizer que o retrato do padre e da forma como, contra pelo menos as leis de César, redime Bob e lhe dá um novo começo, podendo ser entendida como calculismo da parte de um autor que muitos apelidam de simplista, é prova de uma maior complexidade do que à partida seria de esperar, quase se sentindo a simpatia do cineasta por aquele padre pragmático e lúcido. E é, ao mesmo tempo, uma singular demonstração de uma condição muito peculiar ao desemprego: a maneira como, simultaneamente, estamos completamente sozinhos e, de certo modo, algo dependentes da comunidade. Bob salva-se precisamente por essa forte ligação à comunidade. O que acontece aos que não a têm?
Raining Stones é o melhor filme que vi de Ken Loach (também, valha a verdade, não vi muitos), um objecto marcante nos anos 90 e uma demonstração superlativa de realismo social(ista), equilibrando sabiamente o pessoal e o político. E um filme que importa ver no Portugal de hoje.
Comparado com a experiência retratada em Raining Stones (1993) de Ken Loach, o retrato em cima é de um tempo paradisíaco. Até porque nesta periferia de Manchester, a ambição há muito que desapareceu, inclusivamente da própria textura daquela sociedade. É talvez demasiado ilustrativo o momento em que o veterano inglês põe na boca de uma personagem que olha para dois jovens a frase “só lhes resta drogas, álcool e desespero”. Mas, retratando o desemprego biscateiro que surge dos escombros do Tatcherismo, nos anos perdidos de John Major, antes da revolução globalizante de Tony Blair, é difícil não ver neste filme, o maior sucesso de Loach em muitos anos, um poderoso efeito de verdade. Não é uma questão estética; antes uma profunda ligação de Loach a uma camada social e a uma paisagem específicas, como se fosse um acto de amor mostrar as vítimas de um dos mais poderosos apartheids sociais. Por outras palavras, é como se houvesse uma ligação tão forte que o cineasta pode perfeitamente dar-se ao luxo de ser pouco imaginativo sem que o filme sofra com isso.
E Raining Stones, ainda que superlativamente filmado, num estilo quase documental e com um excelente trabalho de câmara, é do menos imaginativo que pode haver, numa tradição de cinema social quase anacrónica. Numa altura em que Mike Leigh extravasava todos os limites do realismo com Naked (1993), Loach embrenhava-se neles, filmando com segurança e conhecimento de causa. Um daqueles filmes em que a falta de imaginação é uma virtude pois, por um improvável golpe de asa, a acumulação episódica de que o filme faz método até à meia hora final em algum momento o enfraquece. Na sucessão de episódios em que Bob (maravilhoso Bruce Jones) é humilhado (desde ser despedido de uma bar, na sua primeira noite, por fazer o seu trabalho a levar com um jacto de esgoto que limpava pro bono) surgem desde momentos de humor delicioso (o roubo da relva do clube conservador local) e momentos francamente comoventes (o enorme Ricky Tomlinson, da hoje esquecida série The Royle Family, a chorar depois de aceitar dinheiro da filha), subjaz essencialmente uma ideia: a da necessidade de manutenção da dignidade humana, assente em valores como a perseverança e a solidariedade. O que colmata as limitações estéticas derivadas talvez de um entendimento demasiado curto das possibilidades e funções do realismo britânico.
Apesar de tudo, existe um fio narrativo em Raining Stones e que, na sua ambiguidade, acaba por ser a sua maior vitória. Afinal de contas, no período da vida de Bob que acompanhamos, tudo gira à volta da sua vontade de propiciar à filha uma primeira comunhão digna, com caros vestido e sapatos novos. Não abandonando nunca um ponto de vista socialista (no placard da associação de condóminos lê-se “Is there a socialist alternative in England today?”), há uma ideia do fenómeno religioso que avança do respeitoso (a personagem que fala do ópio do povo é uma mera nota de rodapé, o catolicismo de Bob permanece inalterado e nunca é julgado) ao francamente solidário. No limite, avanço dizer que o retrato do padre e da forma como, contra pelo menos as leis de César, redime Bob e lhe dá um novo começo, podendo ser entendida como calculismo da parte de um autor que muitos apelidam de simplista, é prova de uma maior complexidade do que à partida seria de esperar, quase se sentindo a simpatia do cineasta por aquele padre pragmático e lúcido. E é, ao mesmo tempo, uma singular demonstração de uma condição muito peculiar ao desemprego: a maneira como, simultaneamente, estamos completamente sozinhos e, de certo modo, algo dependentes da comunidade. Bob salva-se precisamente por essa forte ligação à comunidade. O que acontece aos que não a têm?
Raining Stones é o melhor filme que vi de Ken Loach (também, valha a verdade, não vi muitos), um objecto marcante nos anos 90 e uma demonstração superlativa de realismo social(ista), equilibrando sabiamente o pessoal e o político. E um filme que importa ver no Portugal de hoje.
2 comentários:
Bom texto crítico e ao mesmo tempo pessoal.
Fiquei com curiosidade em ver o filme.
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O FALCÃO MALTÊS
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