18 outubro 2010

O único dia fácil foi ontem



Num ano em que tudo parece confirmação ou desilusão, apenas três cineastas me pareceram verdadeiras surpresas: o chileno Pablo Larrain, a americana Kelly Reichardt e o filipino Brillante Mendoza (ainda não pude ver o La Teta Asustada de Claudia Llosa). Num tempo em que as guerras acontecem lá longe e as crises são espectáculos televisionados, nos seus diferentes tipos de realismos, mostram espaços em ruínas, vidas difíceis, escondem os néons e os ipods e mostram-nos existências difíceis, cenários perto do apocalíptico (já tidos como normais) e uma existência em que as crises, tanto pessoais como ontológicas, são o modo de vida, numa inversão difícil de conciliar com o mundo low cost em que o barato quer imitar o luxo. Diga o senhor A.O. Scott o que quiser, esta nova forma de realismo está a produzir rebentos em todo o mundo e não só nos EUA e parece-me ser uma clara resposta a um mundo que muitos querem ver como misto de reality shows, telemóveis topo de gama e fornicação entre famosos. A busca por algo de real e vital é inerente a qualquer forma de arte e o porto seguro em alturas de crise. Em cada um dos filmes destes cineastas, há um dedo do meio em riste ao Avatar de James Cameron.

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Para já focamo-nos no filipino, com uma pergunta que respondemos, em Portugal, com ano e meio de atraso: é Kinatay, lançado directamente em dvd pela Alambique, o murro no estômago apregoado em Cannes 2009? É-o, de uma maneira completamente diferente do que estávamos à espera. Porque nele Mendoza ensaia um sub-género de que, creio, será o único cultor (Gaspar Noé? Que é isso?): o snuff movie arty. História de um aspirante a polícia que tem um doloroso baptismo de fogo numa noite infernal nos arredores de Manilla, é um filme excessivamente gráfico, excessivamente pretensioso, excessivamente tudo. O filipino não poupa nos efeitos, nos sons esparsos, na tentativa de criar ambiência, e nem sempre se sai a contento. Simultaneamente, há demasiados pormenores literais, que tornam o filme numa experiência amiúde repugnante. Tudo isto seria problemático, não fosse essencial à própria experiência do filme, um exercício em perturbação, em pesadelo, uma espécie de escatologia noctívaga que encontra nos bas fonds uma motivação quase ontológica, como que mostrando ao espectador como sobreviver quando se tem esterco até aos cotovelos. O inocente Peping, que acompanha um grupo de polícias corruptos que, como biscate, matam e desmembram uma prostituta a mando de um qualquer gangster, vive num mundo a todas as outras horas luminoso e até se casa num início do filme que, à maneira do Saló de Pasolini, em nada prenuncia o Inferno que se segue e para o qual é lançado de supetão, sem que ninguém o espere. O que nos leva directamente ao cerne desta obra com poucos ou nenhuns simbolismos (ok, aquele plano do frango a ser cortado, no início do filme, acaba por ser referencial à posteriori): Kinatay, no modo como mostra o antes e o depois onde nada parece ir acontecer ou ter acontecido e na forma como aqueles homens, antes e depois da carnificina, falam de tudo com toda a normalidade, é um brilhante filme sobre a banalização do mal, o modo como este se entranha nas vidas daquela gente, de como já é tão natural quanto qualquer outra actividade. Podia perder 20 minutos, podia ter soluções menos pretensiosas e podia não haver tanto gore? Não. Mendoza, na sua arte, revela-se um pragmático; sem todas estas causas não haveria nenhum efeito.

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Kinatay é um diamante em bruto. Lola é um diamante laminado, um futuro dvd pronto a caucionar as estantes de muita gente que nem com luvas de pelica seria vista a tocar em Kinatay. Apaixonei-me por ele num momento simples mas suficientemente sublinhado para ser de imediato visto como essencial: a velhinha Sepa, num cenário cinzento e ventoso, tenta acender um, dois, três, seis, oito fósforos, todos de imediato apagados pela intempérie, até conseguir acender uma vela em nome do neto assassinado naquele local na noite anterior. Uma vela que o mesmo vento, provavelmente se encarregará de apagar poucos minutos depois. Numa Manilla em que a vida é um gigantesco PEC, chegando ao ponto de algumas ruas terem de ser percorridas de barco devido às monções, duas avós digladiam-se surdamente em prol dos netos, um assassino outro assassinado, num duelo de perseveranças que se saldará num honroso empate. Contido, seco, não perdendo jamais o controlo do seu frágil equilíbrio sentimental, reinventa o melodrama, sublimando-o em dois pólos inesperados. De um lado, mostrando-nos as avós perdidas num estranho labirinto jurídico, onde ninguém quer saber delas ou daquele caso e onde uma palavra da cunha certa leva mais longe do que qualquer requerimento. Do outro, é um filme muito mais “etnográfico” do que Kinatay (que se passava num não-lugar, uma mansão da morte onde as prostitutas vão para ser retalhadas), onde se consegue encontrar, a um tempo, cenários de repressão (a omnipresença da violência policial) e momentos de generosidade única (genial a sequência em que a lola enlutada percorre de barco o seu bairro e recebe os donativos dos vizinhos para a organização do funeral). Se, como um dia me disse alguém que agora não vem ao caso, o cinema é a única arte que consegue mostrar os locais do mundo (a literatura, em toda a sua infinita possibilidade, só os consegue evocar), Lola vive da respiração de uma cidade, do exacto local em que uma cultura e a necessidade de sobrevivência se encontram. Até agora, não vi melhor filme em 2010.

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No final de cada um dos filmes, há um retorno à normalidade que não pode deixar de parecer estranho. Pepping, ainda abananado, passa a ter como maior problema o furo no pneu do táxi que o leva a casa, onde o esperam a esposa e o filho recém-nascido. As duas avós vão à vida delas, cada uma para seu lado, onde as esperam outros problemas e outras tarefas. Se há algo de tão fútil como uma mensagem, tanto em Kinatay quanto em Lola, ela é de que suja-se as mãos o quanto for preciso na esperança de que o dia de amanhã seja mais fácil. O problema é que o único dia fácil foi ontem.

2 comentários:

Luís Mendonça disse...

Excelentes observações a dois filmes, de facto, muito bons.

Luís Mendonça disse...

Já agora - desculpa o segundo comentário - ponho de novo à consideração das nossas editoras o lançamento daquele que é, para mim, o filme mais belo de Mendoza: "John John Foster Child".

Está disponível em França:

http://www.amazon.fr/John-john-Eug%C3%A8ne-Domingo/dp/B001BBSEFK/ref=sr_1_1?s=dvd&ie=UTF8&qid=1287445353&sr=1-1

Mas penso que, aproveitando a onda Mendoza, seria excelente vê-lo em DVD ou numa RTP2 saneada... :P