02 fevereiro 2011

Contos das quatro estações


Para Mike Leigh, em muitos anos de carreira, parece haver uma questão subjacente a quase todos os filmes: o que é a felicidade? O que se altera, moderadamente, de filme para filme, é o modo de a perguntar. Assim, pondo de lado o ímpar Naked (1994), durante muito tempo Leigh colocou essa questão dentro do universo familiar, organizando filmes como Secrets and Lies (2002) e o menor All or Nothing (1999) em crescendo até atingirem finais catárticos, numa progressão onde a atenção à personagem era fundamental e onde o social, não estando em primeiro plano como na obra de Ken Loach, era sombra omnipresente. O anterior (e mediano) Happy Go Lucky parece ter colocado uma nova matiz nesta questão: como é que as pessoas felizes lidam com a infelicidade alheia? No filme anterior, era através da postura francamente irritante da personagem de Sally Hawkins, quase psicótica no exterior da sua alegria.

Neste novo e belíssimo Another Year, o feliz casal Tom e Gerri (sim, é isso mesmo) serve como que de pêndulo entre diversas figuras a braços com vectores da infelicidade como a solidão, a decadência corporal ou a morte de entes queridos. Filme solene e de progressão lenta, narrativamente estruturado de acordo com as estações do ano, vemos nele como este casal serve de amparo, conselheiro, catalisador ou esperança àqueles que os rodeiam, sobretudo à estouvada Mary (extraordinária Leslie Manville, mais um dos grandes desempenhos que Leigh saca dos seus actores). Longe de indiferentes ou meros espectadores, Tom (grande Jim Broadbent) e Gerri (belíssima Ruth Sheen) vêem passar à sua frente todos os males do mundo, o que contribui para uma vertente solidária, para uma total placidez e para uma certeza absoluta da sua felicidade. A sua tarefa acaba por ser a de gerir a infelicidade dos que os rodeiam, conquanto estes o mereçam, servindo quase de paliativo para a sua insatisfação.

O cinema de Mike Leigh está longe de ter, nos tempos que correm, uma qualquer inovação estética ou urgência de actualidade. Como, por exemplo, o de Woody Allen, tem a fluência do hábito e a facilidade da prática. Mas a diferença fundamental entre o britânico e o nova-iorquino é que enquanto o segundo se deixou prender na rotina, o primeiro, na harmonia dos seus objectos, nas diferentes pequenas mutações formais, na humanidade que destila nas suas personagens e nas narrativas que vai acrescentando ao seu tecido contínuo, consegue aqui mais um exemplo de vitalidade invejável. Aqui, por exemplo, é curioso que enquanto a Primavera e o Verão replicam as cores de Happy Go Lucky, mais alegres e solarengas, o Outono e o Inverno aproximam-se, cromaticamente, dos tons cinzentos e sombrios dos filmes da década. Quem sabe se, baseados nisto, poderemos ver no circulo perfeito de Another Year uma súmula da carreira do cineasta.

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