08 fevereiro 2011

O Outro que era Ela

Lentamente, Darren Aronofsky transforma-se num autor a seguir com toda a atenção no panorama cinematográfico norte-americano. Pi e Requiem para um sonho foram filmes de culto, que já anunciavam este interesse actual mas que, como um cantor de voz potente mas que ainda não a sabe controlar, se perdiam frequentemente num maneirismo decorrente do fascínio com as suas próprias potencialidades. Depois de The Fountain, que ainda não vi, o caminho da manipulação fílmica e da profusão de efeitos visuais e narrativos foi controlado e posto em segundo plano em prol de uma clara herança naturalista, visível nos abundantes momentos em que a câmara à mão persegue os movimentos dos actores bem como pelos diversos cenários realistas e mundanos. Depois de The Wrestler ter estruturado este modo de filmar, surge agora Black Swan, que o expande e amplifica.

No limite, Black Swan funciona lindamente enquanto duplo do filme anterior. Aronofsky parece estar a especializar-se nos requiens daqueles que sonham e a quem o sonho destrói a vida. Nina é uma jovem bailarina que, instada pela mãe, que abdicou do seu próprio sonho naquela profissão para a criar (possessiva e castradora Barbara Hershey, num regresso bem conseguido), almeja a perfeição nos seus movimentos em detrimento do sentimento, o que a retrai enquanto bailarina. Quando a sua disciplina férrea dá frutos e consegue o papel de Rainha Cisne em O Lago dos Cisnes, tem de pôr de lado a sua pureza e entrar no seu lado negro utilizando sobretudo os seus impulsos sexuais largamente reprimidos. O caminho seguido é então o de uma descida aos abismos que Nina desconhecia ter, enquanto cresce progressivamente o seu talento. Como o amigo diz a Gustav Aschenbach no Morte em Veneza de Visconti, “arte é corrupção”. Mas a que custo?

Black Swan é um filme muitíssimo inteligente no modo como, em termos estruturais e narrativos, utiliza a narrativa de O Lago dos Cisnes, no seu esquema d passagem da pureza à corrupção (inicialmente personificada na boa prestação de Mila Kunis, a voz de Meg de Family Guy) e como, desde o início, vai inserindo pequenas notas de perturbação que irão crescendo até se tornarem o cerne do filme (é belíssima a cena em que Nina encontra o seu duplo, numa passagem aérea nova-iorquina). Porém, é precisamente o exponenciar dessa componente de perturbação que ocupa a última meia hora, em que a obra avança irremediavelmente para um final climático e onde o excesso se instala. Não é que alguma vez perca a coerência narrativa, mas torna-se um filme menos coeso. Pecado menor, pois os ambientes reminiscentes de Polanski (tem-se falado muito de Repulsion, pela sua marcada componente sexual, mas a tensão malsã que cresce lentamente e tudo contamina lembra Rosemary’s Baby) e do Carrie de Brian DePalma (grandes paralelismos na relação entre mãe e filha), bem como o teor simultaneamente adulto, experimental e comercial do filme, tornam-no um objecto a milhas de praticamente tudo o que por aí se vê.

Duas notas finais. Uma, para a extraordinária entrega e talento de Natalie Portman, a serem merecidamente coroadas com um Óscar. Já muito acima da média em papéis pequenos em filmes como Heat, Everyone Says I Love You e Mars Attacks, perdeu os pudores (recordo-me de a ter lido dizer que nunca faria nada num filme que não fizesse na vida real, um insulto à nobre profissão de actor) e, a partir de Closer, tornou-se uma das mais interessantes actrizes do nosso tempo. Outra, porque era capaz de jurar que vi um fantasma neste filme: a actriz que faz da decana que Nina destrona é tão, mas tão parecida com a Winona Ryder…

3 comentários:

Hugo disse...

Devo dizer-te que não fiquei nada convencido. A ver o dito, só me lembrava de "planos à Lelouch", coisa que não abona muito a favor do rapaz...

Miguel Domingues disse...

"planos à Lelouch"? Isso já é crueldade...

Hugo disse...

que se vai fazer? aquela sequência em que ela vai fazer a audição com a câmara apontada à nuca só me fazia lembrar o outro...