22 maio 2011

IndieLisboa 2011 - Edição FMI (2)





(Antes de mais, um pequeno reparo: dada a falta de tempo e a estreia para breve de Essential Killing de Jerzy Skolimowski, o filme do polaco, a ser tratado, sê-lo-à aquando da sua estreia. A série sobre o IndieLisboa terminará em breve com o texto sobre Meek's Cutoff de Kelly Reichardt).




Enquanto os vejo, não gosto dos filmes de Pablo Larraín. Como poderia? Tudo é sórdido e viscoso, a um nível em que mesmo a mundaneidade dos acontecimentos se torna surreal e detestável. Tudo é, a um tempo, terrível e ridículo, sonâmbulo e hiper-real. É quando os filmes acabam que a experiência pode ser contextualizada, doseada e tornada suportável pela memória. E é nessa altura que, como afirmei aqui há alguns tempos, que o chileno, com Kelly Reichardt e Brillante Mendoza, se torna um dos nomes mais idiossincráticos e estimulantes a trabalhar no cinema contemporâneo, dos poucos nos últimos anos a terem o verdadeiro sabor a novidade.


Post mortem, exibido numa tarde sufocante do IndieLisboa, perante uma razoável assistência no (demasiado) Grande Auditório da Culturgest, faz com que encontremos o cineasta no exacto ponto em que o encontrámos no anterior Tony Manero. De novo uma história passada em Santiago do Chile, intimamente ligada com a ditadura do facínora Augusto Pinochet mas que a mescla com a história pessoal, de um homem (em ambos os filmes interpretado pelo excelente actor Alfredo de Castro), sempre um ser ridículo em busca da sua própria felicidade. Desta vez, Castro interpreta o funcionário do gabinete do médico-legista pusilânime Mário, que se apaixona pela corista decadente Nancy Puelma num cabaret pulgoso. Tem algum sucesso com ela, embora não tanto quanto pense, pois esta continua amigada de um jovem comunista a lutar plenamente pelos sonhos que a eleição de Allende trouxe. Quando explode o 11 de Setembro de 1973, Mário continua pusilanime, embora seja mergulhado de cabeça na barbárie dos que queriam salvar a civilização. Só quando a sua derrota se torna evidente se dá a revolta, na melhor cena final que vi em muito tempo, genial e longuíssimo plano-sequência fixo, com apenas uma pessoa a entrar e a sair do enquadramento.




Pablo Larrain é, indiscutivelmente, um excelente cineasta, de inegáveis recursos estilisticos utilizados para inserirem a perturbação no espectador. Os seus tons escuros, os planos de câmara fixa de duração esticada até ao limite, os travellings em túneis e a atmosfera malsã geral servem para transmitir a sua mundividência da época, um pequeno apocalipse num país periférico da América do Sul preso em jogos de poder bem maiores e para acossar quem vê os filmes, num método arriscado que, longe de procurar o belo, encontra a confrontação com o espectador. O perigo, dada a proximidade estética, temática e moral do anterior Tony Manero é mesmo a repetição, a mesma de que padece o escritor Luís Sepúlveda, narrador dotadíssimo de discurso repetitivo. Nesse aspecto, discretamente, há algo neste novo filme que pode passar despercebido mas que pode ser sintomático: o facto de a cena, insuportável, do choro entre Mário e Nancy decorrer antes da tomada do poder por Pinochet. Nesse sentido, o golpe de estado poderia ser visto não como o gerador do desconforto mas como a sua derradeira consequência. Espero que seja este o caminho por que Pablo Larrain seguirá, mostrando, mais do que os seus resultados, o que no Chile permitiu a chegada de uma ditadura brutal e que muitos ainda hoje defendem.


Gostei imenso. Mas só depois de acabar.

08 maio 2011

IndieLisboa 2011 - Edição FMI (1)


São dias complicados. Aqueles senhores a aterrar na Portela e tudo o que com eles aí vem gera cortes na cultura, nos dois sentidos: no dos produtores e no dos consumidores. Assim, in loco, verei apenas dois filmes, que não podia mesmo perder, para os quais os bilhetes já estão adquiridos: Post Mortem de Pablo Larrain e Meek’s Cutoff de Kelly Reichardt. Acontece que, actualmente, já há formas de tornear a falta de verbas para o cinema e, assim que vi a programação, fui à procura de formas “alternativas” de poder seguir o certame. Não fui particularmente bem-sucedido em quantidade, mas consegui obter dois filmes que poderei ver como se lá estivesse.

Mas será mesmo assim? Claro que não. Estamos apenas dois em casa, a Sandra passa uma pilha de roupa a ferro e lá vai olhando para a tv, desconfiada mas com crescente curiosidade; eu adormeço a dada altura, tendo de retroceder na visão do filme para apanhar o fio à meada. É, no fundo, bem diferente, mas é o que é possível neste momento. E o primeiro filme a sofrer as consequências foi Lemmy, realizado pela dupla Greg Olliver e Wes Orshoski, panegírico dedicado ao histórico líder dos Motorhead. Documentário de estrutura convencional, intercalando momentos na vida do objecto de estudo com (demasiadas) entrevistas a fãs (entre os quais os inesperadíssimos Peter Hook e Jarvis Cocker, entre outros mais previsíveis), aposta (e consegue) mostrar como e porquê aquilo que parece repetitivo para os não-fãs, aquela música de coices intermináveis e que parece sempre uma locomotiva em máxima potência, é fundamental para muito boa gente. Quanto ao próprio Lemmy, é como Dylan ou Young ou Cohen ou qualquer um dos outros mitos musicais retratados no cinema: alguém idiossincrático (vive num pequeno apartamento atafulhado onde estão centenas de discos e memorabilia nazi, tem um conhecimento enciclopédico do rock n’ rol e dos grandes conflitos bélicos do século XX e é um fã inveterado de jogos de vídeo), com um look absolutamente fascinante (o verdadeiro cowboy do Inferno, com a eterna barba rockabilly e botas feitas à medida) mas com uma postura enternecedora face ao filho (que conheceu quando tinha já seis anos e que hoje acompanha frequentemente a banda na estrada) e que, por entre cigarros em barda, Jack Daniels com coca-cola e o seu baixo distorcido, existe o melhor que pode e sabe – fantástica a sequência em que explica porque, apesar das groupies (deve ser o tipo de gajo que arranja queca só por aparecer num sítio), permanece sozinho aos sessenta e muitos – sem pedir desculpa a ninguém e com o comedimento que amiúde acompanha os sábios. Lemmy perde apenas pelo convencionalismo do formato, pela duração algo excessiva (podia perder meia-hora) e por não seguir aquilo que parece prometer no primeiro quarto de hora: ser um filme que parte de Lemmy para um retrato da sleazy e metaleira cena rock de Los Angeles, cidade onde o músico se radicou há cerca de 20 anos, em vez de, no último terço, se focar numa das mais recentes digressões mundiais dos Motorhead e ceder definitivamente à previsibilidade. Apesar de tudo, pelas suas virtudes e por ser sobre quem é, não desgostei mesmo nada.

PS - Ah, o subtítulo do filme é "49% Motherfucker, 51% Son of a Bitch". Genial!

03 maio 2011

O fim do Medeia Residence


Declaração de interesses: sou subscritor do Medeia Card e frequentador assíduo dos cinemas Medeia Monumental e Residence. Actualmente, prefiro-os aos do King, por lá se poder almoçar ou tomar um café num espaço arejado e povoado antes da sessão e ao Fonte Nova pela maior qualidade das salas. Porém, há defeitos inegáveis no espaço, quer no do Saldanha quer no da Fontes Pereira de Melo: lavabos que deixam a desejar, cadeiras desconfortáveis e, no Residence, a irritante vibração causada pelo regular passar do metro na linha amarela. Mas, apesar de tudo, foi lá que vi 80% dos filmes que visionei em sala nos últimos 5 anos. É, por isso, com algum pesar que recebi a notícia de que as quatro salas do Saldanha Residence serão encerradas na próxima 2ª Feira, 09 de Maio.

Por outro lado, não sei até que ponto posso dizer que estou surpreendido. Porque qualquer pessoa que vá a estes cinemas sabe que o ambiente neles vivido nos últimos tempos é absolutamente deprimente. Ainda no passado sábado, esperando pela sessão das 16h de The Source Code, estive dez minutos sozinho com a minha companheira no átrio antes de aparecer qualquer outro espectador. A exibição cinematográfica em Lisboa encontra-se no maior marasmo (os únicos eventos vibrantes e enérgicos são os festivais) e, quer pela difícil situação financeira do país quer, no caso dos cinemas Medeia, por escolhas de exibição discutíveis. É inacreditável que Paulo Branco se queixe (embora com razão) do domínio exagerado dos cinemas do “amigo Joaquim” na mesma semana em que a sala 4 do Monumental se encontra ocupada pelo filme Thor. Branco deixou-se, inclusivamente, ultrapassar por outras distribuidoras entretanto formadas e a lista de filmes importantes que não exibiu nos seus cinemas inclui obras como Ne Change Rien, Les Plages de Agnès, Entre les Murs, Tony Manero, Wendy and Lucy, Uncle Boonmee… e 36 Vues du Pic Saint Loup, para citar apenas os mais importantes. Nem filmes portugueses como a estreia de João Nicolau nas longas ou o último de Alberto Seixas Santos, noutros tempos coutadas de Paulo Branco, por lá passaram. Adicionalmente, com os buracos que criou nos multiplexes do Estádio de Alvalade e do Freeport de de Alcochete a juntar à exibição de blockbusters, mostram que de cada vez que o produtor e distribuidor sucumbiu ao gigantismo, a coisa não correu muito bem. Pelo contrário, se alguma coisa os “sucessos” recentes de Lola, Les Herbes Folles e Des Hommes et des Dieux mostram é que um peixe de aquário, se quiser competir com um tubarão, tem de o fazer num desporto diferente, o da qualidade, da imaginação na programação e da exclusividade. Também não ajuda o lado desconfortável das salas de Paulo Branco, sobretudo quando comparado com o novo e arejado CinemaCity Classic de Alvalade, esse sim a tentar cativar audiência com filmes exclusivos e um design moderno e confortável. Paulo Branco atirou-se de cabeça numa guerra desigual e aparenta estar a perder a toda a linha. Afinal de contas, da primeira vez que fui ao King, estava em exibição um filme de Sharunas Bartas…

Pode ser, então, que saia algo de bom deste encerramento. Que o tempo volte a ser de militância, de critério nas escolhas e de tentativas, para lá do muito útil Medeia Card, de dinamização dos espaços que permanecem. Que os erros sirvam de aprendizagem e que a cinéfilia em Lisboa toque a rebate e se reforce, com uma sala de reposição e, insisto, outra de exclusivo para o cinema oriental. E também pode ser que o Roberto se torne num bom guarda-redes…

02 maio 2011

O polícia e o cisne


O sargento Nicholas Angel sempre quis ser policia. Estudou, preparou-se, ficou ferido na linha do dever (esfaqueado na mão por um Pai Natal…) e bateu todos os recordes de detenções e condecorações. A paga que recebeu foi ser transferido de Londres para Sanford, a aldeia-modelo britânica, onde não poderá envergonhar os colegas metropolitanos com a sua competência devido à mais baixa taxa de criminalidade do país. Acontece que Angel irá descobrir que se calhar se esconde um submundo tenebroso por baixo daquela pacatez bucólica e o quão estranho é uma cidade ter tamanha taxa de acidentes...

Hot Fuzz, realizado em 2007 por Edgar Wright e escrito a meias entre o realizador e o actor principal Simon Pegg é a melhor comédia que vi em muito tempo, um belíssimo misto de sátira à ruralidade (e com momentos a lembrar a excelente série League of Gentlemen) e de homenagem à tradição norte-americana de buddy movies de acção (são citados Bad Boys II e o genial Point Break de Kathryn Bigelow). Inspirado no mito cinematográfico do super-polícia obcecado pelo trabalho, incapaz de desligar e que é posto ao lado de um parceiro inapto e usando um humor a um tempo situacional (o genial gag do cisne, com a participação de Stephen Merchant) é um cadinho de referências pop (da escolha da música ao explosivo final em modo western misto de Peckinpah e Leone) ao mesmo tempo que um thriller policial excepcionalmente destro, capaz de belíssimas sequências de acção e de incorporar, de forma séria e inteligente, todos os códigos de um género marcadamente americano num todo distintamente britânico – atente-se na escolha do "Village Green Preservation Society" dos The Kinks e a forma como o filme trata o difícil equilíbrio entre a necessidade de preservar a ruralidade e os perigos do fundamentalismo campestre…

Se Hot Fuzz é assim tão inteligente no argumento, é-o também porque a ele se equivale toda uma ideia estética, muito bem posta em prática por Edgar Wright. Os tons queimados, cheios de tons laranja, característicos dos filmes de Michael Bay ou de séries como CSI Miami são profusamente utilizados, a montagem é propositadamente rápida e cheia de inserts e há até espaços para o gore, com a genial morte do jornalista sob o peso da torre de uma igreja, tudo ancorado num modo de fazer humor visual ancorado nos raccords – lembremos quando Pegg pede “deccafeinated” e logo a seguir vemos duas personagens “decapitated”. Sobretudo, se é sempre uma comédia muito bem esgalhada, é na última meia hora que o filme se distingue de toda a concorrência, fechando todas as pontas num círculo perfeito e tornando-se menos a história do super-polícia do que a do tosco rural que tem de se separar da influência negativa do pai – genial o plano de Nick Frost a disparar para o ar em rima perfeita com o plano de Keanu Reeves em Point Break – e provar o seu próprio valor. Em suma, Hot Fuzz faz aquilo que todas as comédias americanas actuais tentam fazer e não conseguem: a dada altura, afasta-se da galhofice e faz-nos preocupar com aquelas pessoas, com aquele local e com o desenlace da história. Ainda não vi Shaun of the Dead (2004), mas na década que passou não vi comédia assim. Consultem a programação do Canal Hollywood e, se ele voltar a passar, não o percam.