29 junho 2011

Debate Cinema na RTP2 1/4

Eis a primeira das quatro partes relativas ao debate Cinema na RTP2, que vamos publicando até 5 de Julho, dia em que fechamos a nossa petição. Esta primeira parte é marcada, essencialmente, por intervenções do moderador Luís Mendonça e do meu colega peticionário, Ricardo Lisboa, o autor do blogue Breath Away, e pelas primeiras palavras proferidas pelo cineasta João Mário Grilo. A não perder.



DEBATE CINEMA NA RTP2 1/4 from Luis Mendonca on Vimeo.

Limpar a casa (1)

Numa altura em que, em mais do que um aspecto, aparece como fundamental limpar a casa e começar de novo, aqui fica a primeira parte de uma uma lista de filmes que tenho visto. A segunda parte, a publicar nos próximos dias, integrará também filmes vistos em casa.

The Adjustement Bureau de George Nolfi – Um dos piores do ano. Um blockbuster sem alma, que desbarata as enormes ideias de Philip K Dick (um escritor que, cada vez mais me convenço, é de ideias muito superiores à sua concretização) num thriller banal e mal amanhado, uma pretensa reflexão sobre o destino que não vai a lado nenhum. Resta apenas a invulgar química no ecrã entre Matt Damon e Emily Blunt, a serem futuramente emparelhados por um cineasta digno desse nome.

Winter’s Bone de Debra Granik – É um filme que pode ser visto como o salto do neo-neo-realismo (na terminologia do crítico norte-americano AOL Scott) na direcção do grande público. De narrativa menos esparsa do que Wendy and Lucy ou Shotgun Stories, é no entanto uma tocante história de superação e de sobrevivência, filmada de forma económica e ríspida, como filmaria Kaurismaki não fosse a sua ironia escarninha sempre presente. Cinzento e violento, road movie, melodrama e filme de terror num só, não poupa o espectador à dura realidade da vida dos esquecidos pela globalização e serve como mais uma demonstração da vitalidade deste cinema de guerrilha, apostado em mostrar-se como a fase menos vísivel mas mais vital do cinema americano contemporâneo.

Tournée de Mathieu Almaric – Estranhamente baseado em Paulo Branco, numa visão diametralmente oposta à que aqui temos dele, Almaric continua o seu percurso superlativo tratando a fuga em frente de um produtor de um espectáculo itinerante de burlesco, a última oportunidade de alguém que desbaratou todas as anteriores e que continua em frente por ser a única coisa que sabe fazer. Misturando a seu bel-prazer a ficção e o documentário, através dos interlúdios que focam os números das artistas que interpretam as personagens, é um filme enérgico, ciente da sua dimensão e de um realismo estilizado que contrasta com muito do que se vê por aí. Não tinha visto O Estádio de Wimbledon, mas para além de actor fiquei convencido de que temos cineasta.

Kaboom de Greg Araki – Mais um belíssimo filme de Gregg Araki. Depois do mais comercial, mais “aberto” Mysterious Skin, este Kaboom é um filme mais de acordo com as coordenadas habituais do cinema de Araki, queer, pequeno, furiosamente independente e enérgico nas suas ideias. Misterioso, encena com orçamento reduzido e criatividade em roda livre um percurso de iniciação sexual num contexto universitário que funciona como período intermédio entre a adolescência e a idade adulta, ainda por cima sem medo de focar literalmente, em registo de fábula alucinada, o carácter apocalíptico das inquietações sentimentais da pós-adolescência, adicionando ainda um saudável lado lúdico na sua intriga. Uma boa surpresa e um bom caminho para o cinema Nimas, que pode bem continuar a mostrar, por períodos de tempo limitados, este objectos mais idiossincráticos.

Les Amours Imaginaires de Xavier Dolan – É demasiada a moda, é demasiado o lado chique, é demasiado o kitsch, é de menos o talento. Esgotadíssima a fórmula La maman et la putain, restam as cores, a música em formato pastiche e os péssimos interlúdios confessionais, a tentar dar uma ideia geracional que, valha a verdade, até pode haver – é um filme “da cena”, fácil de imaginar a ter lugar entre o Bairro Alto e o Cais do Sodré – mas que não substitui a falta de cinema que aqui se vê.

The Hangover II de Todd Philips – O primeiro já de si não era genial, longe disso, mas tinha uma premissa interessante, nomeadamente a reconstituição de uma “noite branca”, o último momento de perdição antes do mais prezado ritual de entrada na idade adulta. O segundo mais não é do que uma perfeita cópia do primeiro, mudando o contexto de modo a atrair mais espectadores, aproveitando o potencial turístico da Tailândia e tentando aproveitar o lado escuro da cidade de Banguecoque para extremar a acção. Falha redondamente. São muito menores os momentos de comédia (os gags envolvendo o brilhante comediante que é Zach Galiafinakis são quase todos desaproveitados) e, de caminho, chama de novo a atenção para o pudor que está por detrás da sua premissa: se é a noite que é de perdição, porque não mostrá-la, em vez de se focar na sua reconstituição elíptica? Resposta possível: porque assim, passa-se por transgressor e faz-se dinheiro ao mesmo tempo, não chocando muita gente. Fraquíssimo.

The Tree of Life de Terrence Mallick – Não há, em 2011 nem na última década, filme mais complexo, mais discutível nos seus propósitos e significados nem filme que dure mais além da sua visão, que gere dúvidas e inquietações em quem vê. No meu caso, tenho dois problemas, interligados, com ele: por um lado, a sua tentativa de evocação demiúrgica, darwiniana, que causa alguns dos mais penosos momentos de tédio que vivi numa sala este ano; e, por outro, como já me havia acontecido em The New World, a poesia visual de Mallick é-me, pelo menos de momento, bastante indegesta. Não tenho a mais pequena dúvida de que há nele um grande filme – o da família em luta consigo mesma – mas não contem comigo para entrar nos momentos iniciais e finais, onde essa mesma poesia visual atinge o seu expoente. Quem sabe como o verei daqui a alguns anos.

Valhalla Rising de Nicolas Winding Refn– Na projecção, a primeira coisa que vemos, em garrafais letras brancas sob fundo negro, é o nome do seu cineasta. No caso, mais do que declaração autoral, é um flagrante caso de narcisismo, confirmado pela estética vazia e insuflada desta história de um guerreiro zarolho que se escapa dos pagãos e vai como mercenário dos cristão nórdicos numa peregrinação à Terra Santa que se perde e acaba no Novo Mundo. De personagens e ideias uni-dimensionais, resta uma panóplia de recursos estéticos francamente irritantes, de tintagens a composições de planos a armar ao bergmaniano, de tons cinzentões e lutas alegadamente estilizadas a uma música que dá vontade de arrancar os tímpanos pelas orelhas. Falou-se de Mallick e Herzog, mas o pior lado da estética pessoalíssima destes cineastas é que se aplica a tudo o que tente armar ao pingarelho – eu apontaria mais o narcisismo e a vacuidade do von Trier de Antichrist como influência (deve ser coisa nórdica). Por mais que se o tente polir, no fim do dia um excremento é um excremento.

04 junho 2011

Sexy mother****er!




Parece impossível, mas houve um tempo em que as pessoas, quando algo não lhes agradava e a situação chegava ao limite do impossível, pegavam em armas e saíam à rua. Bombeavam, matavam e toda uma outra série de comportamentos inaceitáveis, mas ao menos não baixavam as calças e esperavam que doesse pouco. E, muitas vezes, faziam-no por todos os motivos errados: jovens burgueses, com a barriga cheia, viam na luta armada o paliativo para as suas existências ennuiées, como o caminho mais acessível para a glória ou como catalisador sexual. Carlos, o Chacal, desde 1997 numa prisão francesa a cumprir uma sentença perpétua pelo assassinato de quatro pessoas num apartamento parisiense, foi, mais até do que Guevera, homem de convicções profundas, o paradigma deste tipo de guerrilheiro. Sex symbol, fashion icon e ladies man de excelência, só era ultrapassado nestes campos pela sua falta de renitência em matar em nome de uma luta que, a certo ponto, já nem o próprio sabia qual era. Uma daquelas pessoas que mascara sob a abnegação um narcisismo absolutamente doentio, ajudou a cristalizar a imagem do terrorista na moda (a boina, a barba e o casaco de cabedal não enganam), teve alguns atentados irreais de tão desastrosos e deixou-se amigar por alguns dos regimes mais podres da história recente, tendo sido a principal vedeta do terrorismo islâmico-chique a soldo, por exemplo, da Síria e do Iraque de Saddam Hussein. Carlos, biopic realizado, primeiro enquanto série de televisão de cinco horas e agora enquanto filme de quase três, mostra-o assim, o definitivo sexy motherfucker, naquele que é um dos melhores filmes da carreira de Olivier Assayas.

Carlos corresponde claramente a um esforço de internacionalização de Olivier Assayas. Depois de dois filmes realizados em inglês (Clean e Boarding Gate) e depois daquele que considero o seu melhor filme (L'heure d'été, magnífico), surge agora o filme, filmado on location por todos os locais que na realidade viram os acontecimentos. E apetece-me dizer que era o filme de acção por que esperava: frenético, inteligente e que faz o tempo passar a correr, sempre num permanente sobressalto. Sempre achei que o cinema de Assayas, os seus enquadramentos sempre muito juntos dos actores e os seus movimentos de câmara constantes, longe da religião cinematográfica francesa do plano fixo, poderiam dar azo a algo de mais enérgico, de mais virulento, e foi aqui que o conseguiu. De fazer corar os filmes da saga Borne com o seu virtuosismo, aplicando diferentes tons cromáticos às diferentes épocas, lembrando os tons queimados do cinema americano da década de 70 e com sequências antológicas (todo o ataque à sede da OPEP em 1975, o maior de todos os seus muitos falhanços), nem sequer se esquiva a dar uma curiosa leitura freudiana à carreira do seu objecto de estudo - repare-se em como, aquando dos primeiros sucessos, vemos Carlos nú, saído do banho, contemplando a sua pujante masculinidade e como, no fim, gordo e desterrado no Sudão como relíquia do pós-Guerra Fria, sofre de... uma infecção nos testículos! Mesmo electrizante, Carlos não deixa de sofrer dos seus defeitos, nomeadamente a falta de aprofundamento das personagens, quase todas demasiado planas, bem como a falta de aprofundamento histórico das situações, o mais das vezes mais enunciadas do que contextualizadas, provavelmente o contexto cortado da série para dar origem ao filme. Ainda assim, é tão mais sério e mais atraente que os filmes de acção que por aí andam, é tão bem interpretado (Edgar Ramirez é pura e simplesmente genial, até ver o actor-revelação de 2011) e o seu ritmo é tão estonteante que merece todas as loas que lhe dêem.

E obviamente, é um filme ideologicamente complexo. Há uns anos, Slavoj Zizek referia que um dos aspectos complicados do cinema americano era que as únicas figuras carismáticas eram os vilões e Carlos mantém e amplia esse factor. E tem sucesso, porque todos gostamos destas figuras que pegam no seu destino e forjam a espada pela qual acabarão por morrer. Pelo Chacal da realidade, dificilmente mexeria uma palha. Pelo Chacal do filme, que como Aureliano Buendía nos Cem Anos de Solidão de Gabriel García Marquez, parece ter promovido dezassete levantamentos militares e tê-los perdido todos, de bom grado levava um balázio.

02 junho 2011

IndieLisboa 2011 - Edição FMI (3)






No Oregon de 1845, terra indómita, três grupos de peregrinos separam-se da caravana, contratam um guia fanfarrão chamado Meek e tentam cortar caminho por entre as ervas, os caminhos e os relevos do terreno. Com a progressiva falta de água, as desconfianças crescem, pensa-se em enforcar Meek e continuar sozinhos. Até que a presença de um índio, potencial informador de um batalhão de guerreiros mas também o único que sabe onde se encontra água potável, vem pôr em causa ainda mais o equilibrio precário do grupo.

O resumo faz-se em poucas linhas, mas explicar o que é a experiência de Meek's Cutoff, quinto filme de Kelly Reichardt mas apenas o terceiro ao qual foi dada alguma atenção, torna-se muito mais dificil. Porque é completamente contestada a narrativa tradicional, com um princípio in media res, onde somos lentamente informados do que se está a passar, e com um final em aberto, propositadamente ambíguo, que pode parecer uma fuga à incapacidade de fechar o filme mas que, bem visto, corresponde perfeitamente às relações entre culturas diferentes, sempre a ser trabalhadas e moldadas. É também estranho o ritmo lento de um filme sempre em movimento, o olhar distanciado de Reichardt, quase sempre em planos afastados ou médios, e o seu realismo extremo e sem maquilhagem, retirando qualquer poesia ou espectáculo ao western e tornando-o muito mais próximo do que a realidade da expansão americana deve ter sido: um caminho de homens e mulheres isolados, assustados, navegando à vista num mar de terra inóspita e onde as maiores dificuldades foram suportadas em nome de um futuro, sem heroismos mas apenas com um sentido de inevitabilidade, de que não há outro caminho.

Filmado em 4:3, entalando os actores nas margens do enquadramento e criando outros sinais visuais de limitação e isolamento (a barba e o cabelo longos de Bruce Greenwood, num dos papéis da sua vida, que o tornam enigmático e pouco digno de confiança ou a touca de Michele Williams, cobrindo-lhe o rosto inteiro num simbolo perfeito da limitação das mulheres na época), tudo aponta, circularmente, para a pequenez daquela gente na imensidão do espaço cruel que os rodeia. Narradora de prosas esparsas, incompletas e que limitam tudo às suas formas mais puras, Reichardt, de novo tratando a viagem em direcção ao Oeste (também a Wendy do filme anterior ia para o Oregon para começar de novo) faz um dos filmes, mau-grado a sua dimensão propositadamente pequena, mais ambiciosos que veremos em 2011 (felizmente, mostrando estar acordada, a Alambique vai exibi-lo em sala) e um que é muito difícil pôr em palavras.










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Não foi exactamente o Indie que eu queria e a organização terá de pensar numa estratégia que não inclua exibir no último domingo filmes tão importantes num ambiente já de descompressão e de fim de certame, um festival no seu modo pós-apocalíptico (o ano passado, a última sessão foi dedicada a Visage de Tsai Ming Liang, filme decerto relevante e interessante; alguém o viu?). Além do mais, se o Grande Auditório da Culturgest dá prestigio aos filmes que exibe, pela simples formalidade do espaço, também é verdade que o festival é muito mais vibrante no São Jorge. De resto, no eremitismo que caracteriza a minha vivência actual, este ano foi um mero desvio na rotina, onde vi dois belos filmes mas que dificilmente associarei a um momento marcante ou a um ambiente eléctrico. Veremos como será a edição 2012.