26 agosto 2007

A política somos nós




Lembro-me de uma aula de Artes Plásticas e Literatura onde uma colega, pouco dotada intelectualmente, questionou o facto de haver intervenção política na obra de Mário Dionísio. Atente-se que já tinham sido lidos poemas, vistos quadros e consultados excertos de A Paleta e o Mundo. Para essa colega, ousar experimentar esteticamente numa altura em que a acefalia estalinista designava de “formalismo” tudo o que não fosse realismo social(ista) não era um acto político. Logo a seguir, a cuja remata: “É como a crítica de cinema: nunca percebi como vêem eles tanta coisa nos filmes”.

Serve a introdução para lamentar a progressiva separação fictícia entre política e o resto das esferas vivenciais. Tudo é político (mesmo e, sobretudo, o escapismo). E pouca gente tem contribuído tanto para o lembrar quanto Nanni Moretti em dois filmes sublimes: Aprile (1998) e Il Caimano (2006, Itália; 2007, Portugal).

Aprile é o filme da esperança. Berlusconi, depois de ano e meio no poder, cai da cadeira. Nanni Moretti, interessado num delirante projecto sobre um pasteleiro (!) trotskista (!!) nos anos 1950 (!!!), opta antes por filmar a campanha eleitoral de 1996. E, simultaneamente, filma as mudanças na sua vida, ligadas ao nascimento do seu filho Pietro.
Estamos, portanto, no terreno do mais estimulante género de fusão entre ficção e documentário: aquele que simula, re-encena e aproveita acontecimentos quotidianos para construir uma realidade cinematográfica. Aqui, a união entre pessoal e político dá-se pelo renascimento: a Esquerda vence as eleições pela primeira vez no pós-Guerra e Pietro nasce. Todas as incertezas profissionais do cineasta e a sua falhada intervenção política (as cartas que nunca enviou, os comícios a que não gosta de ir, as manifestações oprimidas pela chuva que não consegue filmar como queria) explodem numa oportunidade de fraternidade, de novas responsabilidades, de mais justiça.

Il Caimano é o exacto contrário. É o filme do fim de um tempo e do exorcismo por tudo o que se perdeu. O casamento retratado como feliz em ‘96 não existe dez anos depois; a feitura de filmes é mais difícil e sabe-se que Moretti não filmou durante cinco anos; e há um pouco de desencanto quando o cineasta, no pequeno mas fulcral papel que para si guardou, diz que quem quer sabe tudo o que há para saber acerca de Berlusconi. A esperança aflora apenas numa soberba dança de automóveis. E, no final, o autor reserva-se a representação do mal que denuncia, quando no filme anteriormente tratado era o primeiro contemplado com o “novo mundo”, uma mini-Era do Aquário.

Nestes dois filmes, o político e o pessoal andam de mãos dadas. Essa relação entre a esfera privada de quem não manda e a esfera pública de quem governa existe, inclusivamente na escolha da música que, colada ao tema, coloca estes dois excelentes filmes na área do mais popular, do mais kitsch, do mais rasteiro. A política, no fundo, é isso: a forma como as ideias que defendemos e as acções que imperam num dado momento influenciam a nossa vida. A política somos nós.

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