A importância da saga The Godfather e, mormente, da sua primeira parte, para a História do Cinema não passa despercebida a ninguém.
Em primeiro lugar, por ser uma apropriação de um género que se pensava adormecido – o filme de gangsters de fato e gravata, longe dos “small time crooks” de Scorsese em Mean Streets – nos anos 70. Foi com a improvável união entre tons sépia ou amarelo-torrado deliberadamente nostálgicos, passagens pela Las Vegas dos tempos áureos, um tratamento espacial imensamente clássico e um belíssimo cameo de Sterling Hayden (Johnny Guitar, The Killing, Dr. Strangelove) e a etnização do elenco, a abertura fílmica à estilização da violência (física e verbal) e uns quantos planos bastante arriscados (o contra-picado aquando do atentado a Don Vito Corleone é sublime) que se cristalizou uma nova Hollywood, onde, apesar das diversas vontades de dinamitação existente, a modernidade cinematográfica coexistia com o conhecimento e o interesse no passado do cinema norte-americano.
Em segundo lugar, porque o público da época reviu-se nas descrições feitas, nos dois primeiros tomos, de um processo de desintegração pessoal de um jovem que, à maneira de muitos, sonha ser diferente da sua família e acaba por ser igual a (ou pior que) ela. Óscares, sucesso crítico, milhões nas bilheteiras e o sedimentar de um grupo de actores vibrante, desde o explosivo Pacino ao intenso Duvall, passando pelo rebelde James Caan – o único de quem não se pode dizer que tenha uma grande carreira – e pela lindíssima mas algo excêntrica Diane Keaton, futura musa de Woody Allen.
“Processo de desintegração pessoal de um jovem que, à maneira de muitos, sonha ser diferente da sua família e acaba por ser igualzinho a ela”, escrevi atrás.
É preciso ter em conta que uma família, apesar dos traços genéticos a unirem os seus elementos, cumpre uma função social específica: potencia, nos casos em que um individuo é bem aceite, uma segurança adicional, um porto de abrigo; e serve como microcosmo de uma sociedade, com as suas ideias de fraternidade aliadas a autoridade institucional dos patriarcas, de etapas a serem queimadas e de valores nunca contestados. Não se trata de questionar os laços familiares, a sua necessidade e o seu lado prazenteiro; trata-se apenas de demonstrar porque qualquer mudança ao ideal de família nuclear é imediatamente contestadíssima pelos sectores mais reaccionários de uma comunidade. Tal mudança, levada ao extremo, questiona os fundamentos da própria comunidade e opera sobre ela. E, a um tempo, a família tem também uma influência decisiva na forma como o indivíduo se vê e se concebe perante os outros. Quando nunca se foi aceite numa comunidade, saber-se ser aceite noutra é muito complicado; quando se é aceite, é difícil saber-se sair da única união que se diz eterna.
Michael Corleone quer ser diferente. É ele próprio quem o diz a uma atónita Kay Adams (Keaton), depois de lhe contar uma das propostas irrecusáveis do pai. Mas confrontado com a possibilidade de esse microcosmo desaparecer, opta, quer por solidariedade fraternal quer por máxima lampedusiana perante as dificuldades da mudança, por ocupar o seu lugar. Todo o resto da saga é apenas a consequência da sua opção quando confrontada com o seu desejo de diversidade.
O falhanço dos seus ideais – que inclusivamente se estendem à ingénua passagem dos negócios da Família para a legitimidade, como se a vontade de poder expressa pela violência desaparecesse tão facilmente – transforma-o em alguém que, para preservar uma parte de si, perdeu as partes de humanidade, de decência e de sanidade mental. O Michael Corleone que queria, à maneira do seu pai, “proteger a sua família dos horrores do mundo” (tomo III), alienou a mulher e um dos filhos e assassinou o irmão, destruindo ou afastando os que não queriam contribuir para a manutenção da instituição familiar como ele, patriarcal, a concebia.
Tudo o que é preciso para compreender a descida aos infernos de Michael Corleone, que transpôs para o seu quotidiano a violência que viu na guerra e que, provavelmente, o fez querer afastar-se da máfia nova-iorquina, é ver aquele plano final do segundo filme. Michael Corleone com óculos de sol, paranóico, isolado, derrotado por si mesmo. Líder na sua prisão, qual Mabuse na sua Família.
O resultado é apocalíptico: ele, que queria mudar, já não existe. A sua família, que ele quis preservar, também não. Nada de surpreendente: as famílias têm uma impar capacidade de destruição.
Em primeiro lugar, por ser uma apropriação de um género que se pensava adormecido – o filme de gangsters de fato e gravata, longe dos “small time crooks” de Scorsese em Mean Streets – nos anos 70. Foi com a improvável união entre tons sépia ou amarelo-torrado deliberadamente nostálgicos, passagens pela Las Vegas dos tempos áureos, um tratamento espacial imensamente clássico e um belíssimo cameo de Sterling Hayden (Johnny Guitar, The Killing, Dr. Strangelove) e a etnização do elenco, a abertura fílmica à estilização da violência (física e verbal) e uns quantos planos bastante arriscados (o contra-picado aquando do atentado a Don Vito Corleone é sublime) que se cristalizou uma nova Hollywood, onde, apesar das diversas vontades de dinamitação existente, a modernidade cinematográfica coexistia com o conhecimento e o interesse no passado do cinema norte-americano.
Em segundo lugar, porque o público da época reviu-se nas descrições feitas, nos dois primeiros tomos, de um processo de desintegração pessoal de um jovem que, à maneira de muitos, sonha ser diferente da sua família e acaba por ser igual a (ou pior que) ela. Óscares, sucesso crítico, milhões nas bilheteiras e o sedimentar de um grupo de actores vibrante, desde o explosivo Pacino ao intenso Duvall, passando pelo rebelde James Caan – o único de quem não se pode dizer que tenha uma grande carreira – e pela lindíssima mas algo excêntrica Diane Keaton, futura musa de Woody Allen.
“Processo de desintegração pessoal de um jovem que, à maneira de muitos, sonha ser diferente da sua família e acaba por ser igualzinho a ela”, escrevi atrás.
É preciso ter em conta que uma família, apesar dos traços genéticos a unirem os seus elementos, cumpre uma função social específica: potencia, nos casos em que um individuo é bem aceite, uma segurança adicional, um porto de abrigo; e serve como microcosmo de uma sociedade, com as suas ideias de fraternidade aliadas a autoridade institucional dos patriarcas, de etapas a serem queimadas e de valores nunca contestados. Não se trata de questionar os laços familiares, a sua necessidade e o seu lado prazenteiro; trata-se apenas de demonstrar porque qualquer mudança ao ideal de família nuclear é imediatamente contestadíssima pelos sectores mais reaccionários de uma comunidade. Tal mudança, levada ao extremo, questiona os fundamentos da própria comunidade e opera sobre ela. E, a um tempo, a família tem também uma influência decisiva na forma como o indivíduo se vê e se concebe perante os outros. Quando nunca se foi aceite numa comunidade, saber-se ser aceite noutra é muito complicado; quando se é aceite, é difícil saber-se sair da única união que se diz eterna.
Michael Corleone quer ser diferente. É ele próprio quem o diz a uma atónita Kay Adams (Keaton), depois de lhe contar uma das propostas irrecusáveis do pai. Mas confrontado com a possibilidade de esse microcosmo desaparecer, opta, quer por solidariedade fraternal quer por máxima lampedusiana perante as dificuldades da mudança, por ocupar o seu lugar. Todo o resto da saga é apenas a consequência da sua opção quando confrontada com o seu desejo de diversidade.
O falhanço dos seus ideais – que inclusivamente se estendem à ingénua passagem dos negócios da Família para a legitimidade, como se a vontade de poder expressa pela violência desaparecesse tão facilmente – transforma-o em alguém que, para preservar uma parte de si, perdeu as partes de humanidade, de decência e de sanidade mental. O Michael Corleone que queria, à maneira do seu pai, “proteger a sua família dos horrores do mundo” (tomo III), alienou a mulher e um dos filhos e assassinou o irmão, destruindo ou afastando os que não queriam contribuir para a manutenção da instituição familiar como ele, patriarcal, a concebia.
Tudo o que é preciso para compreender a descida aos infernos de Michael Corleone, que transpôs para o seu quotidiano a violência que viu na guerra e que, provavelmente, o fez querer afastar-se da máfia nova-iorquina, é ver aquele plano final do segundo filme. Michael Corleone com óculos de sol, paranóico, isolado, derrotado por si mesmo. Líder na sua prisão, qual Mabuse na sua Família.
O resultado é apocalíptico: ele, que queria mudar, já não existe. A sua família, que ele quis preservar, também não. Nada de surpreendente: as famílias têm uma impar capacidade de destruição.
4 comentários:
Fantástico o teu texto. Sublinha bem o conteúdo do filme e a evolução dessa personagem tão complexa e tão genial.
Parabéns.
Texto muito bem elaborado.
fantástica análise ao arco de Michael Corleonne. O padrinho II é perfeito e terrível!
muito bom olhar, uma perspectiva interessante. O padrinho é de facto isso...
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