19 setembro 2011

Matar o pai ao bilhar



The Color of Money, sequela de The Hustler (Robert Rossen, 1961) lançada em 1986, parte tanto das dificuldades por que passava a carreira de Martin Scorsese em meados da década de 80 (King of Comedy, de 1982, tinha sido um fracasso comercial e crítico e After Hours, de 1985, também não tinha sido propriamente um sucesso) quanto da vontade do realizador de se inscrever na história de Hollywood. Scorsese sempre se viu numa tradição, sempre fez os seus filmes quer como oposição quer como complemento quer como homenagem a toda a história do cinema e, juntamente com o potencial comercial deste filme, trazido pelas vedetas Paul Newman e Tom Cruise, terá tambem nele visto uma oportunidade de relançar uma carreira a caminho da meia década de dificuldades. Assim, The Color of Money tresanda a encomenda por todos os lados e, inclusivamente, em vários momentos, parece constituir-se como um veículo para Newman, que passeia, sem esforço, a sua classe por todo o filme. É até legítimo perguntarmo-nos qual o grau de influência que terá tido o venerado actor na feitura do filme, pois saindo este do mesmo ele não se poderia realizar, dando que mais ninguém poderia fazer de “Fast” Eddie Felson.

Coincidentemente ou não, The Color of Money aparece como que prejudicado por estes factores. Bastante datado, cromomatica, imagética e musicalmente (a banda sonora de Robbie Robertson, líder dos The Band, tem escolhas manifestamente infelizes), com alguns dos tiques do cinema dos anos 80 (o que aquela gente adorava planos de carros a andar ao sol e com música em fundo), é um filme mais centrado no desenvolver do enredo do que na voracidade da filmagem, apenas a espaços existentes, nomeadamente nas diversas partidas de bilhar, que como no primeiro filme parecem bastantes verosímeis. O lado de encomenda é também por demais evidente, e ainda que seja um filme bem feito e que consegue captar a atenção com a sua narrativa, também parece claro que se trata de um objecto que não tem totalmente a devoção incondicional do seu realizador (que, a título de exemplo, também realizou nesta época o videoclip de Beat It de Michael Jackson, pela singela soma de um milhão de dólares).



Como encontramos então Fast Eddie, 25 anos depois? Depois daquela noite infernal, percurso ao mesmo tempo iniciático e final e que acaba com o protagonista banido dos salões de bilhar, vemo-lo enquanto fornecedor de bebidas alcóolicas, envelhecido, maduro e com a capacidade de leitura de todos os sinais que lhe faltava aquando do primeiro filme. Neste, vê no talento imenso da personagem de Cruise e na matreirice da sua companheira mais velha não só o emular das suas características de juventude, como a hipótese de ganhar tudo o que não ganhou no seu tempo. Com o foco presente no dinheiro, o arranjo negocial corresponde também a uma situação de Felson poder viver por interposta pessoa, não fosse o enorme problema de a personagem de Cruise já ter “matado o pai” há muito tempo. Com o progredir da narrativa, e depois de se deixar enganar por um hustler muito bem interpretado por um jovem Forest Whittaker, Felson percebe o quão afastado está do seu eu, da sua vontade de ganhar, da capacidade de superação que está no cerne de qualquer competição. O que vemos no restante filme é então o retorno de Felson em direcção a si mesmo, ao prazer do jogo e ao prazer da vitória.

Tudo isto seria muito mais recompensador e muito mais interessante se sentíssemos entusiasmo, verve e coração no filme. Não sentimos e The Color of Money é uma encomenda bem concretizada à qual falta o sentido de urgência do melhor Scorsese. Por outro lado, temos de lhe agradecer: é bem possível que tenha sido o crédito granjeado por este filme que tenha permitido ao cineasta fazer, dois anos depois, o pessoalíssimo The Last Temptation of Christ. Só por aí, já não é mau.

13 setembro 2011

Moral de Guerra



Baseado numa história verídica, retirada de uma peça publicada na revista New Yorker em 1969, Casualties of War (1989), um dos dois filmes de guerra de Brian DePalma (sendo o outro Redacted), é vincadamente um filme de tese, até anunciada em grande plano pela personagem de Michael J. Fox: a de que numa situação-limite como a guerra, é ainda mais importante do que normalmente os intervenientes regerem-se por claras regras morais. O relato feito por um soldado acabado de chegar ao Vietname de uma patrulha de rotina em que um sargento acaba por ordenar o rapto, a violação e o posterior assassinato de uma civil autóctone prende-se com a hipótese de uma moral de guerra, ainda para mais uma travada, supostamente, para defender a população local, e a forma como essa moral esbarra com a falta de força prática para a ímpor. Assim, pode-lhe assistir toda a razão, mas é o seu superior, interpretado com uma dose brutal de overacting por Sean Penn, com a força das armas, que leva a sua avante. E todas as suas atitudes, bem como do seu ajudante de campo, demonstram um contexto em que o ódio sentido pelos soldados americanos é já tão vincado que estes deixaram completamente de ver os vietnamitas como pessoas e vivem a guerra como um jogo, uma sucessão de acções com vista a prolongar as suas demonstrações de masculinidade e poder.

Lançado em 1989, depois de The Untouchables e antes do genial descalabro de The Bonfire of Vanities, Casualties of War apresenta-nos um DePalma mais contido do que habitualmente, apagando, o mais das vezes, o seu virtuosismo exibicionista em detrimento de um virtuosismo mais contido, mais focado na narrativa do que nas formas fílmicas. Existem momentos de suspense muito bem conseguidos (veja-se a sequência inicial, com a progressão de um vietcong num túnel em direcção a Michael J. Fox) e este, sendo temáticamente um filme de escopo pequeno, é tecnicamente um filme que deverá ser visto em ecrã grande para se apreender totalmente a qualidade dos enquadramentos de DePalma em scope bem como os seus travellings de aproximação e distanciação e, por último, a sua utilização criteriosa mas abundante do plano subjectivo, essencial numa história que parte do confronto de um ponto de vista pessoal com uma realidade exterior. De realçar também a sequência, abstracta, grandes planos com vozes fora de campo, do tribunal marcial, económica e eficaz. A novidade aqui é que mais do que filmar bem com qualquer principio exibicionista ou até lúdico (como faz em Raising Cain, 1992, ou em Femme Fatale, dez anos depois) fá-lo em pleno controlo e com o propósito único de dar a ver os dilemas morais que o interessaram no filme. Deste ainda para Michael J. Fox, muito mais contido do que Penn e que num desempenho subtil consegue largar a sua imagem de comediante adolescente, granjeada na mítica sitcom Family Ties.

O pior de Casualties of War acaba mesmo por ser a sua estrutura em flashback, complementada com prólogo e epílogo passados no início dos anos 70, em que a personagem de Fox encontra absolvição num pequeno diálogo com uma jovem asiática radicada nos EUA. Se o objectivo parece ser o de consubstanciar uma absolvição nacional de uma América que ultrapassou os traumas do Vietname (facto desmentido pela profusão de filmes sobre esta guerra que foram feitos na década de 80) bem como a garantia de que Fox agiu correctamente, também é verdade que a existência deste apêndices retiram tensão à narrativa, ao garantir desde o início ao espectador que a personagem principal sobreviverá às agruras da guerra. Na generalidade, um DePalma algo menor, sabendo que os seus filmes menores nunca deixam de ser interessantes.

08 setembro 2011

Carpenter vive!



Dez anos depois de The Ghosts of Mars, encontramos Carpenter exactamente no mesmo sítio onde o deixámos. Interessado em labirintos, pondo as personagens a percorrer corredores e a passar por portas, quase sempre perdidas entre as suas alucinações, filmando em tons metalizados e frios num perfeito classicismo. The Ward, como os seus outros filmes, caracteriza-se pela completa ausência de qualquer tipo de desconstrução; ao contrário de um Tarantino, eterna e genialmente perdido em desconstruções, reciclagens e regurgitações, Carpenter, no filme de monstros, no slasher, na ficção ciêntifica, na comédia de acção ou no filme de terror puro, faz os filmes não para citar ou considerar um género ou um grupo de cineastas de um ponto de vista histórico, mas para fazer um filme. Os seus filmes existem e são assim por visão autoral e por coerência pessoal, não para “fazer à maneira de”. E a ideia que dão é que seriam assim fosse qual fosse a época da sua realização. Nesse sentido, é insustentável a ideia de que Carpenter fez um filme que não parece ser seu. Em cada filme, em vez de se contruir e de inovar, Capenter, enquanto autor, é. Querer malabarismo autoral ou imagens de assinatura é trocar a personalidade pelo fogo de artifício. Carpenter nunca o faz.

Em The Ward, história de uma jovem internada num hospício de alta segurança depois de incendiar uma casa que começa a ser perseguida por uma estranha criatura que mata todas as suas companheiras de hospital, tem as suas coordenadas bem definidas. Por um lado, o filme de terror, neste caso aproveitando a herança de um filme de hospício como o Shock Corridor de Samuel Fuller. Por outro, no elenco predominantemente feminino e em cenas como a do duche, todas as personagens femininas nuas, a serem mostradas em travelling de costas pela câmara, há sempre a sombra do exploitation a espreitar ao perto. No entanto, o maior terreno é o do terror puro. Num argumento algo previsível (e com uma ou outra semelhança com o de Shutter Island de Scorsese), Carpenter burila no melhor das suas capacidades o susto, o medo e a emoção bruta e primal, utilizando como maior aliada a alucinação. Ao vermos a naturalidade com que se processa esta narrativa típica, o que sobressai é o trabalho de artesão de Carpenter nos ambientes e na potenciação dos efeitos perante o espectador, aqui amplificados pelos filtros de imagens azuis e cinzentos, relevando a frieza da instituição, e no aproveitamento da concentração espacial, propiciando uma exemplificação da claustrofobia a que as personagens estão sujeitas.

Há, efectivamente, um ou dois defeitos em The Ward: o já referido carácter estereotipado da narrativa, mormente no seu final, que parece uma saída fácil, e a música, da autoria do próprio Carpenter, pouco original e algo excessiva nos seus coros celestiais. Podemos até dizer, com propriedade, que não está no grupo das obras-primas de Carpenter, com The Assault on Precint 13, The Thing, The Fog, They Live!, Vampires, Ghosts of Mars ou o episódio Cigarrette Burns para a série Masters of Horror. Mas, por um lado, não conhecemos filmes maus a Carpenter e é uma honra ser colocado ao lado de supostos filmes menores como Starman, In the Mouth of Madness ou Children of the Damned. Mas aqui radica a inscrição de Carpenter no paradigma do cinema clássico americano: se virmos as filmografias de Hawks ou Walsh, vemos que as obras-primas são bem mais espaçadas do que pensamos e que havia filmes que apenas existiam e com toda a normalidade estavam ali para ser vistos. The Ward não pede mais do que a oportunidade de ser The Ward. Não o desmereçam.

06 setembro 2011

Ninguém disse que era fácil



Nos Estudos Culturais, dá-se o nome de “outrização” ao processo que consiste em criar uma entidade de oposição, um ser com caracteristicas específicas mais ou menos estereotipadas, para lá do seu caracter pessoal e independente enquanto ser humano, que tanto pode ser motivo de medo como foco de discriminação. É sobre este processo, de quatro ou cinco maneiras diferentes, que se debruça Venus Noire, quarto filme de Abdellatif Kechiche, actualmente em exibição nas salas portuguesas.

Contando a história de Sartjes Baartman, mulher pertencente à etnia hotentote que é trazida para a Europa do século XIX e aí utilizada, sucessivamente numa gradação que constitui a narrativa do filme, em espectaculos circenses em Londres, como atração exótica em salões parisienses, como motivo de estudo para cientistas interessados em provar a superioridade da raça branca e, finalmente, como atracção maior num bordel, é um filme que percorre os mesmos caminhos estéticos dos filmes anteriores, apenas expandindo o seu escopo. De câmara digital naturalista, acompanhando as suas personagens de muito perto e seguindo os seus movimentos em panorâmicas rápidas, passa dos subúrbios de Marselha que compunham o seu universo para se focar numa narrativa circular que percorre a Europa oitocentista com pleno engenho na criação de ambientes e no estabelecimento de cenários, bem como com precisão na reconstituição de época.

Ninguém disse que era filme fácil e a recepção no Festival de Veneza em 2010, onde foi vaiado, demonstra-o plenamente. Porém, coloca-se a questão: tinha de ser assim tão difícil? É que Venus Noire, com as suas duas horas e meia de duração, demonstra-se sempre algo exagerado no tom e na forma de expor as desventuras da sua heroína, como se, num fenónemo de catarse forçada, o espectador fosse obrigado a expiar pela sua visão do filme as desventuras da sua heroína. Semelhante factor torna o filme numa experiência cansativa e que poderia ter sido feita sem alienar o seu próprio espectador, que a páginas tantas não tem alternativa senão pensar que o filme perdura muito para lá da sua demonstração do que é o Outro.

De referir também que há, no genérico final, uma compilação de imagens do regresso dos restos mortais da “venus hotentote” à sua África do Sul natal, que redunda num posicionamento que me parece “incorrecto” por parte do cineasta: Venus Noire ganha muito mais força, nos seus melhores momentos, quando se propõe a explanar a sua ideia central do que visto, à luz destas imagens, como mera biografia da sua personagem principal. Assim, é um filme que, apesar da força do seu assunto, se acaba por auto-limitar bastante em termos de propósito.

01 setembro 2011

Argel Cidade Aberta




Encomendado, em 1966, pelo governo argelino, La Bataille d’Algiers permanece hoje como pedra de toque do cinema político europeu, especificamente, de um cinema de cariz marxista e revolucionário que entretanto desapareceu – nem Nanni Moretti, cineasta de esquerda se algum houve, pode merecer o epiteto de revolucionário. No retrato da tentativa de descolonização forçada pela Frente Nacional de Libertação (FLN) entre 1954 e 1957, mal-sucedida mas percursora da revolução que se deu em 1962, o que se observa é a crença marxista de que a História se desenrola inexorávelmente no sentido da libertação e igualdade. Na estrutura episódica do filme, progressivamente mais violento, na pontuação do filme pela música de Ennio Morricone, com motivos recorrentes a sublinharem a carnificina e nos sucessivos planos do luto feito pelas mulheres argelinas, a sensação é a de uma maré imparável de acontecimentos a redundarem na libertação, que o espectador sabia já ter acontecido quatro anos antes da saída do filme.

Quer o realizador Gillo Pontecorvo quer o argumentista Franco Solinas eram membros do Partido Comunista Italiano e, como marxistas, sabiam também que uma estética equivale a uma ética. A ideia inicial de ter Paul Newman como um jornalista francês ex-combatente na Indochina e que reporta o crescendo da luta dos argelinos pela independência foi posta de parte, bem como o argumento comissionado por membros da FLN, considerado pelo realizador como demasiado propagandístico. La Bataille d’Algiers acabou por ser algo de estranho e incomum, para os pressupostos do filme político revolucionário: uma crónica tanto da batalha dos colonizados quanto da concomitante reacção dos colonizadores, mas estirpando qualquer pathos ou qualquer agit-prop, como que dizendo que se a ética já pressupõe quer a inevitabilidade da libertação quer a reacção de colonizados, é desnecessário sublinhar emocionalmente qualquer destes factores e antes vê-los como realidades inevitáveis no rumo da História.



Assim sendo, o retrato é o do conflito em toda a sua brutalidade, potenciado pelas escolhas estéticas de Pontecorvo. Reminiscente tanto da Nouvelle Vague francesa na sua urgência e febrilidade, quanto do neo-realismo italiano na sua preferência por intérpretes não-profissionais (somente o coronel Mathieu é interpreteado por um actor profissional, Jean Martin; Saadi Yassef, lider da FLN, participa no filme como o líder El-hadi Jaffar, versão ficcionada de si próprio) e nos cenários reais, quer na Argel colonizada quer nas regiões guetizadas do Casbah, onde viviam a maior parte dos autóctones, no que se junta a câmara à mão a fotografia granulada e as técnicas como o zoom constante, da responsabilidade do director de fotografia Marcello Gatti, que lhe dão o ar documental que contribui para a sua enorme urgência e febrilidade. Adicionalmente, o desenrolar dos episódios foca as atrocidades de ambos os lados, desde os atentados indiscriminados contra civis por parte da FLN até às cenas gráficas de tortura por parte das tropas francesas, arriscando até por caminhos ambíguos – veja-se o extraordinário discurso do coronel Mathieu afirmando, a meio termo entre a amoralidade e o pragmatismo, que o cerne da questão é que os argelinos querem a independência e os franceses o domínio colonial e tudo farão para a manter, e que isso incluirá necessáriamente o uso de todos os métodos à disposição). Apesar de, ideologicamente, Pontecorvo e Solinas estarem claramente do lado dos independentistas, o olhar é equilibrado, crú, informativo, até próximo da objectividade documental, para o que muito contribui, por exemplo, a influência de Roma Cidade Aberta (Roberto Rosselini, 1945) no modo como os acontecimentos se parecem desenrolar à nossa frente. Não é, afinal, coincidência que tenha sido incluído no filme um aviso inicial de que nenhuma imagem de newsreel da época foi usada na sua feitura, porque para quem vê, poderia perfeitamente ter sido.

É certo que há aspectos problemáticos no filme: os argelinos são sempre mais humanizados que os franceses, mormente os combatentes gauleses, que aparecem sempre como linhas na imagem e sem nunca terem direito a um grande plano, um pouco como fez Eisenstein na sequência da escadaria de Odessa n’ O Couraçado Potemkin (1927) ; que La Bataille d’Algiers parte de um princípio ideológico bem firmado e que poderá desagradar, por esse motivo, a espectadores do lado oposto da barricada; e que o filme é um produto do seu tempo, retratando, por exemplo, a imposição das leis islâmicas como necessário ao estabelecimento de uma identidade argelina e não como um factor problemático, sendo anacrónico face a questões como o laicismo social ou o multiculturalismo. Porém, parece claro que na sua energia, nas técnicas empregadas e no seu lado documental e informativo de um conflito hoje considerado pouco importante, La Bataille d’ Algiers representa o apogeu do cinema político de esquerda e uma poderosa obra-prima do cinema mundial dos anos 60 do século XX.