10 agosto 2007

Duas notas sobre Dogville



Dogville e a América: Por muita estilização existente, Dogville é um exemplo de americana. O seu objectivo é, mesmo que por caminhos ínvios, traçar uma radiografia da small town norte-americana, achando que é a moral comunitária regional a que melhor mede o pulso ao país. Contudo, mais do que a parcimónia sufocante dos anos 50 que alimentava o cinema de Douglas Sirk, é a conturbada América neo-conservadora (Reagan e o clã Bush) que aqui serve de combustível. O filme de Lars von Trier peca, talvez, por ser tão ilustrativo quanto os esquemas da personagem de Paul Bettany. Mas este é um projecto moralista, que, naquilo que muitos apelidam de demagogia, cinismo ou ilusão, radiografa a transformação dos ideais americanos. Há, nos habitantes da terreola, um manifesto desfasamento entre o discurso e a prática e a ideia da barbárie como justificável se a comunidade se achar em perigo. Sobretudo, nunca os habitantes param para pensar no que fazem, e se isto se coaduna com os supostos valores pregados. Por muito que, à maneira de Kafka, o autor da obra nunca tenha viajado ao país, a visão continua a ser importante, nomeadamente pela conjunção de fascínio e ódio que demonstra face ao seu objecto de estudo. Parte da visão mundial sobre a América está aqui, demonstrando cabalmente que, como diz Homni Bhabha, a grande dificuldade actual da América é ser simultaneamente amada e odiada pelo resto do mundo. Quando assim é, falar de “anti-americanismo primário” é ilusão, demagogia e cinismo.


Dogville e Brecht: Filmado num armazém na Suécia, Dogville é a mais importante e mais conseguida utilização do dispositivo brechtiano no cinema não feita pelo próprio Brecht. O objectivo é criar um dispositivo de distanciação do espectador face ao que é mostrado, evitando a sensação de catarse aristotélica do espectador, que o dramaturgo alemão considerava fisicamente repugnante. Von Trier é especialmente destro neste método de trabalho. A Grande Depressão e a miséria a ela associadas são tratadas nos seus aspectos mais reconhecíveis (os carros da época, a pobreza monetária, a omnipresença da rádio, a predominância do trabalho físico e do vestuário humilde, etc.), e todas as diferenças temporais são tratadas através de eficientes jogos de luz, tratando o espaço do ecrã como um palco. Contudo, se é, mais do que por qualquer outra coisa, como pela transposição brechtiana que Dogville será lembrado como um objecto importante na História do Cinema, importa referir que também o sistema formal deixa perceber com mais clareza as duas principais particularidades do filme. Em primeiro lugar, este dispositivo, que pretendia fazer pensar e não apenas emocionar, é utilizado de forma manipulatória por von Trier, que pretende vergar o espectador emocionalmente. Não há, em Dogville, qualquer discussão ideológica, mas antes um nomear de opiniões pessoais dadas de forma a granjearem o mínimo de contestação possível. Em segundo lugar, a sequência final, um dos maiores e mais terríveis momentos de cinema da última década, é um momento de catarse precisamente como Brecht queria evitar. Estamos, então, perante uma apropriação de um método, que, inclusivamente, o transforma e destrói quando tal convém aos seus objectivos. A experiência formal é, então, um pouco mais previsível, porquanto utilizada maioritariamente para o tratamento do lado sacrificial da heroína – como num filme de Dreyer sem a religiosidade e com alguma classe a menos. Na mudança estilística há, então, bem mais do von Trier habitual que de mudança real – até no tratamento manipulador da política (Europa, 1994). Contudo, nos seus sentimentos, na sua filmagem e nas suas ideias, Dogville é um objecto amplamente satisfatório.

2 comentários:

Capitão Napalm disse...

Não gosto do filme, não gosto do seu dispositivo brechtiano, que me parece logo o seu primeiro e principal equívoco, pois dá azo a todos os demonstrativismos possíveis (repugnante aquela cena de Kidman a ser violada pelo Skarsgard, com o povo a passear tranquilamente na rua- há maior chapa 4 do que isto?). E quanto ao final, também eu o considero terrível, mas sob outro prisma: nunca, mas mesmo nunca, eu me lembro de odiar tanto um final de um filme: só lá faltam aquelas meninas com os cartazes que anunciam os rounds de boxe, "e agora Grace vai vingar-se solenemente". Se a intenção de Von Trier era provocar, então, sem dúvida, "Dogville" é inteiramente satisfatório.

Miguel Domingues disse...

A intenção de von Trier é sempre provocar. E creio, do que se vê nos seus filmes, que é um daqueles gajos que gosta mais de ser odiado do que de ser amado....