19 outubro 2007

Algo a ver com a morte

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História de dois amantes postos no mesmo caminho pela culpa interiorizada de um jovem aspirante a toureiro, Matador (1986 – e o seu duplo, A Lei do Desejo, 1897, de que espero falar aqui em breve) está para a obra de Pedro Almodóvar como Once Upon a Time in the West está para a de Sérgio Leone. Todas as personagens, mesmo a maioria sobrevivente, estão envolvidas até ás gónadas numa “valsa de morte”. Quinto filme do espanhol, inicia uma fase mais desencantada na obra do cineasta (apenas, no que havia feito anteriormente, Que fiz eu para merecer isto?, aflorava esta negritude) que culmina com o brutal Kika (1992) . Enorme sucesso internacional, permitiu a Almodóvar fundar a sua companhia de produção, El Deseo, responsável por todas as suas obras subsequentes e, entre outras, por La Niña Santa de Lucrécia Martel.



Não é, contudo, na referencialidade leoniana que Almodóvar se baseia para dar forma a Matador. O apoteótico final de Duel in the Sun, visto por Nacho Rodriguez (o toureiro Diego Lopez) e por Assumpta Serna (a advogada Maria), é esclarecedor: estamos em pleno terreno da fusão do melodrama, não com o western (como no filme de Vidor) mas com o policial, o thriller e a tragédia. Com um estilo já perfeitamente delineado, onde se junta o kitsch espanhol (as decorações berrantes da casa de Lopez, uma sexualidade mediterrânea à flor da pele e um cosmopolitismo artístico de que a os bastidores do desfile de moda, dominado pelo estilista interpretado pelo próprio cineasta, são exemplo caricatural), aproveita elementos destes géneros (o voyeurismo à chuva das personagens de António Banderas, misto de Rear Window e Psycho; o muito vidoriano vermelho do eclipse final, o policia incerto quanto á culpabilidade do suspeito) para compor uma atmosfera malsã, digna de um pesadelo em technicolor. Aqui, o mais popular e conceituado cineasta ibérico aproveita toda uma economia estética norte-americana (planos rápidos, ausência de tempos mortos, um assinalável número de campos-contracampos e uma habilíssima utilização do plano picado e da montagem paralela) para fundar uma estética pessoal baseada na funcionalidade dos meios e nas idiossincrasias pessoais.

E, apesar de tudo, Almodóvar não deixa aqui de acrescentar um solidíssimo tijolo ao seu edifício completamente espanhol. Retrato de uma sociedade que nunca deixou de estar em guerra consigo mesma, mostra gente contaminada por todos os tipos de violência, desde as sufocantes mães-galinha de Eva e de Angél (novíssimo António Banderas), que usam a palavra e a religião, respectivamente, como meio de violência sobre os outros, à ocasional velhacaria autoritária do inspector interpretado por Eusébio Poncela, culminado nos dois amantes que só com a morte e na morte conseguem o tão almejado clímax. Está nesta morbidez erótica toda a chave de Matador, filme sobre a eterna ligação entre o sangue e o sémen – como o provam os planos das “partes baixas” dos toureiros enquanto estes treinam os seus golpes. Afinal, trata-se de um país que tem como desporto nacional a tortura ritualizada de um ser vivo.

Parte essencial do universo almodovariano, Matador é um objecto burilado até á exaustão, sem grande esforço aparente e, como já é habitual no cineasta espanhol, orquestrado como uma boneca russa em termos de argumentos e sensações. O universo de Almodôvar é sempre construído por camadas. Aqui, corresponde nesse universo a Espanha autofágica e contente por o ser. Apenas mais tarde viria a Espanha que perdeu o medo (Em Carne Viva, 1997), e a Espanha que procura a paz consigo mesma (Tudo sobre a minha mãe, 1999 e Volver, 2006)