05 outubro 2007

As vespas

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Quando soube que João Botelho se preparava para adaptar o livro daquela senhora, pensei: “Está a abanar um ninho de vespas”.

Vespa 1. Não estamos habituados a ficcionar eventos ocorridos há pouco tempo. Aliás, a própria ficção que procura nos “eventos reais” a sua inspiração ou caução é prática rara entre nós. Vendo bem, precisámos de 11 anos para produzir um filme sobre a guerra colonial (Um Adeus Português, Botelho, 1985) e cerca de 20 para produzir um sobre Camarate, talvez o maior trauma dos nossos 33 anos de democracia (Camarate, Luís Filipe Rocha, 2001).

Vespa 2. A segunda vespa é irmã da primeira. Num país onde é difícil ter uma conversa sobre bola que não seja marcada pela estupidez, pelo álcool ou pelo preconceito puro, pensaria Botelho conseguir que o seu filme fosse avaliado pelo seu carácter estético? Corrupção podia ser sobre casos envolvendo o FC Porto há 80 anos, o Sporting há 60 ou o SL Benfica há 40 que os respectivos adeptos não o veriam pela sua qualidade intrínseca. Mesmo o ocasional cinema político adaptado do neo-realismo literário português (quase todo filiado no ou caucionado pelo PCP) não causou metade da celeuma deste filme, que ainda por cima só estreia dentro de um mês.

Vespa 3. O abandono de João Botelho do filme que realizou e co-escreveu por alegadamente ter visto a montagem adulterada pela produtora é prova de uma ingenuidade atroz. Adaptou um livro que vendeu milhares de cópias e fez correr rios de tinta; foi, como ele próprio afirma na peça da Lusa e do Sol, “contratado" pela mesma empresa que transformou um dos maiores clássicos da literatura portuguesa numa orgia num subúrbio parecido com o Seixal; e deixou que o Correio da Manhã acompanhasse a rodagem a par e passo. Num contexto destes, como poderia o cineasta pensar que o deixariam fazer uma obra assente numa “arte cinematográfica pessoal (…) incompatível com qualquer generalização”? Terá Botelho querido entrar no cinema comercial sem se submeter às suas regras?

Vespa 4. Por tudo isto e embora tenha dúvidas, Corrupção até pode vir a ser tão bom quanto o filme de Fritz Lang com que partilha o seu título português, que a poeira causada por estas guerras de alecrim e manjerona impedirá que a maioria o perceba. E, caso seja verdade que a produtora adulterou a montagem elabora por Botelho, é sinal de que temos o pior da indústria (a falta de liberdade criativa) sem termos o que esta tem de melhor (a capacidade técnica estável).

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