30 dezembro 2010

26 dezembro 2010

Livros 2010

As minhas leituras, por norma, pouco se regem pelo que sai no mercado, pois isso implicaria gandes gastos em livros novos. Assim, aproveito o que já há em casa e saldos e feiras do livro, bancas no metro e tudo o que vier à rede para poder ir mantendo sempre um stock de livros por ler. Normalmente, apenas tenho livros realmente novos a seguir ao Natal ou ao meu aniversário. Como tal, este é mais um balanço do que li em 2010 do que uma lista de melhores do ano. Comecei com a leitura voraz de mais um excelente livro de Philip Roth, Indignation, mais um daqueles sprints em que o norte-americano se tem especializado nos últimos anos. Segui para a justificadíssima "moda" 2666 de Roberto Bolaño, de longe o mais extenso livro que já li até hoje e um que terei de ler mais duas ou três vezes na vida para o (tentar) apreender em toda a sua extensão. Pelo meio, e porque estas mil paginas demoraram três meses a ler, parei para o mais leve O Nosso Homem em Havana de Graham Greene, uma divertida história de espionagem passada no último estertor da ditadura do General Batista. Após terminar o livro do argentino virei-me para os ardores nipónicos de Naomi de Januchiro Tanizaki, riquissimo relatório de como um pequeno burgês do Japão dos anos 20 é pisado como um tapete pela jovem concubina que dá nome ao livro. Em termos de releituras, virei-me para o Fiesta de Ernest Hemingway (muito bom, mas uns furos abaixo de For Whom the Bell Tolls), para a obra-prima oitocentista The Portrait of Dorian Gray e terminei Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marquez, começado originalmente quando tinha 16 anos e que se provou tão fascinante quanto parecera então. Como muitos, tive um flirt com o bestseller com a leitura dos dois primeiros volumes da trilogia Millenium, emprestados por uma prima, que me agradaram pela facilidade da escita do falecido Stig Larsson e pelo retrato de uma social democracia que, longe do paraíso que imaginava, o jornalista e escritor retratou como podre até ao âmago. No entanto, comparado com a literatura de que gosto, proporciona pouco alimento ao espírito e creio que apenas lerei o terceiro, se o fizer, para não deixar o trabalho pelo meio. A maior descoberta do ano, porém, foi de longe The Brief Wondrous Life of Oscar Wao, tremenda saga sobre as desventuras de uma familia dominicana desde a ditadura de Trujillo até à New Jersey do início da década de 90 - um obrigado à FNAC por ter posto este livro fantástico a 5 euros durante o mês de Outubro. Num movimento circular bastante literário, termino o ano com mais outro sprint de Philip Roth, The Humbling, que comecei hoje mas que amanhã ou depois já estará lido. Ainda não sei o que lerei a seguir.

23 dezembro 2010

Discos 2010

O meu top 5 do ano:

1 - The Walkmen - "Lisbon"
2 - Vampire Weeknd - "Contra"
3 - Beach House - "Teen Dream"
4 - LCD Soundsystem - "This is Happening"
5 - The National - "High Violet"

E também, por odem alfabética:

Antony and the Johnsons - "Swanlights"
Best Coast - "Crazy for You"
Kanye West - My Beautiful Dark Twisted Fantasy"
Linda Martini - "Casa Ocupada"
Owen Pallett - "Heartland"
Sufjan Stevens - The Age of Adz"
The Gaslight Anthem -"American Slang"
Twin Shadow - "Forget"
Wolf Parade - "Expo 86"

18 dezembro 2010

Indie Boy meets Indie Girl


Boy meets girl. Girl inicia uma relação com boy, mantendo sempre alguma distância mesmo quando o enamoramento parece sólido. Tudo parece bem, até que a girl dá à sola, deixando o boy numa espiral de desespero, incapaz de trabalhar, conviver com os outros ou fazer qualquer coisa senão andar macambúzio, até ao restabelecimento final, num processo que acompanhamos em hora e meia absolutamente deliciosa intitulada 500 Days of Summer.

Num sub-género, a comédia romântica, que se tornou irrelevante pela sua aposta constante em cenários previsíveis e banais, 500 Days of Summer é um autêntico choque eléctrico, um ressuscitar inesperado e uma futura fonte de citações pop-culturais, bem como um filme de soluções bem mais criativas e estimulantes do que, por exemplo, o tematicamente idêntico The Hottest State (Ethan Hawke, 2007 – do qual, apesar de tudo, gosto bastante).

Primeiro que tudo, por ser um filme para jovens adultos. Longe da sentimentalização da adolescência que o cinema e alguma tv usam na actualidade, em que o espectador vê putos que acham que nada será mais importante do que ter 16 anos, ou das confusões amorosas da meia-idade de Julia Roberts, 500 Days of Summer foca-se em pessoas que ainda têm muito para decidir mas que, ao mesmo tempo, já conseguem olhar para trás e ver algo de relevante nas suas vidas. Facto já de si original, contribui decisivamente para a escolha etária dos protagonistas (os maravilhosos Joseph Gordon-Levitt e Zooey Deschanel) mas, sobretudo, ao possibilitar o recurso a um universo indie contemporâneo, logo, tremendamente reminiscente dos anos 80. Por outras palavras, este é um filme em que as pessoas trauteiam o "There is a Light That Never Goes Out" dos The Smiths em elevadores e nos bares de karaoke optam por versões desafinadas de "Here Comes Your Man" dos Pixies. Se nada mais houvesse, a cena, logo no início, em que vemos o quadro de cortiça do jovem Tom Hansen e lá estão as capas de "Psychocandy" (1987) dos Jesus and The Mary Chain, "Unknown Pleasures" (1979) dos Joy Division ou "Strangeways Here We Come" (1987) dos The Smiths – todos discos que possuo – bastavam para me conquistar.



500 Days of Summer é, então, um filme comercial para a imensa minoria indie e, em termos formais, essa síntese corresponde a um filme acessível, cuja fotografia queimada e pastosa e a banda sonora de bom gosto (apesar dos Temper Trap) convivem com uma leveza e uma jovialidade transversais a vários públicos. Narrativamente, embora contado sempre de um ponto de vista futuro, não se refugia num qualquer flashback linear, alternando antes os dois tempos da relação (o durante e o depois), correspondendo cada momento a um dos 500 dias de que fala o título, fazendo sempre com que cada dia que se segue, cronologicamente anterior ou posterior, reforce ou contradiga o que o antecedeu. O que o realizador Marc Webb e os argumentistas Scott Neustadter e Marc H. Weber conseguiram é então um objecto híbrido, simultaneamente alternativo e popular ou, se assim quiserem, complexo e simples. Mesmo as soluções mais discutíveis, como por exemplo o uso de ecrã dividido na maravilhosa sequência da festa, são utilizadas com classe, discernimento e razão de ser.

Preenchimento de um nicho de mercado? Sim, mas a questão de ser uma eventual prostituição daquilo que tem credibilidade precisamente no seu segredo pouco me afecta. Nunca achei que aquilo de que gosto deve permanecer em segredo. Pelo contrário: assim que o vi percebi logo que, num mundo ideal, 500 Days of Summer passaria na televisão todos os domingos à tarde. E eu lá estaria, perdendo-me nesta história, tão corriqueira mas que me diz tanto.

12 dezembro 2010

Os 5 méritos de Os Mistérios de Lisboa


Dinheiro: Na luta entre aqueles que dizem que falta dinheiro ao nosso cinema e aqueles que dizem que é a falta de talento que impera, Mistérios de Lisboa funciona claramente como argumento a favor dos primeiros. Respirando saúde financeira, é possível uma reconstituição de época imaculada, uma habilidade técnica ímpar (já lá vamos) e um grupo de actores sólido e uniformemente excelente (idem). Não sei em que lugar está no hipotético ranking de filmes portugueses mais caros de sempre e a co-produção francesa ajuda e muito, mas a obra-prima de Ruiz é um exemplo cabal de muitos meios bem aproveitados. Quem sabe se não inaugurará, com a espantosa aclamação que tem tido nos mercados internacionais, uma nova fase da cinematografia nacional.

Argumento: Carlos Saboga, consagrado argumentista do cinema português (veja-se o belíssimo O Milagre Segundo Salomé, Mario Barroso, 2007), confrontado com a escolha entre os elementos realistas, melodramáticos, cómicos e de crítica de costumes da escrita camiliana, opta por uma síntese equilibrada e romanesca de um universo onde os três elementos estão tão entrelaçados quanto as personagens na sua intriga. O argumento, que se nota trabalhado à exaustão, consegue a um tempo não deixar qualquer ponta solta, fechar um círculo perfeito à volta da(s) imensa(s) intriga(s) que move(m) a narrativa e contribuir para que um filme que excede as quatro horas passe de um só fôlego a toda a rapidez. É pena, então, que Carlos Saboga se faça tão raro e que aqueles que tanto o prezam optem pelas inanidades de Tiago Rodrigues (não é, sr APV?).

Actores: Todos aproveitando ao máximo as personagens ao seu dispor e, embora talvez isto seja excessivo, quase parecendo terem a plena noção de que esta é uma obra fundamental para o futuro das suas carreiras. Maria João Bastos demonstra uma impar fotogenia nos excessos da sua Angela de Lima e Ricardo Pereira, no seu arrivista burguês de vários nomes, demonstram o talento que as telenovelas não permitem que as suas maiores figuras mostrem, adaptando-se ambos tão bem aos momentos de excesso quanto às subtilezas que as figuras também pedem; jovens como Carloto Cotta e Afonso Pimentel aguentam-se perfeitamente no embate com os mais experientes; Melvil Poupaud e Clotilde Hesme, com papéis de dimensões diferentes, passeiam classe nos seus desempenhos; mas é Adriano Luz que suplanta todos os outros, no papel do padre Dinis, camaleónica figura que percorre os mais variados espectros sociais e que acaba por servir de catalisador a todos os acontecimentos, um literal self made man. Um dos nossos maiores actores encontra aqui o desempenho por que será lembrado. Já não era sem tempo.

Técnica: Mistérios de Lisboa é um compêndio cinematográfico como apenas me lembro de ver em The Age of Innocence (Martin Scorsese, 1993): não há aqui uma técnica por empregar, um artifício fílmico por utilizar, uma figura de estilo que não encontre um momento no qual não se adeqúe. De travellings seguríssimos e de movimento fácil, de planos fixos absolutamente milimétricos, de utilização racional e nem exibicionista nem académica dos planos de gruas (coisa rara) até à muito conseguida interacção entre o primeiro plano e o fundo da imagem, o filme do chileno é um banquete para os olhos e uma obra que deve ser estudada a fundo por modo a compreender as suas intrincadas mecânicas formais.

Raoul Ruiz: Se um filme é tão bom quanto Mistérios de Lisboa, é óbvio que o trabalho do seu cineasta tem de ser meritório. Mas o que mais me surpreendeu é que Mistérios… demonstra o controlar das tendências que me afastaram do seu cinema, designadamente o surrealismo indigesto de Três Vidas e Uma Só Morte (1998), o ultra-barroquismo de Klimt (2006) e a má escolha estética da personificação do autor em O Tempo Reencontrado (1999). Neste filme, o realizador parece qualquer coisa como um “tarefeiro artístico”, alguém com um romance a adaptar num contexto específico (quiçá, terei de pesquisar, até como encomenda), que se preocupou em encontrar a melhor solução para cada frame e que, de caminho, fez um dos acontecimentos estéticos fundamentais de 2010, até muito contra a ideia de cineasta morto e enterrado que quase toda a gente fazia dele, ainda para mais com um material de difícil equilíbrio, derivado do seu carácter folhetinesco. Se mo tivessem dito há três meses, tinha-vos chamado loucos. Mistérios de Lisboa não só é, muito provavelmente, o melhor filme de 2010, é também completamente inesperado. Abençoado seja!

05 dezembro 2010

Iguaria Tex-Mex



Passam despercebidos, sem publicidade, mas Sunshine State(2002) e Lone Star (1996), dois maravilhosos filmes de John Sayles, estão correntemente em exibição no Canal Hollywood. Focando-nos no segundo, Lone Star é um belíssimo whodunnit tex-mex em estilo noir sulista politizado e de elevado toque romanesco. Confusos? Passo a explicar.

Sam Deeds (esplêndido Chris Cooper, num desempenho intenso mas discreto), xerife da povoação de Rio County, na fronteira do Texas com o México, é filho de um antigo xerife, o mítico Buddy Deeds (bom desempenho, embora curto, de Matthew McConaughey) que por sua vez ficou conhecido por retirar desse mesmo cargo e expulsar da cidade o anterior agente da lei, o sádico, corrupto e violento Charlie Wade (competentíssimo Kris Kristofferson). Tendo ganho o cargo por ser filho de quem é, o Deeds Jr encontra o corpo de Wade e, a partir desse momento, enceta uma investigação onde, mais do que tudo, deseja desmascarar o pai devido a este não o ter, na sua adolescência, deixado prosseguir o seu romance com Pilar (excelente Elizabeth Peña), no presente do filme uma professora local acusada de desvirtuar o ensino da História de modo a aumentar a influência da cultura mexicana no Texas. Tudo isto numa cidade de calor abrasador, paisagem inóspita e onde, apesar de a população ser composta maioritariamente por mexicanos e negros, é a minoria branca que retém o poder e a influência mas onde são claras as intersecções humanas e culturais.


Cuidado, o trailer é completamente enganador.

Nas suas duas horas e um quarto, filmadas, pelo cuidado dado aos diálogos e pelo brilhantismo da progressão narrativa equilibrada e cartesiana, como se de um romance se tratasse, Sayles traça um retrato multi-facetado e amplo de uma mentalidade sulista nos seus diversos matizes. Em primeiro lugar, há uma constante influência do passado, que se revela o motor de todas as acções presentes das suas personagens, num todo coral e em que cada narrativa vai reforçando as anteriores, de modo que nem há qualquer necessidade de voice over, tal a clareza da montagem e do diálogo. Em segundo lugar, Lone Star trata também das regras tácitas, dos procedimentos num dado local e num determinado tempo e da forma como, para todos os efeitos, são esses modos de agir que fazem a identidade de um local e, ao mesmo tempo, alimentam a teia de ressentimentos. Por último, e em relação com o segundo ponto, há a temática principal do filme, a noção de fronteira e a forma como todos, em certos momentos e de diferentes maneiras, as ultrapassarmos, tornando as vidas e os lugares muito menos determinados à partida do que eles aparentam ser, quer de um ponto de vista pessoal quer de um ponto de vista sociopolítico. Não sendo nunca alguém com um ponto de vista redutor sobre qualquer destas questões, o cineasta, mais do que afirmar o lugar-comum de que nada é tão simples como parece, dedica-se a provar esta tese, compondo um fresco sulista que se apoia no western mas que fala claramente do seu tempo. Na tradição do cinema liberal de que Sayles faz parte, não é descabido vê-lo também como uma resposta às visões mais extremas da imigração existentes nas fronteiras norte-americanas.

Há, então que perguntar: como é possível que um filme tão rico, tão cheio de ideias (até do ponto de vista visual, com a incorporação dos flashbacks com um simples desviar da câmara, reforçando a ideia de uma continuidade entre tempos naquele local) e com uma tão interessante reflexão cinéfila sobre o western (a última frase do filme é “Forget the Alamo”; à maneira do Liberty Valance de John Ford, quando se descobre a verdade sobre Buddy Deeds, o filho responde “Buddy is a goddamn legend – he can take it”) é ignorado e o seu cineasta alguém que, muitas vezes, para compor o orçamento, tem de aceitar trabalhos como script docter? Simples. Esteticamente, pelo seu carácter romanesco já referido e pelos seus tom e ritmo muito próprios, diferentes de praticamente tudo o que se vê no cinema americano (ou de qualquer outro lado, já agora), o que aqui temos é um filme que, longe de ser hermético (até o criticam por ser demasiado ilustrativo), existe no seu próprio universo formal, na sua própria maneira de ser, dando-se até ao luxo de fugir a sete pés do clímax que a cena final, com a sua revelação bombástica, pediria a qualquer outro cineasta. Absorvente, subtil e profundo, Lone Star é um daqueles filmes que se revê dezenas de vezes e onde se descobre sempre algo de novo e cujos segredos são tantos que parecerá sempre um outro filme. E, a um tempo, um daqueles filmes que nunca arrastará multidões, nunca granjeará reconhecimento generalizado e nunca promoverá o seu criador. Vê-lo no Canal Hollywood não muda muito, mas é uma boa forma de ajudar ao começo da mudança deste estado de coisas.

01 dezembro 2010

Re-publicação Take (3)


Pier Paolo Pasolini, por alturas da feitura do seu magnífico Saló ou Os 120 Dias de Sodoma e Gomorra (1975), afirmava: “O puritano é aquele que não se dá o prazer de ser escandalizado” (citação livre). Pensámos nisto à saída de Anticristo, depravadíssimo exercício de auto-complacência de Lars von Trier. E afiançamos desde já que não é por este motivo que consideramos o filme do dinamarquês um prodígio de abjecção e de asco, um filme que, na carreira do cineasta, apenas se compara em viscosidade e em nojeira ao ignóbil Os Idiotas.

Até ao momento, Lars von Trier tem feito a sua carreira num apreciável vazio ideológico. Tão depressa é um skinhead anti-europeu (Epidemia e Europa) como um europeu anti-americano (Dogville e Manderley); tão depressa é um beato dreyeriano (o magnífico Ondas de Paixão) quanto um rebelde niilista (Os Idiotas). E os casos em que tínhamos mais problemas com isso eram somente aqueles em que o alicerce era mais fraco e, por isso, se notava a ausência de argamassa – em Ondas de Paixão ou Dogville, belos filmes, nada disso nos importou. O que nos perturba é que neste filme parece haver falta de matéria, de uma base que sustente a estrutura. História, alegadamente, de um casal que se refugia numa cabana num bosque chamada Éden e cujo elemento feminino começa a sofrer de estranhas perturbações psico-sexuais, que pensa surgirem da natureza, é um filme que parece ter na sua misoginia infantil a sua única razão de ser. Paradoxalmente, é um filme que tem no extraordinário desempenho de Charlotte Gainsbourg o seu principal sustento, estando a actriz francesa disposta a cenas de sexo gráfico e a encenar obscenas mutilações genitais, dado que Willem Dafoe parece sempre um bocado perdido na parca personagem que lhe deram, estando lá apenas para ejacular sangue depois de ter os testículos esmagados pela esposa. Assim, é quase comovente: também o actor americano parece não perceber a metáfora dos três pedintes, porque teve de ter um duplo a fazer um plano de penetração peniana ou porque é que a câmara, em certas cenas, gera o “efeito fundo de garrafa”. Von Trier atira coisas à parede e quem leva com elas na tromba é o espectador.

Repetimos, noutros filmes não houve grandes problemas com isto, nem com sinos no céu nem com o musical da ceguinha islandesa. Mas nesses, o dinamarquês pretendia comover. Agora, no outro extremo da egomania (só Nanni Morretti parece, no cinema europeu actual, ser tão egomaníaco quanto von Trier), pretende chocar e falha miseravelmente (como havia falhado no supracitado filme de 1998). O que nos leva de novo a Pasolini: quando quiserem chocar, tenham alguma coisa para dizer. Os não-puritanos agradecem.

28 novembro 2010

Re-publicação Take (2)


Quando, na minha primeira acção como colaborador da Take, entrevistei António-Pedro Vasconcellos (APV) durante a preparação do seu novo filme, fiquei surpreendidíssimo com a pessoa que encontrei. Afável, óptimo conversador mesmo por entre testes de maquilhagem e guarda-roupa, menos amargurado do que enérgico quanto ao que quer ver mudado no cinema português e, ao mesmo tempo, mantendo sempre uma enorme frontalidade e honestidade no seu discurso. Teria ficado a falar com o cineasta um fim-de-semana inteiro e apenas parte desse fim-de-semana teria sido passado a falar do clube de que ambos somos confessos adeptos ferrenhos.

Chegada agora a estreia de A Bela e o Paparazzo, a maior dificuldade que se põe é a de conciliar o homem que escreveu o catálogo do ciclo sobre Roberto Rosselini na Gulbenkian, entrevistou Truffaut para a revista Cinéfilo e vê constantemente o inolvidável A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939) com o homem que faz filmes destes e que aparece a discutir bola com duas pessoas que não adjectivarei por medo de represálias judiciais na RTP. A tese de APV é simples: o público é o cliente do cinema e, como tal, tem sempre razão. Se a populaça não reage às Fontainhas de Pedro Costa, ao Portugal profundo de João Canijo ou à incomunicabilidade nas relações humanas de Fernando Lopes, a culpa é dos cineastas e não de quem não lhes dá oportunidade. Logo, a receita para o cinema português é uma terra queimada onde o digno e, custe a quem custar, qualitativamente muito satisfatório passado autoral seria substituído por um cinema acima de tudo comercial, como uma Hollywood à beira-mar plantada. E o resultado prático dessa teoria é um filme que dá ao público aquilo que ele quer, mesmo que o faça deitando pela janela qualquer originalidade ou interesse, quando não mesmo debitando clichés e fazendo piadas sensaboronas.

Soraia Chaves (gostava que lhe fosse dada a oportunidade de fazer um papel sem ter de estar espampanante, decerto se veria melhor o seu apreciável talento de actriz) interpreta uma vedeta de novelas que se apaixona, sem o saber, pelo paparazzo que a persegue (competente Marco d’Almeida) e que, por sua vez, vive numa Bica que só existe nas mentes do argumentista e do realizador com dois freaks saídos de uma sitcom de fraca qualidade (um dos quais um Nuno Markl a expandir para o cinema a sua persona mediática). De cores almodovarianas (e atente-se nas cenas do esgotamento de Mariana nas filmagens da telenovela, que tão bem ficariam num filme do espanhol) e com uma referência explícita a O Apartamento (Billy Wilder, 1960, vejam a cena do esparguete escoado através da raquete de ténis), é um filme frouxo, filmado de forma pouco personalizada e que, no limite, nada acrescenta ou retira, fruto de um argumento que tem sido muito prezado mas que é absolutamente indiferente. O seu maior problema, no entanto, é de índole ético-moral: num filme que pretende criticar e desmistificar a vacuidade do star-system e da produção televisiva portuguesa, a receita encontrada é trazer toda essa linguagem e toda esse mundo para um filme, aproveitando o potencial comercial dos nomes envolvidos, fazê-lo com a mesma normalização estética de uma telenovela bem como com a sua ingénua ideia de felicidade (duas pessoas descalças à noite no Rossio não encontrariam o amor, encontrariam sim alguém com uma navalha na mão e um apetite por carteiras e telemóveis alheios) bem como na sua ideia perigosa de que, de uma maneira ou outra tudo acaba sempre bem. Resumindo-o: dá-se ao público aquilo que ele quer enquanto se critica o que o público quer. E este respondeu, nem que seja pelo imenso esforço publicitário feito em torno de A Bela e o Paparazzo, desde spots radiofónicos e televisivos a uma semana inteira a ele dedicado no programa 5 para a Meia-noite, anúncios em jornais e revistas e uma ante-estreia sumptuosa no cinema S. Jorge. APV, parte integrante do Cinema Novo, a Nova Vaga portuguesa que nunca o foi, está hoje no exacto antípoda do “Eu quero que o público português se foda” do companheiro geracional João César Monteiro aos microfones da SIC. É pena.

Se quisermos, então, voltando ao primeiro parágrafo, tentar conciliar os inegáveis conhecimento e amor pelo cinema de APV com aquilo que é o produto final produzido pelo cineasta, podemos pensar na cena em que Mariana ensaia A Gaivota de Anton Tchékov. O pormenor mais importante é o casting de APV e do produtor Tino Navarro, respectivamente, como encenador e produtor da peça. O que aqui podemos ver, no limite, é a ideia, que APV por diversas vezes repete, de que é tão autor e de que os seus filmes são tanto arte quanto a obra-prima do dramaturgo russo ou quanto qualquer outro filme “de autor” português. O problema é que tal ideia esbarra na realidade dos objectos criados. De caminho, A Bela e o Paparazzo só me faz pensar que muito do que está errado no panorama mediático e artístico português passa por aqui. E, pelo facto de ter adorado falar com o realizador durante algumas horas em Junho, só me entristece escrevê-lo.

Re-publicação Take (1)

A partir de hoje, inicio aqui a republicação de alguns dos textos que escrevi enquanto colaborei activamente com a revista Take. Numa altura em que, por motivos de disponibilidade temporal, sou obrigado a abandonar a publicação, fica aqui o meu obrigado a todos aqueles que fazem parte da mesma, com um especial destaque para o director José Soares e para o editor Miguel Reis.




A obra de João Pedro Rodrigues manifesta, dez anos após a estreia nas longas com O Fantasma (2000), uma admirável coerência estética. O seu cinema é melodramático, filtra Douglas Sirk e todo o melodrama norte-americano através de Rainer Werner Fassbinder, pega em abundantes outras referências americanas e europeias e regurgita-as num todo de cinema que, em Portugal e na Europa, não se confunde com o de mais ninguém, criando simulacros dentro de simulacros, num cinema cuja realidade se alimenta e se configura a si mesma, numa estilização auto-fágica. Só que, confessamos desde já, não gostamos do cinema de João Pedro Rodrigues, no seu indomável gosto pelo escatológico, no seu embelezamento do decadente, na sua mistura complexa de gerir entre a literalidade total do kitsch e o simbolismo artístico máximo mas inconsequente.

Se O Fantasma parece, à distância, um filme insuportável no seu asco e se Odete (2005) entra amiúde pela patetice indesculpável, Morrer como um homem até se pode dizer que melhora um pouco o estado de coisas. A história de Tónia, num fascinante estádio intermédio de definição sexual (já não exactamente homem mas nunca mulher), tem amplos aspectos de relevo nas suas viagens pelos bas-fonds lisboetas, nos poucos momentos em que o seu lirismo atinge a medida certa (o fado final ou o Sempre Ausente de António Variações cantado “a capella” pela janela de um carro), na sequência da canção de Baby Dee em tons vermelhos e na comoção que Alexander David empresta à personagem principal, num desempenho justíssimo de tom.

Justeza de tom que falta a tudo o resto: às cenas na casa junto à barragem, às discussões entre o casal, às cenas no cabaret e sobretudo na incapacidade de usar a suspensão da descrença, mormente na incompreensível guerra alegadamente a ser travada em território nacional. O mais interessante de Morrer como um homem acaba por ser, então, a sua estrutura, à maneira de um musical pós-Hollywood com apenas três ou quatro números, normalmente os momentos mais conseguidos do filme. O que ainda torna mais difícil de aceitar a falta de ritmo da obra, extensível a outros filmes, estendendo a ideia a um ponto que, pela falta de concisão, o torna cansativo. Apesar de tudo, pelas vezes em que acerta, pelo talento visual (indesmentível) que João Pedro Rodrigues possui e pela diferença face ao restante panorama cinematográfico global, sentimos vontade de entrar mas ficamos à porta, a olhar para dentro. Ainda assim, mesmo não gostando, defenderemos sempre o direito de Morrer como um homem a existir.

20 novembro 2010

Sombras e Luzes



A Praça de Touros do Campo Pequeno, belíssimo edifício no exterior, é um feio e desconfortável espaço para concertos. Não há um único aspecto em que o Coliseu dos Recreios não lhe seja superior. No entanto, tem sido esse o local de eleição, nos últimos tempos, para concertos em Lisboa. Como tal, no passado dia 12 de Novembro, fez ontem uma semana, lá me dirigi para ver os Interpol, naquele que acabou por ser um excelente concerto e uma prova de vitalidade dos nova-iorquinos depois da saída do baixista Carlos Dengler.


Antes, os Surfer Blood, misto de indie rock com surf music, fizeram uma primeira parte prejudicada pela falta de qualidade de som. Banda nova, com um razoável disco de estreia, Astro Coast (2010), teve um espectáculo necessariamente curto e competente, embora, pelo meio do potencial, deixem ainda transparecer alguma inexperiência.




Relativamente aos Interpol, há duas formas de se perspectivar o seu percurso: i) o de uma banda que lançou o seu melhor material nos seus dois primeiros álbuns e a partir daí decresceu de qualidade; ii) o de uma banda que apesar da superioridade dos seus dois primeiros álbuns, continua a editar material interessante e a ser uma banda de relevo no panorama internacional. Eu afino pelo segundo diapasão e por isso troquei o bilhete de Arcade Fire por um ingresso neste concerto. Começando com “Success”, tema de abertura do novo disco, o que se viu foi um espectáculo ritmado, sem pontos baixos, de uma máquina de palco muito bem rotinada e coadjuvada por um excelente jogo de luzes. É natural que os melhores momentos do concerto tenham sido temas mais antigos como “Narc”, “Slow Hands”, “PDA” ou “Obstacle 1”, mas a conclusão mais importante a retirar desta noite foi a de que a banda tem temas para além dos mais famosos e que se aguentam perfeitamente no embate com aqueles.

Não se espere dos Interpol um espectáculo “de estádio”, digno de “animais de palco” como os discípulos Editors, pois são uma banda mais cerebral, mais atmosférica, mais comedida mesmo quando o ritmo acelera. Mas passou por aqui uma tão flagrante parte da última década e, tout court, tão boa música que foi o fim ideal para mais uma duríssima semana de trabalho.

15 novembro 2010

Mamas e bolas

No seu depoimento para o artigo do JN para o qual prestei declarações, António-Pedro Vasconcellos diz que a nossa petição lhe é "indiferente". Trata-se já disso:






Confesse lá, agora já gosta mais de nós?

11 novembro 2010

Da criação e outros demónios


O Facebook é um lugar estranho, na mesma medida em que é um excelente negócio. Porque consegue vender um produto que é exactamente o contrário do que é apregoado: propõe uma forma de aproximação enquanto produz distanciamento e alienação, escondendo exemplarmente as suas limitações. Senão, vejamos: com quantas pessoas comunicam no Facebook que não significam nada para vós? Muitas, decerto. E com quantas pessoas de que gostem e são vossas amigas no Facebook estiveram pessoalmente nos últimos seis meses? Infelizmente, decerto que poucas.

Com a notoriedade e importância que o Facebook gerou nos últimos anos, era inevitável a feitura de um filme sobre o assunto. Felizmente, The Social Network é um filme realizado por David Fincher, um dos grandes estetas do nossos, escrito por Aaron Sorkin (da magnífica série The West Wing) e com gente competentíssima a protagonizar (Jesse Eisenberg, no seu melhor papel até agora, junta-se ao irresistível cretino Justin Timberlake) e musicar (a banda sonora é o melhor trabalho de Trent Reznor desde o início da década de 90) e transforma um material digno de telefilme numa obra cinematográfica vibrante e urgente sobre as dinâmicas do poder e as suas influências nos percursos individuais.

Todos os mitos de criação precisam de um demónio, diz o argumento, e o deste filme é Mark Zuckerberg, o mais jovem bilionário de sempre e que, como decerto muitos inventores, gerou a sua criação para impressionar uma mulher. The Social Network é, no limite, a história de como o pequeno-burguês, confrontado com a cabidela dos fortes (a orgia dos privilegiados em Harvard), encontra na técnica a sua vingança, pensando e executando mais e melhor do que foi pensado e executado pelos mais ricos. No seu modo psicoticamente agressivo de relacionamento e na sua brutal frustração sexual, encontra o combustível para a sua criatividade. O problema é que este é um modo difícil, quando não impossível, de desligar e o caminho de Zuckerberg é um de progressivo isolamento e solidão. A personagem principal é, então, um precoce conhecedor de quão inóspitos são os topos das cadeias alimentares. E, de caminho, um curioso precursor do resultado final daquilo que inventou.
The Social Network é, também, magnificamente filmado por David Fincher, que cada vez mais põe de lado a sua estética publicitária, para a sintetizar com o classicismo. Assim, sobrevive a montagem rápida, a que se juntam os velozes e musicais diálogos de Aaaron Sorkin, inseridos numa curiosa acepção de filme de tribunal, que usa as audiências preliminres com modo de estruturar os flashbacks. Depois de Zodiac e do maravilhoso The Curious Case of Benjamin Button, Fincher revela-se, embora de forma discreta, como um nome fundamental do cinema do nosso tempo.

O que ganha The Social Network é, assim, a sua brilhante ironia. Afinal de contas, o que o início da maior rede social do mundo produziu, no meio da sua propalada amizade e vontade de democratização, foi meramente uma versão ancestral da luta pelo poder e do brutal ressentimento a que essa luta conduz. Na modernidade vemos, afinal, o carácter mais básico do ser humano. E não há nada de mais paradoxal do que uma invenção que não muda nada. Digo eu, que escrevo isto enquanto vou dando uma olhada ao meu Facebook.

07 novembro 2010

Hong Kong Fora de Horas


Filme muito pouco convencional, PTU (2003) é uma das grandes obras de Johnnie To e, dos filmes que dele vi, apenas The Mission (1999) e Sparrow (2008) lhe estão próximos. Retrato de uma noite infernal em Hong Kong, em que um sargento da brigada anti-crime perde infantilmente a sua arma, se vê envolvido na morte de um filho de um líder das tríades e recebe a ajuda pouco ética de um pelotão da Police Tactical Unit na busca da pistola, é mais um exemplo de uma enorme mestria de To nos terrenos do thriller e um filme que corta de maneira muito interessante com o maniqueísmo habitualmente associado ao cinema asiático.


Mais do que um filme de acção – que só explode verdadeiramente na última cena – PTU é uma sucessão de deambulações, encontros, desencontros e cruzamentos na selva urbana deserta da madrugada, que o cineasta filma com desenvoltura, com o tradicional cuidado na gestão das diferentes tensões, com belos exemplos de mise en scène em profundidade de campo e com a capacidade, muito típica de Hong Kong, de desenvolver uma narrativa inteira com personagens de pouca densidade, todas definidas em traço grosso nos primeiros 20 minutos de filme. To é um extraordinário utilizador dos meios e da indústria de Hong Kong, conseguindo a um tempo inserir os seus filmes num género perfeitamente definido (o cinema de acção baseado no binómio polícia/tríades) e transcendê-lo completamente. Neste filme, para o fazer, conta com dois aliados particulares: o seu precioso sentido de enquadramento, que coloca em cada frame um sentido de perturbação que ajuda flagrantemente ao ambiente de pesadelo que o realizador procura; e um belíssimo aproveitamento das iluminações cromáticas, desde os tons de vermelho em momentos de violência, os amarelos e dourados perante figuras ou situações de poder e o retrato da urbe numa alternância de tons de preto ou de branco berrante em piscinas de luz, um pouco à maneira do que Robert Siodmak fez em The Killers (1946). Sobretudo, mais do que uma história simples, Johnnie To filma um mundo em que, polícias ou ladrões, toda a gente luta é para safar o próprio coiro, não olhando a meios para o fazer – genial a sequência do “interrogatório” no salão de jogos -, abdicando sagazmente de tomar partido por qualquer das partes interessadas. Infelizmente, esta overdose de estilo sem heróis a que o público se possa agarrar não fez muito pela carreira do cineasta, que desde 2001 tem tido progressivamente mais dificuldade em montar os seus projectos. É o preço do brilhantismo.


Por último, destaque para a belíssima companhia de actores que vemos em quase todos os filmes de To em papéis que correspondem, sem tirar nem pôr, aos tipos que interpretam noutros filmes: o belíssimo Lam Suet, sempre alguém com o seu quê de ridículo, a autoridade natural de Simon Yam ou a obesidade de Tian-lin Yang, que faz dele um óptimo chefe de uma tríade, ajudam o espectador já iniciado a entrar nas obras subsequentes de um universo que, nas suas relações estilísticas e temáticas, se alimenta de si mesmo.

Cintra Ferreira RIP


Nunca o conheci. Cruzei-me com ele várias vezes em visionamentos, ele um dos consagrados que toda a gente conhecia, eu um puto que toda a gente olhava de lado, como que interrogando o que raio faria ali. Homem que falava alto, tinha também um visual muito próprio, onde as vestimentas discretas coincidiam com um boné dificil de ignorar e com um daqueles patuscos cordéis a prender os óculos às orelhas. Por trás de tudo isto estava um dos mais sábios críticos da nossa praça, alguém com um conhecimento absolutamente impressionante do cinema (sobretudo dos anos clássicos americanos) e que, em boa verdade, já não tinha na imprensa portuguesa um espaço que o valorizasse. É, depois de Bénard da Costa, o segundo crítico de valor que perdemos em 2 anos de uma geração que ainda fará muita falta e que dificilmente terá substitutos à altura. Felizmente, ainda guardo dele muitas folhas da Cinemateca que muito me ensinaram ao longo dos anos. Cá ficarão, a amarelecer, sabendo que, como de costume, sobreviveram ao homem que as escreveu.

31 outubro 2010

Tempestades Interiores


Ang Lee tem uma carreira estranha: não é normal que o melhor dos tarefeiros do actual cinema americano, o que melhor segue a tradição “pau para toda a obra” da época dourada de Hollywood, seja asiático. Nem tão pouco é normal que mesmo o mais bem sucedido dos seus filmes asiáticos, Crouching Tiger Hidden Dragon (2000), seja também ele um ersatz do cinema da Shaw Brothers ocidentalizado para espectadores não conhecedores dos filmes do estúdio. No western (Brokeback Mountain, claro, mas também Ride with the devil), no filme de super-heróis (Hulk, sobre uma pobre vítima que espanca stewards) ou no melodrama de raiz norte-americana (este extraordinário The Ice Storm), Ang Lee filma de forma personalizada, incorporando todas as figuras de estilo do cinema americano – que travellings fantásticos! – e fazendo-nos esquecer a sua proveniência cultural. Algo tanto mais estranho quanto a longa tradição de estrangeiros em Hollywood, com os germânicos à cabeça, nunca deixando de fazer cinema americano, influiu de forma decisiva na definição dessa mesma cinematografia – como teria sido Hollywood sem Ernst Lubitsch? Lee, pelo contrário, “dilui-se” no material, não deixando nunca de fazer óptimos filmes por isso.

The Ice Storm (1997) é muito provavelmente o seu melhor filme. Passado durante o feriado de Acção de Graças em 1973, em pleno desencanto do escândalo Watergate (The president really was a crook), a narrativa acompanha duas famílias de vizinhos em pleno processo de desagregação. Numa, a dos magníficos Kevin Kline e Joan Allen, o divórcio aproxima-se a passos largos com um pai adúltero e uma mãe que rouba em lojas; na outra, com Sigourney Weaver em modo hippie envelhecida, essa hipótese já nem é colocada, por mero comodismo. O escape reside no sexo (as personagens de Kline e Weaver estão envolvidos; um dos clímaxes do filme passa-se numa festa de troca de casais), álcool e outras emoções furtivas. Em cenários no futurismo típico dos anos 70, os filhos começam a seguir as pisadas dos pais, dedicando-se ao consumo de drogas e começando a experimentar com a sexualidade. Em ambos, nota-se um sintoma preocupante: aquilo que era suposto servir de escape, permitir o divertimento, expandir a consciência, já nem paliativo consegue ser. A rotina sucede-se, o vazio prolonga-se e antecipa uma tragédia que, no menos subtil dos aspectos do filme, ganha forma na tempestade que lhe dá nome.

Filme sobre a decadência moral da small town americana e sobre o desencanto gerado pela era Nixon (brilhante a cena pseudo-coital em que Christina Ricci enverga uma máscara do presidente), The Ice Storm não é apenas um filme belissimamente filmado, ultrapassando de forma metafórica o kitsch da sua época num cromatismo cinzento e monocórdio e filmado num classicismo destro e loquaz. É, sobretudo, uma enorme re-apropriação e transformação de uma tradição cinematográfica de exaltação dos valores dos pequenos núcleos proto-urbanos, que de guardiões da pureza moral se transformam nos locais onde a corrupção moral e a depressão generalizada se manifestam com mais força. O que, por sua vez, demonstra a grande virtude de Ang Lee no contexto cinematográfico actual: longe de mero artesão capaz de cumprir orçamentos e horários de rodagem, quanto mais de um qualquer case study de aculturação, Lee é um extraordinário caso de adaptação ao material que lhe é dado e tremendamente eficaz no modo como quase sempre encontra o tom certo para passar uma ideia cuja transmissão alguém nele delega. Nos tempos que correm, isso é algo de inestimável.

24 outubro 2010

Boston, Massachussetts


No cinema americano actual, a cidade de Boston tem representado um interessante novo filão a explorar. Começando por Good Will Hunting (1997), passando por Mystic River (2003) e The Departed (2006) até aos filmes de Ben Affleck (Gone Baby Gone, 2007, e este novo The Town), Boston aparece como uma cidade horizontal (habitações baixas, separadas por milhare de árvores frondosas), que esconde bairros pobres e habitações sociais onde os códigos de honra estão intimamente ligados à sobrevivência. Matt Daman e Ben Affleck têm sido instrumentais neste impulso, recuperando-se o segundo de uma carreira na interpretação toldada, em igual medida, por um misto de falta de talento e más escolhas.

The Town, segunda longa-metragem de Ben Affleck, centra-se na tradição das quadrilhas de assalto a bancos originárias do bairro de Charlestown e surpreende pela qualidade demonstrada pelo actor na realização, com câmara segura, capacidade de levar com segurança a narrativa de um ponto ao outro e, sobretudo, talento na definição do ambiente citadino, na criteriosa utilização da geografia da cidade e na explicitação de um código de conduta assente em valores familiares (filiais ou afectivos) baseado na lealdade. Ben Affleck filma bem, na tradição pragmática de um certo cinema de acção que podemos remeter tanto para Eastwood como, por exemplo, para um Don Siegel.

No entanto, The Town não me deixou tão satisfeito quanto gostaria. Falta ainda a Affleck a capacidade de transcender este sólido material (afinal de contas uma típica história de heist movie sobre um assaltante que conhece uma mulher e por ela quer mudar de vida) em algo de superior, em mais do que um filme que se vê bem mas que muito dificilmente perdura na mente do espectador. Que se inspire, por exemplo, no trajecto de Eastwood (que de actor de recursos limitados palmilhou até se tornar num dos grandes cineastas do seu tempo), que aproveite as portas que a fama lhe abre (o elenco de luxo contas com as participações do magnífico Jon Hamm e da belíssima Rebeca Hall) e pode ser que venhamos a ter cineasta.

18 outubro 2010

O único dia fácil foi ontem



Num ano em que tudo parece confirmação ou desilusão, apenas três cineastas me pareceram verdadeiras surpresas: o chileno Pablo Larrain, a americana Kelly Reichardt e o filipino Brillante Mendoza (ainda não pude ver o La Teta Asustada de Claudia Llosa). Num tempo em que as guerras acontecem lá longe e as crises são espectáculos televisionados, nos seus diferentes tipos de realismos, mostram espaços em ruínas, vidas difíceis, escondem os néons e os ipods e mostram-nos existências difíceis, cenários perto do apocalíptico (já tidos como normais) e uma existência em que as crises, tanto pessoais como ontológicas, são o modo de vida, numa inversão difícil de conciliar com o mundo low cost em que o barato quer imitar o luxo. Diga o senhor A.O. Scott o que quiser, esta nova forma de realismo está a produzir rebentos em todo o mundo e não só nos EUA e parece-me ser uma clara resposta a um mundo que muitos querem ver como misto de reality shows, telemóveis topo de gama e fornicação entre famosos. A busca por algo de real e vital é inerente a qualquer forma de arte e o porto seguro em alturas de crise. Em cada um dos filmes destes cineastas, há um dedo do meio em riste ao Avatar de James Cameron.

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Para já focamo-nos no filipino, com uma pergunta que respondemos, em Portugal, com ano e meio de atraso: é Kinatay, lançado directamente em dvd pela Alambique, o murro no estômago apregoado em Cannes 2009? É-o, de uma maneira completamente diferente do que estávamos à espera. Porque nele Mendoza ensaia um sub-género de que, creio, será o único cultor (Gaspar Noé? Que é isso?): o snuff movie arty. História de um aspirante a polícia que tem um doloroso baptismo de fogo numa noite infernal nos arredores de Manilla, é um filme excessivamente gráfico, excessivamente pretensioso, excessivamente tudo. O filipino não poupa nos efeitos, nos sons esparsos, na tentativa de criar ambiência, e nem sempre se sai a contento. Simultaneamente, há demasiados pormenores literais, que tornam o filme numa experiência amiúde repugnante. Tudo isto seria problemático, não fosse essencial à própria experiência do filme, um exercício em perturbação, em pesadelo, uma espécie de escatologia noctívaga que encontra nos bas fonds uma motivação quase ontológica, como que mostrando ao espectador como sobreviver quando se tem esterco até aos cotovelos. O inocente Peping, que acompanha um grupo de polícias corruptos que, como biscate, matam e desmembram uma prostituta a mando de um qualquer gangster, vive num mundo a todas as outras horas luminoso e até se casa num início do filme que, à maneira do Saló de Pasolini, em nada prenuncia o Inferno que se segue e para o qual é lançado de supetão, sem que ninguém o espere. O que nos leva directamente ao cerne desta obra com poucos ou nenhuns simbolismos (ok, aquele plano do frango a ser cortado, no início do filme, acaba por ser referencial à posteriori): Kinatay, no modo como mostra o antes e o depois onde nada parece ir acontecer ou ter acontecido e na forma como aqueles homens, antes e depois da carnificina, falam de tudo com toda a normalidade, é um brilhante filme sobre a banalização do mal, o modo como este se entranha nas vidas daquela gente, de como já é tão natural quanto qualquer outra actividade. Podia perder 20 minutos, podia ter soluções menos pretensiosas e podia não haver tanto gore? Não. Mendoza, na sua arte, revela-se um pragmático; sem todas estas causas não haveria nenhum efeito.

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Kinatay é um diamante em bruto. Lola é um diamante laminado, um futuro dvd pronto a caucionar as estantes de muita gente que nem com luvas de pelica seria vista a tocar em Kinatay. Apaixonei-me por ele num momento simples mas suficientemente sublinhado para ser de imediato visto como essencial: a velhinha Sepa, num cenário cinzento e ventoso, tenta acender um, dois, três, seis, oito fósforos, todos de imediato apagados pela intempérie, até conseguir acender uma vela em nome do neto assassinado naquele local na noite anterior. Uma vela que o mesmo vento, provavelmente se encarregará de apagar poucos minutos depois. Numa Manilla em que a vida é um gigantesco PEC, chegando ao ponto de algumas ruas terem de ser percorridas de barco devido às monções, duas avós digladiam-se surdamente em prol dos netos, um assassino outro assassinado, num duelo de perseveranças que se saldará num honroso empate. Contido, seco, não perdendo jamais o controlo do seu frágil equilíbrio sentimental, reinventa o melodrama, sublimando-o em dois pólos inesperados. De um lado, mostrando-nos as avós perdidas num estranho labirinto jurídico, onde ninguém quer saber delas ou daquele caso e onde uma palavra da cunha certa leva mais longe do que qualquer requerimento. Do outro, é um filme muito mais “etnográfico” do que Kinatay (que se passava num não-lugar, uma mansão da morte onde as prostitutas vão para ser retalhadas), onde se consegue encontrar, a um tempo, cenários de repressão (a omnipresença da violência policial) e momentos de generosidade única (genial a sequência em que a lola enlutada percorre de barco o seu bairro e recebe os donativos dos vizinhos para a organização do funeral). Se, como um dia me disse alguém que agora não vem ao caso, o cinema é a única arte que consegue mostrar os locais do mundo (a literatura, em toda a sua infinita possibilidade, só os consegue evocar), Lola vive da respiração de uma cidade, do exacto local em que uma cultura e a necessidade de sobrevivência se encontram. Até agora, não vi melhor filme em 2010.

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No final de cada um dos filmes, há um retorno à normalidade que não pode deixar de parecer estranho. Pepping, ainda abananado, passa a ter como maior problema o furo no pneu do táxi que o leva a casa, onde o esperam a esposa e o filho recém-nascido. As duas avós vão à vida delas, cada uma para seu lado, onde as esperam outros problemas e outras tarefas. Se há algo de tão fútil como uma mensagem, tanto em Kinatay quanto em Lola, ela é de que suja-se as mãos o quanto for preciso na esperança de que o dia de amanhã seja mais fácil. O problema é que o único dia fácil foi ontem.

10 outubro 2010

A vida de Bob


Quem já experimentou o desemprego sabe que há nele uma condição insidiosa. No primeiro mês, pensamos todos que vamos descansar um pouco, fazer render o peixe, antes de atacarmos o mercado de trabalho. Quando finalmente o fazemos, percebemos que é o mercado de trabalho que nos ataca a nós. Os dias sucedem, enfadonhos mas estranhamente velozes. Do mesmo modo que, quando trabalhamos, o que fazemos define-nos em grande medida, lentamente começamos a pensar em substituir o “estou desempregado” pelo “sou desempregado”. Na altura em que a almofada do Centro de Emprego começa a ameaçar desaparecer, já aceitamos aquilo que nos oferecem. Quando damos por nós, a ideia que fazíamos das nossas capacidades e das nossas ambições alterou-se irremediavelmente.

Comparado com a experiência retratada em Raining Stones (1993) de Ken Loach, o retrato em cima é de um tempo paradisíaco. Até porque nesta periferia de Manchester, a ambição há muito que desapareceu, inclusivamente da própria textura daquela sociedade. É talvez demasiado ilustrativo o momento em que o veterano inglês põe na boca de uma personagem que olha para dois jovens a frase “só lhes resta drogas, álcool e desespero”. Mas, retratando o desemprego biscateiro que surge dos escombros do Tatcherismo, nos anos perdidos de John Major, antes da revolução globalizante de Tony Blair, é difícil não ver neste filme, o maior sucesso de Loach em muitos anos, um poderoso efeito de verdade. Não é uma questão estética; antes uma profunda ligação de Loach a uma camada social e a uma paisagem específicas, como se fosse um acto de amor mostrar as vítimas de um dos mais poderosos apartheids sociais. Por outras palavras, é como se houvesse uma ligação tão forte que o cineasta pode perfeitamente dar-se ao luxo de ser pouco imaginativo sem que o filme sofra com isso.





E Raining Stones, ainda que superlativamente filmado, num estilo quase documental e com um excelente trabalho de câmara, é do menos imaginativo que pode haver, numa tradição de cinema social quase anacrónica. Numa altura em que Mike Leigh extravasava todos os limites do realismo com Naked (1993), Loach embrenhava-se neles, filmando com segurança e conhecimento de causa. Um daqueles filmes em que a falta de imaginação é uma virtude pois, por um improvável golpe de asa, a acumulação episódica de que o filme faz método até à meia hora final em algum momento o enfraquece. Na sucessão de episódios em que Bob (maravilhoso Bruce Jones) é humilhado (desde ser despedido de uma bar, na sua primeira noite, por fazer o seu trabalho a levar com um jacto de esgoto que limpava pro bono) surgem desde momentos de humor delicioso (o roubo da relva do clube conservador local) e momentos francamente comoventes (o enorme Ricky Tomlinson, da hoje esquecida série The Royle Family, a chorar depois de aceitar dinheiro da filha), subjaz essencialmente uma ideia: a da necessidade de manutenção da dignidade humana, assente em valores como a perseverança e a solidariedade. O que colmata as limitações estéticas derivadas talvez de um entendimento demasiado curto das possibilidades e funções do realismo britânico.

Apesar de tudo, existe um fio narrativo em Raining Stones e que, na sua ambiguidade, acaba por ser a sua maior vitória. Afinal de contas, no período da vida de Bob que acompanhamos, tudo gira à volta da sua vontade de propiciar à filha uma primeira comunhão digna, com caros vestido e sapatos novos. Não abandonando nunca um ponto de vista socialista (no placard da associação de condóminos lê-se “Is there a socialist alternative in England today?”), há uma ideia do fenómeno religioso que avança do respeitoso (a personagem que fala do ópio do povo é uma mera nota de rodapé, o catolicismo de Bob permanece inalterado e nunca é julgado) ao francamente solidário. No limite, avanço dizer que o retrato do padre e da forma como, contra pelo menos as leis de César, redime Bob e lhe dá um novo começo, podendo ser entendida como calculismo da parte de um autor que muitos apelidam de simplista, é prova de uma maior complexidade do que à partida seria de esperar, quase se sentindo a simpatia do cineasta por aquele padre pragmático e lúcido. E é, ao mesmo tempo, uma singular demonstração de uma condição muito peculiar ao desemprego: a maneira como, simultaneamente, estamos completamente sozinhos e, de certo modo, algo dependentes da comunidade. Bob salva-se precisamente por essa forte ligação à comunidade. O que acontece aos que não a têm?

Raining Stones é o melhor filme que vi de Ken Loach (também, valha a verdade, não vi muitos), um objecto marcante nos anos 90 e uma demonstração superlativa de realismo social(ista), equilibrando sabiamente o pessoal e o político. E um filme que importa ver no Portugal de hoje.

05 outubro 2010

Muito cá de casa (II): a Notorious necessidade de Cinema na RTP2

O post 300 deste blog vai ser marcado pela primeira vez que alguém ouve a minha galinácea voz neste blog. Na senda de uma série de videos que estamos a colocar no blog da petição, ponho aqui o meu. Uma pequena reflexão sobre as questões que me motivam a participar nesta iniciativa. Espero que gostem e que nos continuem a apoiar nesta nossa luta.

A Notorious necessidade de Cinema na RTP2 from Miguel Domingues on Vimeo.

29 setembro 2010

Sobre Lisboa nos filmes

Estream em breve dois filmes em que a cidade de Lisboa será retratada. O Filme do Desassossego de João Botelho e Os Mistérios de Lisboa de Raoul Ruiz. Não sei ainda da qualidade de ambos e, dada a sua duração (272 minutos!) dificilmente verei, para já, o do chileno, mas creio que está a faltar um certo filme sobre a cidade de Lisboa. Não aquele que mostra a luz da cidade, as suas travessas e vielas, o seu fado e a ideia canonizada das suas gentes, que isso já temos muito. Um que mostre a Lisboa dos engarrafamentos e da forma como os carros tornam a nossa vida imposível; a Lisboa dos centros comerciais em cada esquina; a Lisboa dos magotes de gente que enchem esses centros comerciais ao Domingo porque não há muito mais que fazer; a Lisboa dos SUV's que passam a alta velocidade pela mendicidade constante; a Lisboa das tias, dos freeks, dos geeks e dos yupies; a Lisboa das pessoas que esbanjam todo o seu dinheiro a crédito; a Lisboa do Rossio deserto às nove da noite e a Lisboa dos milhares que enchem os transportes públicos ao fim da tarde quando gostavam era de poder viver na cidade; a Lisboa ultra-urbana e provinciana, cosmopolita e retrógrada, futurista e saudosista.

Para quando um filme desses?

Começou a revolução... (PENN RIP)


... mas não a soube acabar.

26 setembro 2010

How Hard You Can Get Hit

Não há pessoa neste mundo de quem eu tenha tão pouca pena quanto de Sylvester Stallone. De um lado, um domínio da câmara e da caneta até bastante apreciáveis, do outro, a conjugação de tudo quanto foi errado e mesmo asqueroso na década de 80, no reaganismo belicista, no filme de acção excrementício, no derrubar de toda a digna obra até então construída. Depois de uma péssima década de 90, misto de péssimos filmes de acção (Cliffhanger, Assassins) e de horrendas comédias (Oscar, Stop! Or my mom will shoot!), Stallone aparece agora a cantar o fado do desgraçadinho, como se não fosse ele o principal culpado dos seus tempos de irrelevância. Com Rocky Balboa (2008), Stallone faz o pior: depois de ter lançado os foguetes, pede que tenhamos pena dele enquanto apanha as canas.

Nesse processo, conquista-nos? Absolutamente. Rocky Balboa é um imenso soco emocional, uma obra que faz arte de lamber as feridas e que nos reconcilia com uma personagem que em tempos adorámos mas que com o tempo passámos a ver apenas como um bronco com o tronco em V e uns calções demasiados patrióticos.



30 anos depois, encontramos Rocky como dono de um restaurante e que passa os seus dias como contador de histórias de boxe aos seus comensais, relembrando o que fez a Ivan Drago, àquele senhor das correntes de ouro e ao outro que agora faz filmes série-b. Numa parte de Filadélfia que provavelmente nunca saiu da crise, tenta ajudar uma mãe solteira e o seu filho proto-problemático e vai passando o tempo por entre memórias de Adrian, entretanto falecida (há uma belíssima sequência de um périplo quase sacro de Rocky aos lugares que lhe lembram a esposa) e tenta lidar com um filho que não aguenta a sua filiação, sentindo-se esmagado pela lembrança da glória do pai. Até que um combate virtual num programa desportivo entre Balboa e o campeão da época (imaginativamente nomeado Mason “The Line” Dixon) lhe dá a ideia de regressar, para um último combate, precisamente com o novo campeão.



O que se segue é uma glosa do primeiro filme, voltando a premir todos os botões que o primeiro premiu: a crença em si mesmo, a necessidade de sofrimento necessária ao sucesso, a possibilidade de ver vitórias mesmo nas derrotas – pormenor nada despiciendo, a vitória de Rocky neste filme também é conseguir aguentar o combate até ao fim, aquilo que ganhava o primeiro filme – e dois discursos verdadeiramente notáveis (ver os clips), que mostram que Stallone tem um notável talento para a escrita. Nada de novo, até tudo bastante cínico na utilização de uma receita já experimentada. Mas é impossível para quem cresceu com a personagem (lembro-me de pedir autorização aos meus pais para ficar acordado até mais tarde para o ver derrotar Mr. T) não se sentir verdadeiramente emocionado com este filme. Pode ser que a história de redenção, quando minimamente bem feita (são notórias as limitações de Stallone enquanto realizador, por exemplo, na forma como abusa de filtros de imagem e na montagem algo tosca do filme) seja imbatível. Ou pode ser que Stallone seja um daqueles sacanas encantadores, em cuja mudança acreditamos sempre (podia ter escrito este texto a propósito de Copland, feito já há 13 anos) mas que, no fundo, sabemos que nos enganava de novo se pudesse – o que só nos faz gostar mais dele.

Para o bem e para o mal, Rocky Balboa foi o filme do meu Verão de 2010.

Balanço

A ideia, do Luis Mendonça e minha, de se fazer uma petição Pelo Regresso da Exibição Regular de Cinema à RTP2 tem quase um mês. Desde então, angariámos já 1222 assinaturas, entre as quais as de figuras como a deputada e actriz Inês de Medeiros, os cineastas João Mário Grilo, Manuel Mozos, Catarina Alves Costa, Raquel Freire e Lauro António; o produtor Paulo Trancoso; o engenheiro de som Vasco Pimentel; o actor Gonçalo Waddington e a actriz Anabela Ferreira; o crítico da Premiere e webmaster do site Cinema2000 Nuno Antunes e os críticos Eduardo Cintra Torres, Jorge Mourinha, Jorge Leitão Barros, Vasco Baptista Marques e Mário Jorge Torres; a coordenadora da rádio Oxigénio Isilda Sanches; académicos como Manuel Villaverde Cabral, Rui Cádima, João Milagre, Teresa Cadete, Pedro Eiras, Arsélio de Almeida Martins, Adriano Duarte Rodrigues, Nilza Sena e Fernando Cabral Martins; o autor e jornalista Pedro Teixeira Neves; o historiador José Mattoso; e ainda a escritora Alice Vieira.
Contudo, a maior barreira quebrou-se precisamente hoje. Depois de textos de opinião nas colunas A Minha TV de Jorge Mourinha e Olho Vivo de Eduardo Cintra Torres, aparece hoje, finalmente, uma notícia acerca desta iniciativa, precisamente no Público, onde as outras referências haviam também constado. A terminar a notícia, um pormenor delicioso: Jorge Wemans, director da RTP2, contactado pelo diário, escusou-se a comentar.
No entanto, tudo permanece por fazer. Peço mais uma vez a todos quantos lêem este espaço que passem a palavra, assinem e instem os vossos amigos, conhecidos e familiares a assinarem. Apenas com um número suficientemente grande e compacto de pessoas poderemos aspirar a ter alguma influência.
Obrigado.

21 setembro 2010

Shaw Bros: Uma introdução à Hollywood Chinesa



(Artigo originalmente escrito para publicação na Take. Um obrigado especial à revisora H.)

No início do ano, a redacção virtual da Take escolheu Kill Bill como o filme da década. Altura perfeita para uma pequena introdução à história e ao trabalho dos estúdios Shaw Bros, glorioso império cinematográfico que marcou indelevelmente a história do cinema nos anos 60 e 70.




Em 2003, Quentin Tarantino anunciou que o seu próximo filme seria uma homenagem às produções de artes marciais do estúdio Shaw Bros. Assim nasceu Kill Bill, cujo primeiro tomo é um ersatz da Shaw e em cujo segundo tomo é recuperada uma das principais personagens do estúdio, o mestre Pai Mei. Pese embora a beleza e a utilidade da homenagem, Kill Bill nada fez pelo conhecimento ou pelo nome da companhia chinesa no Ocidente. Como sempre acontece no universo de Quentin Tarantino, a referência, mais do que gerar curiosidade e potenciar a descoberta, acaba por ser absorvida pelo universo do seu criador, tornando-se parte dele, num movimento que, paradoxalmente, até contribui para tornar irrelevante a mesma homenagem que pretende prestar. Assim, tanto quanto por curiosidade cinéfila quanto pela importância do estúdio e pela qualidade de algumas das obras por si produzidas, importa conhecer um pouco mais da história de uma instituição marcante no panorama asiático do seu tempo.



O INÍCIO

Como o próprio nome indica, os estúdios da Shaw Bros começaram enquanto empresa familiar. A família Shaw começou a sua carreira no mundo do espectáculo nos anos 20, através da fundação da Tianyi, produtora associada a algum conservadorismo, a dramas históricos e filmes de fantasia e artes marciais. Em competição com outra companhia da época, dois dos irmãos foram mandados para o Sudeste Asiático para explorar os mercados, nomeadamente junto de mercadores e trabalhadores de plantações, facilmente atraídos pelos enredos simplistas dos filmes da Tianyi. Este mercado viria a decair no final dos anos 20 mas já em 1924 a empresa passa a operar a partir de Singapura, quando os fundadores passam a distribuir os filmes da United Artists de Chaplin, Fairbainks e Pickford e criam uma rede de parques de diversão e cinemas. Quando se dá a crise dos anos 30, os gestores da empresa compram vários cinemas falidos e equipam-nos para o cinema sonoro. Esse equipamento é confiscado pelo exército japonês aquando das invasões nos anos 40 e os fundadores da companhia refugiam-se em Hong Kong, onde não apenas encontram protecção do Império Japonês como, futuramente, também dos nacionalistas chineses do Kuomintang e do comunismo que se lhe segue. No imediato pós-guerra beneficiam de um contexto rico de criatividade, diferente do ambiente na China Continental, onde o cinema passou a estar totalmente controlado pelo Partido Comunista Chinês e onde filmes de artes marciais e outras “superstições” foram banidos até começar o período de reforma no final dos anos 70. Com financiamento vindo do jogo e da prostituição, asseguram os direitos de exibição de diversos filmes americanos e pelo início dos anos 50, conseguem recuperar as salas que haviam perdido durante a Guerra nas comunidades de chineses ultramarinos e de Hong Kong, mas não na “Mainland”, onde todos os estúdios foram nacionalizados. Contudo, foi apenas em 1957 que os irmãos Run Run e Rumne Shaw, instruídos no Ocidente e dois dos homens mais ricos do mundo, percebendo a desvantagem em que estavam face a diversas outras companhias, nomeadamente de Hong Kong, começaram a dedicar-se também à produção. A companhia que daí nasceu foi a Shaw Brothers.


A IDADE DE OURO (1957 – 1970)

Depois de uma série de filmes históricos, baseados em óperas chinesas, que geram os primeiros sucessos de bilheteira, entre os quais se destaca The Kingdom and the Beauty (Han Hsiang Li, 1959), em 1961 termina a construção do estúdio Movietown, localizado no enclave de Kowloon, na China Continental, com uma equipa de 1500 pessoas e capacidade para rodar até sete filmes em simultâneo. Em breve seguir-se-ão os estúdios de Kuala Lumpur e de Singapura. A produção passa a basear-se no modelo hollywoodiano, procurando trazer, quase sempre de Hong Kong, toda a qualidade técnica que o dinheiro possa comprar e, ao mesmo tempo, impor a centralização e a sistematização da produção de filmes, tornando o produto final mais barato e formalmente mais competente. Chegados a meados da década de 60, a Shaw Brothers possuía 127 cinemas um pouco por todo o Sudeste Asiático, três estúdios com aura de Hollywood antiga (por alguma razão o logótipo da Shaw se assemelha ao símbolo inicial da Warner Bros), diversos parques de diversão e uma produção que se situava entre os 30 e os 40 filmes por ano, num total de cerca de 300 filmes nos primeiros 12 anos de actividade. No que concerne aos realizadores, actores e equipa técnica, havia uma política de contratos ferozmente negociados, que incluíam 4 a seis filmes por ano, um salário mensal fixo e um bónus consoante os resultados de cada filme. Muitos dos actores viviam nos dormitórios nos estúdios e tinham percursos delimitados consoante o género. Assim, um homem, normalmente com experiência enquanto duplo ou na ópera chinesa, entrava na escola de representação da Shaw aos 18 anos e conseguia obter papéis principais até perto dos 35 anos, altura em que poderia sair ou ficar como actor secundário. Já grande parte das mulheres era contratada através de audições gigantes ou através de anúncios nos jornais e saia por volta dos 25 anos para casar, sendo poucas as personagens femininas com mais idade nas obras da companhia. A remuneração, para actuantes como para criativos, era pequena: um argumentista ganhava cerca de 1250 dólares HK por filme e um realizador cerca de 3000. Por último, a carga de trabalho imposta aos participantes era imensa: os horários ascendiam a 16 horas diárias e era comum que todos os intervenientes fizessem dois filmes em simultâneo. Tamanha conjugação de estrutura com rigor e disciplina na organização das equipas e com o talento angariado permitiu à companhia a um tempo dotar os filmes de meios de produção e, apesar de tudo, torná-los lucrativos. Falados em Mandarim e não em cantonês, como a maioria dos filmes produzidos em Hong Kong no mesmo período, os filmes conseguiram penetrar os mercados de Singapura e Taiwan, onde a língua também é falada. Como tal, os lucros de bilheteira permitiam que os filmes seguintes fossem ainda mais confortáveis em termos de orçamento, normalmente situado entre os 300 mil e os 800 mil dólares HK, muito acima da média de 20 mil dólares HK que custava a produzir um filme cantonês.





Depois de um início baseado em filmes históricos como o já referido The Kingdom and the Beauty e musicais como The Love Eterne (Han Hsiang Li, 1961), que rapidamente atingiram, segundo diversos historiadores, a monotonia, a Shaw Bros revitalizou o panorama do cinema asiático através da transposição cinematográfica de um género literário que ainda hoje perdura – o wuxia, que redutoramente pode ser chamado de “romance de artes marciais”. Ainda que os filmes não fossem estritamente adaptações literárias, mantinham a mesma estrutura, misto de artes marciais, melodrama, tratamento de códigos de honra e aproveitamento da mitologia chinesa. Seguindo o método de capitalizar em tudo aquilo que se mostrasse comercialmente bem-sucedido, The One-Armed Swordsman (Chang Cheh, 1967 – o título é auto-explicativo) inaugura uma fase em que são filmadas histórias uni-dimensionais, com enredos típicos e muito semelhantes entre si, normalmente acerca de um estranho vindo do campo que chega à grande cidade para ou vingar um ente querido ou para mudar o statu quo através das suas capacidades técnicas e da sua sede de riqueza, trazendo sempre justiça a uma situação desequilibrada. Distinguem-se igualmente pelo lado social evidente ainda que simplista mas onde impera uma claridade moral: o pobre justo ascende à riqueza derrotando o rico ímpio e patriarcal, muitas vezes morrendo no processo. Rodados em sumptuosos cenários de estúdio ou nos backlots dos estúdios da companhia, são filmes que podem ir de uma enorme qualidade técnica e formal a exemplos de “skid row cinema”, deliciosamente xungas e com pontas no argumento atadas através de voice-over, misturando violência estilizada e ballet marcial com momentos de sentimentalismo, num todo por vezes precário e por vezes recompensador.

OS REALIZADORES



De entre os realizadores pertencentes aos quadros da Shaw Bros, um ganha especial destaque: Chang Cheh. Mais popular e mais bem-sucedido realizador de sempre no género wuxia, foi o realizador do seminal The One-Armed Swordsman (1967), primeiro filme a ultrapassar o milhão de dólares HK nas bilheteiras. Com cenas de luta influenciadas por técnicas de combate japonesas, tinha como principal objectivo tornar a acção dos seus filmes o mais realista possível. Para tal, era frequente o uso de sangue nos seus combates e a existência de armas feitas de metal e, contrariamente ao que algumas produções de filmes de kung fu faziam nos anos 50, coreografava abundantemente as suas lutas. A sua estética era então, verosímil, ao que juntava, nos seus filmes, relações filiais e conflitos geracionais com que a audiência dos anos 60 e 70 se podia identificar. Com mais de 100 filmes no currículo, cristalizou também o motivo do forasteiro campestre que chegava à cidade ou para vingar ou para perseguir sonhos de riqueza, conseguindo os seus objectivos mas morrendo de caminho. Tecnicamente virtuoso, teve como assistente de realização um jovem John Woo e é possível ver a sua influência não apenas na montagem virulenta como também, por exemplo, no tiroteio inicial de Hard Boiled (1992), num café preenchido por gaiolas de pássaros. É o grande esteta do Wuxia cinematográfico.



Anterior a Chang Cheh, King Hu realizou o fundamental Come Drink With Me (1965), dos primeiros grandes sucessos de wuxia da Shaw Bros. Fundindo estilos ocidentais e orientais de realização, criou uma abordagem inovadora ao cinema de artes marciais que ainda hoje perdura. Estudante de ópera chinesa, desenvolveu uma estética única baseada na pintura, literatura e teatro do Império do Meio. Sem ser especialista em filmar cenas de luta, conseguia no entanto adaptar movimentos fluidos a uma montagem construtiva. Um dos seus truques era tornar a luta o mais rápida e o mais afastada possível do primeiro plano, disfarçando assim quaisquer defeitos existentes. Outro era, quando pretendia insuflar de sentimento épico as paisagens que filmava, dar apenas um muito rápido plano de conjunto, que assim perdurava e era engrandecido pela imaginação do espectador. Teve na sua equipa, como assistente de realização, um jovem Ang Lee, que o homenageou em O Tigre e o Dragão (1999), inspirado no importantíssimo A Touch of Zen (1969). Por contraponto à ideia de realismo professada por Chang Cheh, era um fantasista, situando quase sempre os seus filmes nos mitos da antiguidade chinesa.

O FIM




Tempos houve em que o cinema de kung fu era muito visto e apreciado no Ocidente. Em salas de bairro, de puro ambiente “grindhouse”, perante o niilismo do policial de inícios de 70 (filmes como Dirty Harry ou Madigan, ambos de Don Siegel) ou antes do assumido pendor artístico dos movie brats, estes filmes proporcionavam ao espectador momentos de espectacularidade nas suas lutas, de violência catártica e uma claridade moral, ancorada no maniqueísmo das personagens que davam uma ideia de um todo simples e exótico. Contudo, paradoxalmente, se os filmes da Shaw Bros foram muito vistos no Ocidente à época, não foi este o estúdio que mais lucrou com a febre do cinema de artes marciais. Tal posto pertence à Golden Harvest, formada pelo dissidente da produtora Raymond Chow e que revelou ao mundo Bruce Lee, com os seus filmes de torneio e que haveria de, com a sua morte precoce, tornar-se o único mártir deste género cinematográfico, bem como, a partir da década de 80, a Nova Vaga da acção de Hong Kong, com uma grande componente de comédia, protagonizada acima de todos por Jackie Chan e Sammo Hung. Por todos estes factores, bem como por um certo cansaço do género (até a vedeta David Chiang disse, em meados de 70, querer afastar-se da pancadaria para se dedicar a outros temas) e pela transformação dos mercados orientais, mais permeáveis aos filmes ocidentais, a Shaw Bros perdeu o seu estatuto de Hollywood chinesa e hoje sobrevive apenas como produtora e distribuidora de vídeo, conteúdos informáticos e televisão. O seu espólio, no entanto, permanece riquíssimo e está a ser lançado em dvd (disponível, frequentemente a baixo preço, na cadeia de lojas FNAC) e, mesmo que apenas através da interposta pessoa de Quentin Tarantino, faz já parte do imaginário colectivo de uma geração. No Oriente como no Ocidente, o tempo de grandes estúdios funcionando como linhas de montagem já terminou.

E os filmes? Não se fala especificamente de Vengence (a obra-prima de Chang Cheh, 1970), de A Touch of Zen ou de The 36th Chamber of Shaolin (Chia Liang-Liu, 1978)? Não; a porta está aberta. Resta ao leitor, através do dvd ou das maravilhas da Internet, entrar por ela.