30 dezembro 2010
26 dezembro 2010
Livros 2010
23 dezembro 2010
Discos 2010
1 - The Walkmen - "Lisbon"
2 - Vampire Weeknd - "Contra"
3 - Beach House - "Teen Dream"
4 - LCD Soundsystem - "This is Happening"
5 - The National - "High Violet"
E também, por odem alfabética:
Antony and the Johnsons - "Swanlights"
Best Coast - "Crazy for You"
Kanye West - My Beautiful Dark Twisted Fantasy"
Linda Martini - "Casa Ocupada"
Owen Pallett - "Heartland"
Sufjan Stevens - The Age of Adz"
The Gaslight Anthem -"American Slang"
Twin Shadow - "Forget"
Wolf Parade - "Expo 86"
18 dezembro 2010
Indie Boy meets Indie Girl

Num sub-género, a comédia romântica, que se tornou irrelevante pela sua aposta constante em cenários previsíveis e banais, 500 Days of Summer é um autêntico choque eléctrico, um ressuscitar inesperado e uma futura fonte de citações pop-culturais, bem como um filme de soluções bem mais criativas e estimulantes do que, por exemplo, o tematicamente idêntico The Hottest State (Ethan Hawke, 2007 – do qual, apesar de tudo, gosto bastante).
Primeiro que tudo, por ser um filme para jovens adultos. Longe da sentimentalização da adolescência que o cinema e alguma tv usam na actualidade, em que o espectador vê putos que acham que nada será mais importante do que ter 16 anos, ou das confusões amorosas da meia-idade de Julia Roberts, 500 Days of Summer foca-se em pessoas que ainda têm muito para decidir mas que, ao mesmo tempo, já conseguem olhar para trás e ver algo de relevante nas suas vidas. Facto já de si original, contribui decisivamente para a escolha etária dos protagonistas (os maravilhosos Joseph Gordon-Levitt e Zooey Deschanel) mas, sobretudo, ao possibilitar o recurso a um universo indie contemporâneo, logo, tremendamente reminiscente dos anos 80. Por outras palavras, este é um filme em que as pessoas trauteiam o "There is a Light That Never Goes Out" dos The Smiths em elevadores e nos bares de karaoke optam por versões desafinadas de "Here Comes Your Man" dos Pixies. Se nada mais houvesse, a cena, logo no início, em que vemos o quadro de cortiça do jovem Tom Hansen e lá estão as capas de "Psychocandy" (1987) dos Jesus and The Mary Chain, "Unknown Pleasures" (1979) dos Joy Division ou "Strangeways Here We Come" (1987) dos The Smiths – todos discos que possuo – bastavam para me conquistar.
500 Days of Summer é, então, um filme comercial para a imensa minoria indie e, em termos formais, essa síntese corresponde a um filme acessível, cuja fotografia queimada e pastosa e a banda sonora de bom gosto (apesar dos Temper Trap) convivem com uma leveza e uma jovialidade transversais a vários públicos. Narrativamente, embora contado sempre de um ponto de vista futuro, não se refugia num qualquer flashback linear, alternando antes os dois tempos da relação (o durante e o depois), correspondendo cada momento a um dos 500 dias de que fala o título, fazendo sempre com que cada dia que se segue, cronologicamente anterior ou posterior, reforce ou contradiga o que o antecedeu. O que o realizador Marc Webb e os argumentistas Scott Neustadter e Marc H. Weber conseguiram é então um objecto híbrido, simultaneamente alternativo e popular ou, se assim quiserem, complexo e simples. Mesmo as soluções mais discutíveis, como por exemplo o uso de ecrã dividido na maravilhosa sequência da festa, são utilizadas com classe, discernimento e razão de ser.
Preenchimento de um nicho de mercado? Sim, mas a questão de ser uma eventual prostituição daquilo que tem credibilidade precisamente no seu segredo pouco me afecta. Nunca achei que aquilo de que gosto deve permanecer em segredo. Pelo contrário: assim que o vi percebi logo que, num mundo ideal, 500 Days of Summer passaria na televisão todos os domingos à tarde. E eu lá estaria, perdendo-me nesta história, tão corriqueira mas que me diz tanto.
12 dezembro 2010
Os 5 méritos de Os Mistérios de Lisboa
Argumento: Carlos Saboga, consagrado argumentista do cinema português (veja-se o belíssimo O Milagre Segundo Salomé, Mario Barroso, 2007), confrontado com a escolha entre os elementos realistas, melodramáticos, cómicos e de crítica de costumes da escrita camiliana, opta por uma síntese equilibrada e romanesca de um universo onde os três elementos estão tão entrelaçados quanto as personagens na sua intriga. O argumento, que se nota trabalhado à exaustão, consegue a um tempo não deixar qualquer ponta solta, fechar um círculo perfeito à volta da(s) imensa(s) intriga(s) que move(m) a narrativa e contribuir para que um filme que excede as quatro horas passe de um só fôlego a toda a rapidez. É pena, então, que Carlos Saboga se faça tão raro e que aqueles que tanto o prezam optem pelas inanidades de Tiago Rodrigues (não é, sr APV?).
Actores: Todos aproveitando ao máximo as personagens ao seu dispor e, embora talvez isto seja excessivo, quase parecendo terem a plena noção de que esta é uma obra fundamental para o futuro das suas carreiras. Maria João Bastos demonstra uma impar fotogenia nos excessos da sua Angela de Lima e Ricardo Pereira, no seu arrivista burguês de vários nomes, demonstram o talento que as telenovelas não permitem que as suas maiores figuras mostrem, adaptando-se ambos tão bem aos momentos de excesso quanto às subtilezas que as figuras também pedem; jovens como Carloto Cotta e Afonso Pimentel aguentam-se perfeitamente no embate com os mais experientes; Melvil Poupaud e Clotilde Hesme, com papéis de dimensões diferentes, passeiam classe nos seus desempenhos; mas é Adriano Luz que suplanta todos os outros, no papel do padre Dinis, camaleónica figura que percorre os mais variados espectros sociais e que acaba por servir de catalisador a todos os acontecimentos, um literal self made man. Um dos nossos maiores actores encontra aqui o desempenho por que será lembrado. Já não era sem tempo.
Técnica: Mistérios de Lisboa é um compêndio cinematográfico como apenas me lembro de ver em The Age of Innocence (Martin Scorsese, 1993): não há aqui uma técnica por empregar, um artifício fílmico por utilizar, uma figura de estilo que não encontre um momento no qual não se adeqúe. De travellings seguríssimos e de movimento fácil, de planos fixos absolutamente milimétricos, de utilização racional e nem exibicionista nem académica dos planos de gruas (coisa rara) até à muito conseguida interacção entre o primeiro plano e o fundo da imagem, o filme do chileno é um banquete para os olhos e uma obra que deve ser estudada a fundo por modo a compreender as suas intrincadas mecânicas formais.
Raoul Ruiz: Se um filme é tão bom quanto Mistérios de Lisboa, é óbvio que o trabalho do seu cineasta tem de ser meritório. Mas o que mais me surpreendeu é que Mistérios… demonstra o controlar das tendências que me afastaram do seu cinema, designadamente o surrealismo indigesto de Três Vidas e Uma Só Morte (1998), o ultra-barroquismo de Klimt (2006) e a má escolha estética da personificação do autor em O Tempo Reencontrado (1999). Neste filme, o realizador parece qualquer coisa como um “tarefeiro artístico”, alguém com um romance a adaptar num contexto específico (quiçá, terei de pesquisar, até como encomenda), que se preocupou em encontrar a melhor solução para cada frame e que, de caminho, fez um dos acontecimentos estéticos fundamentais de 2010, até muito contra a ideia de cineasta morto e enterrado que quase toda a gente fazia dele, ainda para mais com um material de difícil equilíbrio, derivado do seu carácter folhetinesco. Se mo tivessem dito há três meses, tinha-vos chamado loucos. Mistérios de Lisboa não só é, muito provavelmente, o melhor filme de 2010, é também completamente inesperado. Abençoado seja!
05 dezembro 2010
Iguaria Tex-Mex

Sam Deeds (esplêndido Chris Cooper, num desempenho intenso mas discreto), xerife da povoação de Rio County, na fronteira do Texas com o México, é filho de um antigo xerife, o mítico Buddy Deeds (bom desempenho, embora curto, de Matthew McConaughey) que por sua vez ficou conhecido por retirar desse mesmo cargo e expulsar da cidade o anterior agente da lei, o sádico, corrupto e violento Charlie Wade (competentíssimo Kris Kristofferson). Tendo ganho o cargo por ser filho de quem é, o Deeds Jr encontra o corpo de Wade e, a partir desse momento, enceta uma investigação onde, mais do que tudo, deseja desmascarar o pai devido a este não o ter, na sua adolescência, deixado prosseguir o seu romance com Pilar (excelente Elizabeth Peña), no presente do filme uma professora local acusada de desvirtuar o ensino da História de modo a aumentar a influência da cultura mexicana no Texas. Tudo isto numa cidade de calor abrasador, paisagem inóspita e onde, apesar de a população ser composta maioritariamente por mexicanos e negros, é a minoria branca que retém o poder e a influência mas onde são claras as intersecções humanas e culturais.
Cuidado, o trailer é completamente enganador.
Nas suas duas horas e um quarto, filmadas, pelo cuidado dado aos diálogos e pelo brilhantismo da progressão narrativa equilibrada e cartesiana, como se de um romance se tratasse, Sayles traça um retrato multi-facetado e amplo de uma mentalidade sulista nos seus diversos matizes. Em primeiro lugar, há uma constante influência do passado, que se revela o motor de todas as acções presentes das suas personagens, num todo coral e em que cada narrativa vai reforçando as anteriores, de modo que nem há qualquer necessidade de voice over, tal a clareza da montagem e do diálogo. Em segundo lugar, Lone Star trata também das regras tácitas, dos procedimentos num dado local e num determinado tempo e da forma como, para todos os efeitos, são esses modos de agir que fazem a identidade de um local e, ao mesmo tempo, alimentam a teia de ressentimentos. Por último, e em relação com o segundo ponto, há a temática principal do filme, a noção de fronteira e a forma como todos, em certos momentos e de diferentes maneiras, as ultrapassarmos, tornando as vidas e os lugares muito menos determinados à partida do que eles aparentam ser, quer de um ponto de vista pessoal quer de um ponto de vista sociopolítico. Não sendo nunca alguém com um ponto de vista redutor sobre qualquer destas questões, o cineasta, mais do que afirmar o lugar-comum de que nada é tão simples como parece, dedica-se a provar esta tese, compondo um fresco sulista que se apoia no western mas que fala claramente do seu tempo. Na tradição do cinema liberal de que Sayles faz parte, não é descabido vê-lo também como uma resposta às visões mais extremas da imigração existentes nas fronteiras norte-americanas.
Há, então que perguntar: como é possível que um filme tão rico, tão cheio de ideias (até do ponto de vista visual, com a incorporação dos flashbacks com um simples desviar da câmara, reforçando a ideia de uma continuidade entre tempos naquele local) e com uma tão interessante reflexão cinéfila sobre o western (a última frase do filme é “Forget the Alamo”; à maneira do Liberty Valance de John Ford, quando se descobre a verdade sobre Buddy Deeds, o filho responde “Buddy is a goddamn legend – he can take it”) é ignorado e o seu cineasta alguém que, muitas vezes, para compor o orçamento, tem de aceitar trabalhos como script docter? Simples. Esteticamente, pelo seu carácter romanesco já referido e pelos seus tom e ritmo muito próprios, diferentes de praticamente tudo o que se vê no cinema americano (ou de qualquer outro lado, já agora), o que aqui temos é um filme que, longe de ser hermético (até o criticam por ser demasiado ilustrativo), existe no seu próprio universo formal, na sua própria maneira de ser, dando-se até ao luxo de fugir a sete pés do clímax que a cena final, com a sua revelação bombástica, pediria a qualquer outro cineasta. Absorvente, subtil e profundo, Lone Star é um daqueles filmes que se revê dezenas de vezes e onde se descobre sempre algo de novo e cujos segredos são tantos que parecerá sempre um outro filme. E, a um tempo, um daqueles filmes que nunca arrastará multidões, nunca granjeará reconhecimento generalizado e nunca promoverá o seu criador. Vê-lo no Canal Hollywood não muda muito, mas é uma boa forma de ajudar ao começo da mudança deste estado de coisas.
01 dezembro 2010
Re-publicação Take (3)

Até ao momento, Lars von Trier tem feito a sua carreira num apreciável vazio ideológico. Tão depressa é um skinhead anti-europeu (Epidemia e Europa) como um europeu anti-americano (Dogville e Manderley); tão depressa é um beato dreyeriano (o magnífico Ondas de Paixão) quanto um rebelde niilista (Os Idiotas). E os casos em que tínhamos mais problemas com isso eram somente aqueles em que o alicerce era mais fraco e, por isso, se notava a ausência de argamassa – em Ondas de Paixão ou Dogville, belos filmes, nada disso nos importou. O que nos perturba é que neste filme parece haver falta de matéria, de uma base que sustente a estrutura. História, alegadamente, de um casal que se refugia numa cabana num bosque chamada Éden e cujo elemento feminino começa a sofrer de estranhas perturbações psico-sexuais, que pensa surgirem da natureza, é um filme que parece ter na sua misoginia infantil a sua única razão de ser. Paradoxalmente, é um filme que tem no extraordinário desempenho de Charlotte Gainsbourg o seu principal sustento, estando a actriz francesa disposta a cenas de sexo gráfico e a encenar obscenas mutilações genitais, dado que Willem Dafoe parece sempre um bocado perdido na parca personagem que lhe deram, estando lá apenas para ejacular sangue depois de ter os testículos esmagados pela esposa. Assim, é quase comovente: também o actor americano parece não perceber a metáfora dos três pedintes, porque teve de ter um duplo a fazer um plano de penetração peniana ou porque é que a câmara, em certas cenas, gera o “efeito fundo de garrafa”. Von Trier atira coisas à parede e quem leva com elas na tromba é o espectador.
Repetimos, noutros filmes não houve grandes problemas com isto, nem com sinos no céu nem com o musical da ceguinha islandesa. Mas nesses, o dinamarquês pretendia comover. Agora, no outro extremo da egomania (só Nanni Morretti parece, no cinema europeu actual, ser tão egomaníaco quanto von Trier), pretende chocar e falha miseravelmente (como havia falhado no supracitado filme de 1998). O que nos leva de novo a Pasolini: quando quiserem chocar, tenham alguma coisa para dizer. Os não-puritanos agradecem.
28 novembro 2010
Re-publicação Take (2)

Chegada agora a estreia de A Bela e o Paparazzo, a maior dificuldade que se põe é a de conciliar o homem que escreveu o catálogo do ciclo sobre Roberto Rosselini na Gulbenkian, entrevistou Truffaut para a revista Cinéfilo e vê constantemente o inolvidável A Regra do Jogo (Jean Renoir, 1939) com o homem que faz filmes destes e que aparece a discutir bola com duas pessoas que não adjectivarei por medo de represálias judiciais na RTP. A tese de APV é simples: o público é o cliente do cinema e, como tal, tem sempre razão. Se a populaça não reage às Fontainhas de Pedro Costa, ao Portugal profundo de João Canijo ou à incomunicabilidade nas relações humanas de Fernando Lopes, a culpa é dos cineastas e não de quem não lhes dá oportunidade. Logo, a receita para o cinema português é uma terra queimada onde o digno e, custe a quem custar, qualitativamente muito satisfatório passado autoral seria substituído por um cinema acima de tudo comercial, como uma Hollywood à beira-mar plantada. E o resultado prático dessa teoria é um filme que dá ao público aquilo que ele quer, mesmo que o faça deitando pela janela qualquer originalidade ou interesse, quando não mesmo debitando clichés e fazendo piadas sensaboronas.
Soraia Chaves (gostava que lhe fosse dada a oportunidade de fazer um papel sem ter de estar espampanante, decerto se veria melhor o seu apreciável talento de actriz) interpreta uma vedeta de novelas que se apaixona, sem o saber, pelo paparazzo que a persegue (competente Marco d’Almeida) e que, por sua vez, vive numa Bica que só existe nas mentes do argumentista e do realizador com dois freaks saídos de uma sitcom de fraca qualidade (um dos quais um Nuno Markl a expandir para o cinema a sua persona mediática). De cores almodovarianas (e atente-se nas cenas do esgotamento de Mariana nas filmagens da telenovela, que tão bem ficariam num filme do espanhol) e com uma referência explícita a O Apartamento (Billy Wilder, 1960, vejam a cena do esparguete escoado através da raquete de ténis), é um filme frouxo, filmado de forma pouco personalizada e que, no limite, nada acrescenta ou retira, fruto de um argumento que tem sido muito prezado mas que é absolutamente indiferente. O seu maior problema, no entanto, é de índole ético-moral: num filme que pretende criticar e desmistificar a vacuidade do star-system e da produção televisiva portuguesa, a receita encontrada é trazer toda essa linguagem e toda esse mundo para um filme, aproveitando o potencial comercial dos nomes envolvidos, fazê-lo com a mesma normalização estética de uma telenovela bem como com a sua ingénua ideia de felicidade (duas pessoas descalças à noite no Rossio não encontrariam o amor, encontrariam sim alguém com uma navalha na mão e um apetite por carteiras e telemóveis alheios) bem como na sua ideia perigosa de que, de uma maneira ou outra tudo acaba sempre bem. Resumindo-o: dá-se ao público aquilo que ele quer enquanto se critica o que o público quer. E este respondeu, nem que seja pelo imenso esforço publicitário feito em torno de A Bela e o Paparazzo, desde spots radiofónicos e televisivos a uma semana inteira a ele dedicado no programa 5 para a Meia-noite, anúncios em jornais e revistas e uma ante-estreia sumptuosa no cinema S. Jorge. APV, parte integrante do Cinema Novo, a Nova Vaga portuguesa que nunca o foi, está hoje no exacto antípoda do “Eu quero que o público português se foda” do companheiro geracional João César Monteiro aos microfones da SIC. É pena.
Se quisermos, então, voltando ao primeiro parágrafo, tentar conciliar os inegáveis conhecimento e amor pelo cinema de APV com aquilo que é o produto final produzido pelo cineasta, podemos pensar na cena em que Mariana ensaia A Gaivota de Anton Tchékov. O pormenor mais importante é o casting de APV e do produtor Tino Navarro, respectivamente, como encenador e produtor da peça. O que aqui podemos ver, no limite, é a ideia, que APV por diversas vezes repete, de que é tão autor e de que os seus filmes são tanto arte quanto a obra-prima do dramaturgo russo ou quanto qualquer outro filme “de autor” português. O problema é que tal ideia esbarra na realidade dos objectos criados. De caminho, A Bela e o Paparazzo só me faz pensar que muito do que está errado no panorama mediático e artístico português passa por aqui. E, pelo facto de ter adorado falar com o realizador durante algumas horas em Junho, só me entristece escrevê-lo.
Re-publicação Take (1)

A obra de João Pedro Rodrigues manifesta, dez anos após a estreia nas longas com O Fantasma (2000), uma admirável coerência estética. O seu cinema é melodramático, filtra Douglas Sirk e todo o melodrama norte-americano através de Rainer Werner Fassbinder, pega em abundantes outras referências americanas e europeias e regurgita-as num todo de cinema que, em Portugal e na Europa, não se confunde com o de mais ninguém, criando simulacros dentro de simulacros, num cinema cuja realidade se alimenta e se configura a si mesma, numa estilização auto-fágica. Só que, confessamos desde já, não gostamos do cinema de João Pedro Rodrigues, no seu indomável gosto pelo escatológico, no seu embelezamento do decadente, na sua mistura complexa de gerir entre a literalidade total do kitsch e o simbolismo artístico máximo mas inconsequente.
Se O Fantasma parece, à distância, um filme insuportável no seu asco e se Odete (2005) entra amiúde pela patetice indesculpável, Morrer como um homem até se pode dizer que melhora um pouco o estado de coisas. A história de Tónia, num fascinante estádio intermédio de definição sexual (já não exactamente homem mas nunca mulher), tem amplos aspectos de relevo nas suas viagens pelos bas-fonds lisboetas, nos poucos momentos em que o seu lirismo atinge a medida certa (o fado final ou o Sempre Ausente de António Variações cantado “a capella” pela janela de um carro), na sequência da canção de Baby Dee em tons vermelhos e na comoção que Alexander David empresta à personagem principal, num desempenho justíssimo de tom.
Justeza de tom que falta a tudo o resto: às cenas na casa junto à barragem, às discussões entre o casal, às cenas no cabaret e sobretudo na incapacidade de usar a suspensão da descrença, mormente na incompreensível guerra alegadamente a ser travada em território nacional. O mais interessante de Morrer como um homem acaba por ser, então, a sua estrutura, à maneira de um musical pós-Hollywood com apenas três ou quatro números, normalmente os momentos mais conseguidos do filme. O que ainda torna mais difícil de aceitar a falta de ritmo da obra, extensível a outros filmes, estendendo a ideia a um ponto que, pela falta de concisão, o torna cansativo. Apesar de tudo, pelas vezes em que acerta, pelo talento visual (indesmentível) que João Pedro Rodrigues possui e pela diferença face ao restante panorama cinematográfico global, sentimos vontade de entrar mas ficamos à porta, a olhar para dentro. Ainda assim, mesmo não gostando, defenderemos sempre o direito de Morrer como um homem a existir.
20 novembro 2010
Sombras e Luzes

Antes, os Surfer Blood, misto de indie rock com surf music, fizeram uma primeira parte prejudicada pela falta de qualidade de som. Banda nova, com um razoável disco de estreia, Astro Coast (2010), teve um espectáculo necessariamente curto e competente, embora, pelo meio do potencial, deixem ainda transparecer alguma inexperiência.

Relativamente aos Interpol, há duas formas de se perspectivar o seu percurso: i) o de uma banda que lançou o seu melhor material nos seus dois primeiros álbuns e a partir daí decresceu de qualidade; ii) o de uma banda que apesar da superioridade dos seus dois primeiros álbuns, continua a editar material interessante e a ser uma banda de relevo no panorama internacional. Eu afino pelo segundo diapasão e por isso troquei o bilhete de Arcade Fire por um ingresso neste concerto. Começando com “Success”, tema de abertura do novo disco, o que se viu foi um espectáculo ritmado, sem pontos baixos, de uma máquina de palco muito bem rotinada e coadjuvada por um excelente jogo de luzes. É natural que os melhores momentos do concerto tenham sido temas mais antigos como “Narc”, “Slow Hands”, “PDA” ou “Obstacle 1”, mas a conclusão mais importante a retirar desta noite foi a de que a banda tem temas para além dos mais famosos e que se aguentam perfeitamente no embate com aqueles.
Não se espere dos Interpol um espectáculo “de estádio”, digno de “animais de palco” como os discípulos Editors, pois são uma banda mais cerebral, mais atmosférica, mais comedida mesmo quando o ritmo acelera. Mas passou por aqui uma tão flagrante parte da última década e, tout court, tão boa música que foi o fim ideal para mais uma duríssima semana de trabalho.
15 novembro 2010
Mamas e bolas


Confesse lá, agora já gosta mais de nós?
11 novembro 2010
Da criação e outros demónios

Com a notoriedade e importância que o Facebook gerou nos últimos anos, era inevitável a feitura de um filme sobre o assunto. Felizmente, The Social Network é um filme realizado por David Fincher, um dos grandes estetas do nossos, escrito por Aaron Sorkin (da magnífica série The West Wing) e com gente competentíssima a protagonizar (Jesse Eisenberg, no seu melhor papel até agora, junta-se ao irresistível cretino Justin Timberlake) e musicar (a banda sonora é o melhor trabalho de Trent Reznor desde o início da década de 90) e transforma um material digno de telefilme numa obra cinematográfica vibrante e urgente sobre as dinâmicas do poder e as suas influências nos percursos individuais.
Todos os mitos de criação precisam de um demónio, diz o argumento, e o deste filme é Mark Zuckerberg, o mais jovem bilionário de sempre e que, como decerto muitos inventores, gerou a sua criação para impressionar uma mulher. The Social Network é, no limite, a história de como o pequeno-burguês, confrontado com a cabidela dos fortes (a orgia dos privilegiados em Harvard), encontra na técnica a sua vingança, pensando e executando mais e melhor do que foi pensado e executado pelos mais ricos. No seu modo psicoticamente agressivo de relacionamento e na sua brutal frustração sexual, encontra o combustível para a sua criatividade. O problema é que este é um modo difícil, quando não impossível, de desligar e o caminho de Zuckerberg é um de progressivo isolamento e solidão. A personagem principal é, então, um precoce conhecedor de quão inóspitos são os topos das cadeias alimentares. E, de caminho, um curioso precursor do resultado final daquilo que inventou.
O que ganha The Social Network é, assim, a sua brilhante ironia. Afinal de contas, o que o início da maior rede social do mundo produziu, no meio da sua propalada amizade e vontade de democratização, foi meramente uma versão ancestral da luta pelo poder e do brutal ressentimento a que essa luta conduz. Na modernidade vemos, afinal, o carácter mais básico do ser humano. E não há nada de mais paradoxal do que uma invenção que não muda nada. Digo eu, que escrevo isto enquanto vou dando uma olhada ao meu Facebook.
07 novembro 2010
Hong Kong Fora de Horas

Mais do que um filme de acção – que só explode verdadeiramente na última cena – PTU é uma sucessão de deambulações, encontros, desencontros e cruzamentos na selva urbana deserta da madrugada, que o cineasta filma com desenvoltura, com o tradicional cuidado na gestão das diferentes tensões, com belos exemplos de mise en scène em profundidade de campo e com a capacidade, muito típica de Hong Kong, de desenvolver uma narrativa inteira com personagens de pouca densidade, todas definidas em traço grosso nos primeiros 20 minutos de filme. To é um extraordinário utilizador dos meios e da indústria de Hong Kong, conseguindo a um tempo inserir os seus filmes num género perfeitamente definido (o cinema de acção baseado no binómio polícia/tríades) e transcendê-lo completamente. Neste filme, para o fazer, conta com dois aliados particulares: o seu precioso sentido de enquadramento, que coloca em cada frame um sentido de perturbação que ajuda flagrantemente ao ambiente de pesadelo que o realizador procura; e um belíssimo aproveitamento das iluminações cromáticas, desde os tons de vermelho em momentos de violência, os amarelos e dourados perante figuras ou situações de poder e o retrato da urbe numa alternância de tons de preto ou de branco berrante em piscinas de luz, um pouco à maneira do que Robert Siodmak fez em The Killers (1946). Sobretudo, mais do que uma história simples, Johnnie To filma um mundo em que, polícias ou ladrões, toda a gente luta é para safar o próprio coiro, não olhando a meios para o fazer – genial a sequência do “interrogatório” no salão de jogos -, abdicando sagazmente de tomar partido por qualquer das partes interessadas. Infelizmente, esta overdose de estilo sem heróis a que o público se possa agarrar não fez muito pela carreira do cineasta, que desde 2001 tem tido progressivamente mais dificuldade em montar os seus projectos. É o preço do brilhantismo.

Por último, destaque para a belíssima companhia de actores que vemos em quase todos os filmes de To em papéis que correspondem, sem tirar nem pôr, aos tipos que interpretam noutros filmes: o belíssimo Lam Suet, sempre alguém com o seu quê de ridículo, a autoridade natural de Simon Yam ou a obesidade de Tian-lin Yang, que faz dele um óptimo chefe de uma tríade, ajudam o espectador já iniciado a entrar nas obras subsequentes de um universo que, nas suas relações estilísticas e temáticas, se alimenta de si mesmo.
Cintra Ferreira RIP

Nunca o conheci. Cruzei-me com ele várias vezes em visionamentos, ele um dos consagrados que toda a gente conhecia, eu um puto que toda a gente olhava de lado, como que interrogando o que raio faria ali. Homem que falava alto, tinha também um visual muito próprio, onde as vestimentas discretas coincidiam com um boné dificil de ignorar e com um daqueles patuscos cordéis a prender os óculos às orelhas. Por trás de tudo isto estava um dos mais sábios críticos da nossa praça, alguém com um conhecimento absolutamente impressionante do cinema (sobretudo dos anos clássicos americanos) e que, em boa verdade, já não tinha na imprensa portuguesa um espaço que o valorizasse. É, depois de Bénard da Costa, o segundo crítico de valor que perdemos em 2 anos de uma geração que ainda fará muita falta e que dificilmente terá substitutos à altura. Felizmente, ainda guardo dele muitas folhas da Cinemateca que muito me ensinaram ao longo dos anos. Cá ficarão, a amarelecer, sabendo que, como de costume, sobreviveram ao homem que as escreveu.
31 outubro 2010
Tempestades Interiores

The Ice Storm (1997) é muito provavelmente o seu melhor filme. Passado durante o feriado de Acção de Graças em 1973, em pleno desencanto do escândalo Watergate (The president really was a crook), a narrativa acompanha duas famílias de vizinhos em pleno processo de desagregação. Numa, a dos magníficos Kevin Kline e Joan Allen, o divórcio aproxima-se a passos largos com um pai adúltero e uma mãe que rouba em lojas; na outra, com Sigourney Weaver em modo hippie envelhecida, essa hipótese já nem é colocada, por mero comodismo. O escape reside no sexo (as personagens de Kline e Weaver estão envolvidos; um dos clímaxes do filme passa-se numa festa de troca de casais), álcool e outras emoções furtivas. Em cenários no futurismo típico dos anos 70, os filhos começam a seguir as pisadas dos pais, dedicando-se ao consumo de drogas e começando a experimentar com a sexualidade. Em ambos, nota-se um sintoma preocupante: aquilo que era suposto servir de escape, permitir o divertimento, expandir a consciência, já nem paliativo consegue ser. A rotina sucede-se, o vazio prolonga-se e antecipa uma tragédia que, no menos subtil dos aspectos do filme, ganha forma na tempestade que lhe dá nome.
Filme sobre a decadência moral da small town americana e sobre o desencanto gerado pela era Nixon (brilhante a cena pseudo-coital em que Christina Ricci enverga uma máscara do presidente), The Ice Storm não é apenas um filme belissimamente filmado, ultrapassando de forma metafórica o kitsch da sua época num cromatismo cinzento e monocórdio e filmado num classicismo destro e loquaz. É, sobretudo, uma enorme re-apropriação e transformação de uma tradição cinematográfica de exaltação dos valores dos pequenos núcleos proto-urbanos, que de guardiões da pureza moral se transformam nos locais onde a corrupção moral e a depressão generalizada se manifestam com mais força. O que, por sua vez, demonstra a grande virtude de Ang Lee no contexto cinematográfico actual: longe de mero artesão capaz de cumprir orçamentos e horários de rodagem, quanto mais de um qualquer case study de aculturação, Lee é um extraordinário caso de adaptação ao material que lhe é dado e tremendamente eficaz no modo como quase sempre encontra o tom certo para passar uma ideia cuja transmissão alguém nele delega. Nos tempos que correm, isso é algo de inestimável.
24 outubro 2010
Boston, Massachussetts

The Town, segunda longa-metragem de Ben Affleck, centra-se na tradição das quadrilhas de assalto a bancos originárias do bairro de Charlestown e surpreende pela qualidade demonstrada pelo actor na realização, com câmara segura, capacidade de levar com segurança a narrativa de um ponto ao outro e, sobretudo, talento na definição do ambiente citadino, na criteriosa utilização da geografia da cidade e na explicitação de um código de conduta assente em valores familiares (filiais ou afectivos) baseado na lealdade. Ben Affleck filma bem, na tradição pragmática de um certo cinema de acção que podemos remeter tanto para Eastwood como, por exemplo, para um Don Siegel.
No entanto, The Town não me deixou tão satisfeito quanto gostaria. Falta ainda a Affleck a capacidade de transcender este sólido material (afinal de contas uma típica história de heist movie sobre um assaltante que conhece uma mulher e por ela quer mudar de vida) em algo de superior, em mais do que um filme que se vê bem mas que muito dificilmente perdura na mente do espectador. Que se inspire, por exemplo, no trajecto de Eastwood (que de actor de recursos limitados palmilhou até se tornar num dos grandes cineastas do seu tempo), que aproveite as portas que a fama lhe abre (o elenco de luxo contas com as participações do magnífico Jon Hamm e da belíssima Rebeca Hall) e pode ser que venhamos a ter cineasta.
18 outubro 2010
O único dia fácil foi ontem

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Kinatay é um diamante em bruto. Lola é um diamante laminado, um futuro dvd pronto a caucionar as estantes de muita gente que nem com luvas de pelica seria vista a tocar em Kinatay. Apaixonei-me por ele num momento simples mas suficientemente sublinhado para ser de imediato visto como essencial: a velhinha Sepa, num cenário cinzento e ventoso, tenta acender um, dois, três, seis, oito fósforos, todos de imediato apagados pela intempérie, até conseguir acender uma vela em nome do neto assassinado naquele local na noite anterior. Uma vela que o mesmo vento, provavelmente se encarregará de apagar poucos minutos depois. Numa Manilla em que a vida é um gigantesco PEC, chegando ao ponto de algumas ruas terem de ser percorridas de barco devido às monções, duas avós digladiam-se surdamente em prol dos netos, um assassino outro assassinado, num duelo de perseveranças que se saldará num honroso empate. Contido, seco, não perdendo jamais o controlo do seu frágil equilíbrio sentimental, reinventa o melodrama, sublimando-o em dois pólos inesperados. De um lado, mostrando-nos as avós perdidas num estranho labirinto jurídico, onde ninguém quer saber delas ou daquele caso e onde uma palavra da cunha certa leva mais longe do que qualquer requerimento. Do outro, é um filme muito mais “etnográfico” do que Kinatay (que se passava num não-lugar, uma mansão da morte onde as prostitutas vão para ser retalhadas), onde se consegue encontrar, a um tempo, cenários de repressão (a omnipresença da violência policial) e momentos de generosidade única (genial a sequência em que a lola enlutada percorre de barco o seu bairro e recebe os donativos dos vizinhos para a organização do funeral). Se, como um dia me disse alguém que agora não vem ao caso, o cinema é a única arte que consegue mostrar os locais do mundo (a literatura, em toda a sua infinita possibilidade, só os consegue evocar), Lola vive da respiração de uma cidade, do exacto local em que uma cultura e a necessidade de sobrevivência se encontram. Até agora, não vi melhor filme em 2010.
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No final de cada um dos filmes, há um retorno à normalidade que não pode deixar de parecer estranho. Pepping, ainda abananado, passa a ter como maior problema o furo no pneu do táxi que o leva a casa, onde o esperam a esposa e o filho recém-nascido. As duas avós vão à vida delas, cada uma para seu lado, onde as esperam outros problemas e outras tarefas. Se há algo de tão fútil como uma mensagem, tanto em Kinatay quanto em Lola, ela é de que suja-se as mãos o quanto for preciso na esperança de que o dia de amanhã seja mais fácil. O problema é que o único dia fácil foi ontem.
10 outubro 2010
A vida de Bob

Comparado com a experiência retratada em Raining Stones (1993) de Ken Loach, o retrato em cima é de um tempo paradisíaco. Até porque nesta periferia de Manchester, a ambição há muito que desapareceu, inclusivamente da própria textura daquela sociedade. É talvez demasiado ilustrativo o momento em que o veterano inglês põe na boca de uma personagem que olha para dois jovens a frase “só lhes resta drogas, álcool e desespero”. Mas, retratando o desemprego biscateiro que surge dos escombros do Tatcherismo, nos anos perdidos de John Major, antes da revolução globalizante de Tony Blair, é difícil não ver neste filme, o maior sucesso de Loach em muitos anos, um poderoso efeito de verdade. Não é uma questão estética; antes uma profunda ligação de Loach a uma camada social e a uma paisagem específicas, como se fosse um acto de amor mostrar as vítimas de um dos mais poderosos apartheids sociais. Por outras palavras, é como se houvesse uma ligação tão forte que o cineasta pode perfeitamente dar-se ao luxo de ser pouco imaginativo sem que o filme sofra com isso.
E Raining Stones, ainda que superlativamente filmado, num estilo quase documental e com um excelente trabalho de câmara, é do menos imaginativo que pode haver, numa tradição de cinema social quase anacrónica. Numa altura em que Mike Leigh extravasava todos os limites do realismo com Naked (1993), Loach embrenhava-se neles, filmando com segurança e conhecimento de causa. Um daqueles filmes em que a falta de imaginação é uma virtude pois, por um improvável golpe de asa, a acumulação episódica de que o filme faz método até à meia hora final em algum momento o enfraquece. Na sucessão de episódios em que Bob (maravilhoso Bruce Jones) é humilhado (desde ser despedido de uma bar, na sua primeira noite, por fazer o seu trabalho a levar com um jacto de esgoto que limpava pro bono) surgem desde momentos de humor delicioso (o roubo da relva do clube conservador local) e momentos francamente comoventes (o enorme Ricky Tomlinson, da hoje esquecida série The Royle Family, a chorar depois de aceitar dinheiro da filha), subjaz essencialmente uma ideia: a da necessidade de manutenção da dignidade humana, assente em valores como a perseverança e a solidariedade. O que colmata as limitações estéticas derivadas talvez de um entendimento demasiado curto das possibilidades e funções do realismo britânico.
Apesar de tudo, existe um fio narrativo em Raining Stones e que, na sua ambiguidade, acaba por ser a sua maior vitória. Afinal de contas, no período da vida de Bob que acompanhamos, tudo gira à volta da sua vontade de propiciar à filha uma primeira comunhão digna, com caros vestido e sapatos novos. Não abandonando nunca um ponto de vista socialista (no placard da associação de condóminos lê-se “Is there a socialist alternative in England today?”), há uma ideia do fenómeno religioso que avança do respeitoso (a personagem que fala do ópio do povo é uma mera nota de rodapé, o catolicismo de Bob permanece inalterado e nunca é julgado) ao francamente solidário. No limite, avanço dizer que o retrato do padre e da forma como, contra pelo menos as leis de César, redime Bob e lhe dá um novo começo, podendo ser entendida como calculismo da parte de um autor que muitos apelidam de simplista, é prova de uma maior complexidade do que à partida seria de esperar, quase se sentindo a simpatia do cineasta por aquele padre pragmático e lúcido. E é, ao mesmo tempo, uma singular demonstração de uma condição muito peculiar ao desemprego: a maneira como, simultaneamente, estamos completamente sozinhos e, de certo modo, algo dependentes da comunidade. Bob salva-se precisamente por essa forte ligação à comunidade. O que acontece aos que não a têm?
Raining Stones é o melhor filme que vi de Ken Loach (também, valha a verdade, não vi muitos), um objecto marcante nos anos 90 e uma demonstração superlativa de realismo social(ista), equilibrando sabiamente o pessoal e o político. E um filme que importa ver no Portugal de hoje.
05 outubro 2010
Muito cá de casa (II): a Notorious necessidade de Cinema na RTP2
A Notorious necessidade de Cinema na RTP2 from Miguel Domingues on Vimeo.
30 setembro 2010
29 setembro 2010
Sobre Lisboa nos filmes
Para quando um filme desses?
26 setembro 2010
How Hard You Can Get Hit
Nesse processo, conquista-nos? Absolutamente. Rocky Balboa é um imenso soco emocional, uma obra que faz arte de lamber as feridas e que nos reconcilia com uma personagem que em tempos adorámos mas que com o tempo passámos a ver apenas como um bronco com o tronco em V e uns calções demasiados patrióticos.
30 anos depois, encontramos Rocky como dono de um restaurante e que passa os seus dias como contador de histórias de boxe aos seus comensais, relembrando o que fez a Ivan Drago, àquele senhor das correntes de ouro e ao outro que agora faz filmes série-b. Numa parte de Filadélfia que provavelmente nunca saiu da crise, tenta ajudar uma mãe solteira e o seu filho proto-problemático e vai passando o tempo por entre memórias de Adrian, entretanto falecida (há uma belíssima sequência de um périplo quase sacro de Rocky aos lugares que lhe lembram a esposa) e tenta lidar com um filho que não aguenta a sua filiação, sentindo-se esmagado pela lembrança da glória do pai. Até que um combate virtual num programa desportivo entre Balboa e o campeão da época (imaginativamente nomeado Mason “The Line” Dixon) lhe dá a ideia de regressar, para um último combate, precisamente com o novo campeão.
O que se segue é uma glosa do primeiro filme, voltando a premir todos os botões que o primeiro premiu: a crença em si mesmo, a necessidade de sofrimento necessária ao sucesso, a possibilidade de ver vitórias mesmo nas derrotas – pormenor nada despiciendo, a vitória de Rocky neste filme também é conseguir aguentar o combate até ao fim, aquilo que ganhava o primeiro filme – e dois discursos verdadeiramente notáveis (ver os clips), que mostram que Stallone tem um notável talento para a escrita. Nada de novo, até tudo bastante cínico na utilização de uma receita já experimentada. Mas é impossível para quem cresceu com a personagem (lembro-me de pedir autorização aos meus pais para ficar acordado até mais tarde para o ver derrotar Mr. T) não se sentir verdadeiramente emocionado com este filme. Pode ser que a história de redenção, quando minimamente bem feita (são notórias as limitações de Stallone enquanto realizador, por exemplo, na forma como abusa de filtros de imagem e na montagem algo tosca do filme) seja imbatível. Ou pode ser que Stallone seja um daqueles sacanas encantadores, em cuja mudança acreditamos sempre (podia ter escrito este texto a propósito de Copland, feito já há 13 anos) mas que, no fundo, sabemos que nos enganava de novo se pudesse – o que só nos faz gostar mais dele.
Para o bem e para o mal, Rocky Balboa foi o filme do meu Verão de 2010.
Balanço
21 setembro 2010
Shaw Bros: Uma introdução à Hollywood Chinesa

No início do ano, a redacção virtual da Take escolheu Kill Bill como o filme da década. Altura perfeita para uma pequena introdução à história e ao trabalho dos estúdios Shaw Bros, glorioso império cinematográfico que marcou indelevelmente a história do cinema nos anos 60 e 70.

Em 2003, Quentin Tarantino anunciou que o seu próximo filme seria uma homenagem às produções de artes marciais do estúdio Shaw Bros. Assim nasceu Kill Bill, cujo primeiro tomo é um ersatz da Shaw e em cujo segundo tomo é recuperada uma das principais personagens do estúdio, o mestre Pai Mei. Pese embora a beleza e a utilidade da homenagem, Kill Bill nada fez pelo conhecimento ou pelo nome da companhia chinesa no Ocidente. Como sempre acontece no universo de Quentin Tarantino, a referência, mais do que gerar curiosidade e potenciar a descoberta, acaba por ser absorvida pelo universo do seu criador, tornando-se parte dele, num movimento que, paradoxalmente, até contribui para tornar irrelevante a mesma homenagem que pretende prestar. Assim, tanto quanto por curiosidade cinéfila quanto pela importância do estúdio e pela qualidade de algumas das obras por si produzidas, importa conhecer um pouco mais da história de uma instituição marcante no panorama asiático do seu tempo.

O INÍCIO
Como o próprio nome indica, os estúdios da Shaw Bros começaram enquanto empresa familiar. A família Shaw começou a sua carreira no mundo do espectáculo nos anos 20, através da fundação da Tianyi, produtora associada a algum conservadorismo, a dramas históricos e filmes de fantasia e artes marciais. Em competição com outra companhia da época, dois dos irmãos foram mandados para o Sudeste Asiático para explorar os mercados, nomeadamente junto de mercadores e trabalhadores de plantações, facilmente atraídos pelos enredos simplistas dos filmes da Tianyi. Este mercado viria a decair no final dos anos 20 mas já em 1924 a empresa passa a operar a partir de Singapura, quando os fundadores passam a distribuir os filmes da United Artists de Chaplin, Fairbainks e Pickford e criam uma rede de parques de diversão e cinemas. Quando se dá a crise dos anos 30, os gestores da empresa compram vários cinemas falidos e equipam-nos para o cinema sonoro. Esse equipamento é confiscado pelo exército japonês aquando das invasões nos anos 40 e os fundadores da companhia refugiam-se em Hong Kong, onde não apenas encontram protecção do Império Japonês como, futuramente, também dos nacionalistas chineses do Kuomintang e do comunismo que se lhe segue. No imediato pós-guerra beneficiam de um contexto rico de criatividade, diferente do ambiente na China Continental, onde o cinema passou a estar totalmente controlado pelo Partido Comunista Chinês e onde filmes de artes marciais e outras “superstições” foram banidos até começar o período de reforma no final dos anos 70. Com financiamento vindo do jogo e da prostituição, asseguram os direitos de exibição de diversos filmes americanos e pelo início dos anos 50, conseguem recuperar as salas que haviam perdido durante a Guerra nas comunidades de chineses ultramarinos e de Hong Kong, mas não na “Mainland”, onde todos os estúdios foram nacionalizados. Contudo, foi apenas em 1957 que os irmãos Run Run e Rumne Shaw, instruídos no Ocidente e dois dos homens mais ricos do mundo, percebendo a desvantagem em que estavam face a diversas outras companhias, nomeadamente de Hong Kong, começaram a dedicar-se também à produção. A companhia que daí nasceu foi a Shaw Brothers.

A IDADE DE OURO (1957 – 1970)
Depois de uma série de filmes históricos, baseados em óperas chinesas, que geram os primeiros sucessos de bilheteira, entre os quais se destaca The Kingdom and the Beauty (Han Hsiang Li, 1959), em 1961 termina a construção do estúdio Movietown, localizado no enclave de Kowloon, na China Continental, com uma equipa de 1500 pessoas e capacidade para rodar até sete filmes em simultâneo. Em breve seguir-se-ão os estúdios de Kuala Lumpur e de Singapura. A produção passa a basear-se no modelo hollywoodiano, procurando trazer, quase sempre de Hong Kong, toda a qualidade técnica que o dinheiro possa comprar e, ao mesmo tempo, impor a centralização e a sistematização da produção de filmes, tornando o produto final mais barato e formalmente mais competente. Chegados a meados da década de 60, a Shaw Brothers possuía 127 cinemas um pouco por todo o Sudeste Asiático, três estúdios com aura de Hollywood antiga (por alguma razão o logótipo da Shaw se assemelha ao símbolo inicial da Warner Bros), diversos parques de diversão e uma produção que se situava entre os 30 e os 40 filmes por ano, num total de cerca de 300 filmes nos primeiros 12 anos de actividade. No que concerne aos realizadores, actores e equipa técnica, havia uma política de contratos ferozmente negociados, que incluíam 4 a seis filmes por ano, um salário mensal fixo e um bónus consoante os resultados de cada filme. Muitos dos actores viviam nos dormitórios nos estúdios e tinham percursos delimitados consoante o género. Assim, um homem, normalmente com experiência enquanto duplo ou na ópera chinesa, entrava na escola de representação da Shaw aos 18 anos e conseguia obter papéis principais até perto dos 35 anos, altura em que poderia sair ou ficar como actor secundário. Já grande parte das mulheres era contratada através de audições gigantes ou através de anúncios nos jornais e saia por volta dos 25 anos para casar, sendo poucas as personagens femininas com mais idade nas obras da companhia. A remuneração, para actuantes como para criativos, era pequena: um argumentista ganhava cerca de 1250 dólares HK por filme e um realizador cerca de 3000. Por último, a carga de trabalho imposta aos participantes era imensa: os horários ascendiam a 16 horas diárias e era comum que todos os intervenientes fizessem dois filmes em simultâneo. Tamanha conjugação de estrutura com rigor e disciplina na organização das equipas e com o talento angariado permitiu à companhia a um tempo dotar os filmes de meios de produção e, apesar de tudo, torná-los lucrativos. Falados em Mandarim e não em cantonês, como a maioria dos filmes produzidos em Hong Kong no mesmo período, os filmes conseguiram penetrar os mercados de Singapura e Taiwan, onde a língua também é falada. Como tal, os lucros de bilheteira permitiam que os filmes seguintes fossem ainda mais confortáveis em termos de orçamento, normalmente situado entre os 300 mil e os 800 mil dólares HK, muito acima da média de 20 mil dólares HK que custava a produzir um filme cantonês.

Depois de um início baseado em filmes históricos como o já referido The Kingdom and the Beauty e musicais como The Love Eterne (Han Hsiang Li, 1961), que rapidamente atingiram, segundo diversos historiadores, a monotonia, a Shaw Bros revitalizou o panorama do cinema asiático através da transposição cinematográfica de um género literário que ainda hoje perdura – o wuxia, que redutoramente pode ser chamado de “romance de artes marciais”. Ainda que os filmes não fossem estritamente adaptações literárias, mantinham a mesma estrutura, misto de artes marciais, melodrama, tratamento de códigos de honra e aproveitamento da mitologia chinesa. Seguindo o método de capitalizar em tudo aquilo que se mostrasse comercialmente bem-sucedido, The One-Armed Swordsman (Chang Cheh, 1967 – o título é auto-explicativo) inaugura uma fase em que são filmadas histórias uni-dimensionais, com enredos típicos e muito semelhantes entre si, normalmente acerca de um estranho vindo do campo que chega à grande cidade para ou vingar um ente querido ou para mudar o statu quo através das suas capacidades técnicas e da sua sede de riqueza, trazendo sempre justiça a uma situação desequilibrada. Distinguem-se igualmente pelo lado social evidente ainda que simplista mas onde impera uma claridade moral: o pobre justo ascende à riqueza derrotando o rico ímpio e patriarcal, muitas vezes morrendo no processo. Rodados em sumptuosos cenários de estúdio ou nos backlots dos estúdios da companhia, são filmes que podem ir de uma enorme qualidade técnica e formal a exemplos de “skid row cinema”, deliciosamente xungas e com pontas no argumento atadas através de voice-over, misturando violência estilizada e ballet marcial com momentos de sentimentalismo, num todo por vezes precário e por vezes recompensador.
OS REALIZADORES

De entre os realizadores pertencentes aos quadros da Shaw Bros, um ganha especial destaque: Chang Cheh. Mais popular e mais bem-sucedido realizador de sempre no género wuxia, foi o realizador do seminal The One-Armed Swordsman (1967), primeiro filme a ultrapassar o milhão de dólares HK nas bilheteiras. Com cenas de luta influenciadas por técnicas de combate japonesas, tinha como principal objectivo tornar a acção dos seus filmes o mais realista possível. Para tal, era frequente o uso de sangue nos seus combates e a existência de armas feitas de metal e, contrariamente ao que algumas produções de filmes de kung fu faziam nos anos 50, coreografava abundantemente as suas lutas. A sua estética era então, verosímil, ao que juntava, nos seus filmes, relações filiais e conflitos geracionais com que a audiência dos anos 60 e 70 se podia identificar. Com mais de 100 filmes no currículo, cristalizou também o motivo do forasteiro campestre que chegava à cidade ou para vingar ou para perseguir sonhos de riqueza, conseguindo os seus objectivos mas morrendo de caminho. Tecnicamente virtuoso, teve como assistente de realização um jovem John Woo e é possível ver a sua influência não apenas na montagem virulenta como também, por exemplo, no tiroteio inicial de Hard Boiled (1992), num café preenchido por gaiolas de pássaros. É o grande esteta do Wuxia cinematográfico.

Anterior a Chang Cheh, King Hu realizou o fundamental Come Drink With Me (1965), dos primeiros grandes sucessos de wuxia da Shaw Bros. Fundindo estilos ocidentais e orientais de realização, criou uma abordagem inovadora ao cinema de artes marciais que ainda hoje perdura. Estudante de ópera chinesa, desenvolveu uma estética única baseada na pintura, literatura e teatro do Império do Meio. Sem ser especialista em filmar cenas de luta, conseguia no entanto adaptar movimentos fluidos a uma montagem construtiva. Um dos seus truques era tornar a luta o mais rápida e o mais afastada possível do primeiro plano, disfarçando assim quaisquer defeitos existentes. Outro era, quando pretendia insuflar de sentimento épico as paisagens que filmava, dar apenas um muito rápido plano de conjunto, que assim perdurava e era engrandecido pela imaginação do espectador. Teve na sua equipa, como assistente de realização, um jovem Ang Lee, que o homenageou em O Tigre e o Dragão (1999), inspirado no importantíssimo A Touch of Zen (1969). Por contraponto à ideia de realismo professada por Chang Cheh, era um fantasista, situando quase sempre os seus filmes nos mitos da antiguidade chinesa.
O FIM

Tempos houve em que o cinema de kung fu era muito visto e apreciado no Ocidente. Em salas de bairro, de puro ambiente “grindhouse”, perante o niilismo do policial de inícios de 70 (filmes como Dirty Harry ou Madigan, ambos de Don Siegel) ou antes do assumido pendor artístico dos movie brats, estes filmes proporcionavam ao espectador momentos de espectacularidade nas suas lutas, de violência catártica e uma claridade moral, ancorada no maniqueísmo das personagens que davam uma ideia de um todo simples e exótico. Contudo, paradoxalmente, se os filmes da Shaw Bros foram muito vistos no Ocidente à época, não foi este o estúdio que mais lucrou com a febre do cinema de artes marciais. Tal posto pertence à Golden Harvest, formada pelo dissidente da produtora Raymond Chow e que revelou ao mundo Bruce Lee, com os seus filmes de torneio e que haveria de, com a sua morte precoce, tornar-se o único mártir deste género cinematográfico, bem como, a partir da década de 80, a Nova Vaga da acção de Hong Kong, com uma grande componente de comédia, protagonizada acima de todos por Jackie Chan e Sammo Hung. Por todos estes factores, bem como por um certo cansaço do género (até a vedeta David Chiang disse, em meados de 70, querer afastar-se da pancadaria para se dedicar a outros temas) e pela transformação dos mercados orientais, mais permeáveis aos filmes ocidentais, a Shaw Bros perdeu o seu estatuto de Hollywood chinesa e hoje sobrevive apenas como produtora e distribuidora de vídeo, conteúdos informáticos e televisão. O seu espólio, no entanto, permanece riquíssimo e está a ser lançado em dvd (disponível, frequentemente a baixo preço, na cadeia de lojas FNAC) e, mesmo que apenas através da interposta pessoa de Quentin Tarantino, faz já parte do imaginário colectivo de uma geração. No Oriente como no Ocidente, o tempo de grandes estúdios funcionando como linhas de montagem já terminou.
E os filmes? Não se fala especificamente de Vengence (a obra-prima de Chang Cheh, 1970), de A Touch of Zen ou de The 36th Chamber of Shaolin (Chia Liang-Liu, 1978)? Não; a porta está aberta. Resta ao leitor, através do dvd ou das maravilhas da Internet, entrar por ela.
