31 dezembro 2009
29 dezembro 2009
O que realmente importa em "Avatar"...
.. é saber que ainda haverá quem fume no ano 2154. Tudo o resto é dispensável.
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James Cameron
22 dezembro 2009
Notas da ´teca (7)
No final dos anos 30, mercê de diversos problemas com os estúdios ao longo da década e que injustamente apagaram, na cabeça dos produtores, os muitos sucessos anteriores, King Vidor não tinha a vida facilitada. Felizmente, The Citadel (1938) inverteu a situação e permitiu a existência do belíssimo mas complexo The Northwest Passage (1940), adaptação da primeira parte do à época famoso romance homónimo de Kenneth Roberts. Superprodução em technicolor onde a grandiosidade do cinema de Vidor podia brilhar em toda a amplitude, acabou por sofrer limitações por parte da MGM, preocupada com o custo galopante da obra, e não só não repetiu o sucesso da obra anterior como voltou a lançar Vidor numa travessia do deserto, não filmando entre 1941 e 1944.
Idealmente, esta história da conquista do território americano a índios e franceses estava pensada para servir de incitação patriótica ao público norte-americano em vésperas do início da participação na Segunda Guerra Mundial. Contudo, é um filme ideologicamente complexo, a que muitos apelidaram de fascista, sobretudo pela personagem carismaticamente desempenhada por Spencer Tracy. É certo que o Major Robert Rogers tem, na sua devoção total ao brio e ao método militar bem como, e sobretudo, na maneira como vê e mata índios, muitos aspectos totalitários e até fascistas. Contudo, o filme equilibra essa componente através das demonstrações de respeito e interesse que Rogers tem pelos seus homens, bem como pela tónica nas dificuldades por que passavam aqueles homens (sempre vistos como heróis), que forçavam a existência de atitudes menos correctas mesmo vindas de pessoas de moral acima de qualquer suspeita. Essencialmente, concordo com a opinião de João Bénard da Costa na respectiva folha da Cinemateca (de onde são, aliás, retirados os dados históricos citados no início): mais do que ideologia, que pode ser vista aqui, deve-se ver realismo, sobretudo na violenta sequência da destruição da aldeia índia. Ninguém disse que durante a construção de um país não se sujam as mãos.
Curioso é que no meio das acusações de fascismo, um pormenor tenha sido esquecido: com a acção situada antes da Revolução Americana, apenas no início, e à laia de McGuffin, há a contestação ao Império Britânico. De resto, até há planos em que a Union Jack voa ao vento de forma muito conspícua. Se Vidor põe de lado o ímpeto anti-imperialista no retrato da vida colonial da América, então está definitivamente provado que o interesse era retratar e não politizar.
O que, por sua vez, se estende à componente estética. Do mesmo modo que a personagem de Robert Young pretende ser um pintor na senda de Rubens ou Velasquez (e é difícil não ver a influência deste último na construção geométrica do encontro de Young com a família da sua amada), interessa a Vidor pintar uma paisagem e povoá-la com um povo. Como em Man Without a Star (1955) e, obviamente, Duel in The Sun (1946), o que aqui vemos é uma visão ideal, pictoricamente estilizada através do technicolor, da paisagem norte-americana e da interacção das personagens com ela (note-se a magnífica sequencia em que é a corrente humana que permite combater a corrente de um rio), não se coibindo mesmo, no final do filme, de exaltar em monólogo as virtudes do território americano. Mais perto de Ford do que de Hawks, Vidor mantém aqui a sua componente de cineasta telúrico, talvez mesmo o maior de todos.
Idealmente, esta história da conquista do território americano a índios e franceses estava pensada para servir de incitação patriótica ao público norte-americano em vésperas do início da participação na Segunda Guerra Mundial. Contudo, é um filme ideologicamente complexo, a que muitos apelidaram de fascista, sobretudo pela personagem carismaticamente desempenhada por Spencer Tracy. É certo que o Major Robert Rogers tem, na sua devoção total ao brio e ao método militar bem como, e sobretudo, na maneira como vê e mata índios, muitos aspectos totalitários e até fascistas. Contudo, o filme equilibra essa componente através das demonstrações de respeito e interesse que Rogers tem pelos seus homens, bem como pela tónica nas dificuldades por que passavam aqueles homens (sempre vistos como heróis), que forçavam a existência de atitudes menos correctas mesmo vindas de pessoas de moral acima de qualquer suspeita. Essencialmente, concordo com a opinião de João Bénard da Costa na respectiva folha da Cinemateca (de onde são, aliás, retirados os dados históricos citados no início): mais do que ideologia, que pode ser vista aqui, deve-se ver realismo, sobretudo na violenta sequência da destruição da aldeia índia. Ninguém disse que durante a construção de um país não se sujam as mãos.
Curioso é que no meio das acusações de fascismo, um pormenor tenha sido esquecido: com a acção situada antes da Revolução Americana, apenas no início, e à laia de McGuffin, há a contestação ao Império Britânico. De resto, até há planos em que a Union Jack voa ao vento de forma muito conspícua. Se Vidor põe de lado o ímpeto anti-imperialista no retrato da vida colonial da América, então está definitivamente provado que o interesse era retratar e não politizar.
O que, por sua vez, se estende à componente estética. Do mesmo modo que a personagem de Robert Young pretende ser um pintor na senda de Rubens ou Velasquez (e é difícil não ver a influência deste último na construção geométrica do encontro de Young com a família da sua amada), interessa a Vidor pintar uma paisagem e povoá-la com um povo. Como em Man Without a Star (1955) e, obviamente, Duel in The Sun (1946), o que aqui vemos é uma visão ideal, pictoricamente estilizada através do technicolor, da paisagem norte-americana e da interacção das personagens com ela (note-se a magnífica sequencia em que é a corrente humana que permite combater a corrente de um rio), não se coibindo mesmo, no final do filme, de exaltar em monólogo as virtudes do território americano. Mais perto de Ford do que de Hawks, Vidor mantém aqui a sua componente de cineasta telúrico, talvez mesmo o maior de todos.
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Notas da 'teca
21 dezembro 2009
A década
01 - Lost in Translation
02 - A Última Hora
03 - 2046
04 - Million Dollar Baby
05 - Kill Bill vol. 2
06 - Gran Torino
07 - Munique
08 - Saraband
09 - Juventude em Marcha
10 - O Caimão
02 - A Última Hora
03 - 2046
04 - Million Dollar Baby
05 - Kill Bill vol. 2
06 - Gran Torino
07 - Munique
08 - Saraband
09 - Juventude em Marcha
10 - O Caimão
19 dezembro 2009
13 dezembro 2009
09 dezembro 2009
A banda da década?
You don´t need to find answers/ to questions never asked of you
in “Two More Years”
We promised the world we’d tame it/ What were we hopping for?
in “Pioneers”
in “Two More Years”
We promised the world we’d tame it/ What were we hopping for?
in “Pioneers”
Musicalmente, a década que agora finda foi extremamente proveitosa. O rock rejuvenesceu, através dos Strokes, White Stripes, Queens of the Stone Age, Interpol, Yeah Yeah Yeahs e muitos outros. A electrónica deu-nos muitos e bons nomes, mas basta citar LCD Soundsystem para a década estar ganha. Arcade Fire, The National e Antony and the Johnsons foram profunda fonte de catarse. Na pop, o lado arty dos Franz Ferdinand conjugou-se na perfeição com o caleidoscópio dos MGMT e com a desbocada Lily Allen. Em Portugal, discos de Old Jerusalem, Humanos, Linda Martini, os fantásticos Golpes e os sobrevalorizados Pontos Negros dão esperança no futuro. Mas qual foi a banda que melhor capturou o aspecto humano contra e dentro do zeitgeist? A resposta, para mim, só pode ser uma: Bloc Party.
É certo que todos os nomes internacionais atrás referidos são, esteticamente, muito melhores que os Bloc Party. É igualmente certo que são musicalmente limitados. E é indiscutível que o seu percurso tem sido a pique, descendendo da estreia Silent Alarm (2005) para o seguinte A Weekend in the City (2006) e ainda mais com o terceiro Intimacy (2008). Mas os Bloc Party juntam, da forma mais coerente e mais recompensadora, os diversos matizes da vida contemporânea. Banda de canções mais do que de álbuns, neles se pode ver: a energia dos começos ("Little Thoughts"), a espera pelos momentos em que os problemas serão debelados ("Two More Years"), pequenos momentos de declaração amorosa ("So here we are" ou "Sunday"), retratos da vida (sub)urbana ("A Song for Clay" ou "Waiting for the 7 18"), a impotência de quem olha para o mundo virado do avesso e nada consegue fazer ("Pioneers") ou a tristeza pelo fim dos relacionamentos ("Signs"). Por detrás de uma banda aparentemente limitada, esconde-se uma obra bem mais preenchida e sentimentalmente ampla do que parece.
A compor este ramalhete, aparece a construção (a ilusão, se quiserem). Mimetizando o mundo actual, a música dos Bloc Party parece cheia de néons e edifícios de vidros espelhados, de telemóveis topo de gama com acesso ao Facebook e ao Twitter, do crescimento económico normalizador do mundo capitalismo, do bulício nocturno à volta de bares e discotecas onde as pessoas tentam expurgar as suas neuroses e limitações, das madrugadas em que se volta a casa embriagado, com frio e cansado mas com a sensação da catarse feita. Não é que se pareçam connosco (afinal de contas, quantos de nós tocaram em Glastonbury?) mas disfarçam muito bem.
Se os Bloc Party estão a caminho do fim (a falta de qualidade de Intimacy assim o parece indicar), pouco importa. Não terão o futuro que parecem ainda ter os Arcade Fire ou os MGMT, mas isso só parece reforçar o ponto que tento fazer: o de uma música que vive desta década e para esta década como poucas e que, por isso a ela pertence e nela se parece esgotar.
08 dezembro 2009
Maria João Seixas
Já há directora: Maria João Seixas substituirá João Bénard da Costa como directora da Cinemateca. E é uma nomeação que me deixa dividido.
Comecemos pelo fim: Pedro Mexia, de quem temia muito pior, optou pelo low profile e só lhe podemos agradecer. O escritor/poeta/cronista/crítico/blogger/encenador ocasional optou por, pelo menos para fora, pouco ou nada mudar. Fez bem.
Quanto à nova directora, reconheço-lhe longa carreira no jornalismo e algumas excelentes entrevistas que li, sendo provavelmente alguém que, sendo eu próprio um ex-jornalista, gostaria de ter tido como editora ou professora. Espero que a própria se prepare porque, apesar da sua longa carreira, várias "bocas" se seguirão apontando a sua anterior conjugalidade como motivo de escolha.
De resto... o Ministério optou por não escolher ninguém que tenha experiência de facto, prática e teórica, para melhor desempenhar o cargo, incorrendo no mesmo erro em que incorreu quando nomeou Mexia, por acção directa de Bénard da Costa. Com José Manuel Costa ou João Mário Grilo por aí (para não falar num mais velho Alberto Seixas Santos ou, porque não, até num João Lopes ou num Fernando Lopes), resta saber porque persiste esta relutância em trazer os melhores exemplos práticos de uma arte para os campos de decisão e gestão. Será pela ideia de que um artista não consegue cumprir um orçamento? Ou porque, em Portugal, um cineasta é criatura de poucos amigos, sobretudo na política?
Posto isto, pelo carinho que tenho por aquela casa e pelos filmes que ainda lá espero ver, desejo a melhor sorte a Maria João Seixas. Sobretudo, que dê um choque na Cinemateca que a liberta do relativo tédio do "ciclo entra ciclo" sai em que parece estar um pouco presa. e que finalmente instaure outros pólos da instituição não apenas no Porto, mas também noutras partes do país, por exemplo junto às universidades de Coimbra, Algarve e Beira Interior.
04 dezembro 2009
Romance Perigoso
O dia 13 de Setembro de 2008 provocou terramotos nunca vistos depois de 1929. Aconteceu mesmo, depois de muitos avisos ignorados. Hoje, parece já estar tudo normal (exceptuando Bernie Madoff, nenhum dos prevaricadores foi preso, os astronómicos bónus bancários já estão a ser pagos, as bolsas já geram outra vez dinheiro e sobrou apenas uma crise económica que não belisca quem recebeu pára-quedas dourados para arruinar a economia mundial) mas Michael Moore já andava de olho na situação antes do rebentamento. E com o resultante Capitalism: A Love Story assina o seu melhor filme desde a estreia com Roger and Me (1989).
Iniciando o filme com uma óptima montagem comparando a situação dos EUA à queda do Império Romano, o filme avança por uma visão do que era o ideal do capitalismo americano no pós-guerra imediato, até à ofensiva que as empresas norte-americanas fizeram aos direitos laborais e à ocupação de cargos governamentais que redundaram no aumento da desigualdade através do corte de impostos para a minoria abastada. A parte do filme de pendor informativo culmina com o fulminar do sistema em 2008 e é, diga-se de passagem, a parte mais útil do filme. Num contexto mediático dominado pela direita (embora eles digam que não) é com clareza, com números, gráficos de fácil compreensão e numerosos exemplos práticos que Moore explana a evolução da economia mundial e as condições que deram origem à débacle. Este é, então, um filme de rigoroso e relevante pendor informativo e contextualizador, fazendo o trabalho necessário mas que os média mainstream se recusaram, por motivos ideológicos e empresariais, a fazer ao longo dos últimos 30 anos.
Na segunda parte, são dados exemplos de como a crise afectou pessoas concretas e de como esta pode ser debelada. Parte mais interessante do ponto de vista documental, dando uma visão humana dos efeitos e das saídas da crise, é aquele em que os casos são do mais caricatural, desde o economista formado na Ivy League que não consegue explicar o que são derivativos, demonstrando na prática o desnorte do sistema económico ao aviltante momento em que são denunciados os seguros de vida que as empresas fazem aos empregados, ficando com a compensação quando estes morrem. É talvez o momento mais explorador do filme (são visíveis as lágrimas nas faces de alguns dos entrevistados), mas também aquele que retira com mais precisão a economia dos manuais e dos escritórios corporativos. Também é aqui que exemplos de empresas em cooperativa, com partilha simultânea de sacríficio e de lucro, são apontados como possível solução.
Na última, talvez a mais panfletária, Moore apela à desobediência civil, dando exemplos de casos em que, na sua óptica, esta se encontra já a começar. Seria a parte que eventualmente poderia ser acusada de marxista para cima, mas que ganha uma curiosa dimensão quando comparada com o momento inicial: afinal de contas, em nenhum momento se pede um paradigma “esquerdista”, mas sim um regresso ao momento em que o capitalismo se sedimentou e que, na versão do realizador, construiu a América. Este é, então, o filme em que fica claro que a mudança dirige-se, então, no sentido da ética e da partilha entretanto perdidas e não dos amanhãs que cantam.
O que causará decerto muita confusão a muita gente. Mas é o que dá profundidade e conteúdo ao filme. Enquanto muitos se divertiam, ao longo dos anos, a questionar o patriotismo de Moore e a apelidá-lo de leninista de mil maneiras veladas, o que ele aqui mostra é o seu amor pela América, bem como a noção de que, afinal, nem o país se esgota nas corporações nem a magnífica cidade de Nova Iorque acaba em Wall Street. No limite, Michael Moore está mais próximo da Star Spangled Banner que de uma foice e de um martelo e isso causará muita surpresa. A quem andou distraído, claro.
Iniciando o filme com uma óptima montagem comparando a situação dos EUA à queda do Império Romano, o filme avança por uma visão do que era o ideal do capitalismo americano no pós-guerra imediato, até à ofensiva que as empresas norte-americanas fizeram aos direitos laborais e à ocupação de cargos governamentais que redundaram no aumento da desigualdade através do corte de impostos para a minoria abastada. A parte do filme de pendor informativo culmina com o fulminar do sistema em 2008 e é, diga-se de passagem, a parte mais útil do filme. Num contexto mediático dominado pela direita (embora eles digam que não) é com clareza, com números, gráficos de fácil compreensão e numerosos exemplos práticos que Moore explana a evolução da economia mundial e as condições que deram origem à débacle. Este é, então, um filme de rigoroso e relevante pendor informativo e contextualizador, fazendo o trabalho necessário mas que os média mainstream se recusaram, por motivos ideológicos e empresariais, a fazer ao longo dos últimos 30 anos.
Na segunda parte, são dados exemplos de como a crise afectou pessoas concretas e de como esta pode ser debelada. Parte mais interessante do ponto de vista documental, dando uma visão humana dos efeitos e das saídas da crise, é aquele em que os casos são do mais caricatural, desde o economista formado na Ivy League que não consegue explicar o que são derivativos, demonstrando na prática o desnorte do sistema económico ao aviltante momento em que são denunciados os seguros de vida que as empresas fazem aos empregados, ficando com a compensação quando estes morrem. É talvez o momento mais explorador do filme (são visíveis as lágrimas nas faces de alguns dos entrevistados), mas também aquele que retira com mais precisão a economia dos manuais e dos escritórios corporativos. Também é aqui que exemplos de empresas em cooperativa, com partilha simultânea de sacríficio e de lucro, são apontados como possível solução.
Na última, talvez a mais panfletária, Moore apela à desobediência civil, dando exemplos de casos em que, na sua óptica, esta se encontra já a começar. Seria a parte que eventualmente poderia ser acusada de marxista para cima, mas que ganha uma curiosa dimensão quando comparada com o momento inicial: afinal de contas, em nenhum momento se pede um paradigma “esquerdista”, mas sim um regresso ao momento em que o capitalismo se sedimentou e que, na versão do realizador, construiu a América. Este é, então, o filme em que fica claro que a mudança dirige-se, então, no sentido da ética e da partilha entretanto perdidas e não dos amanhãs que cantam.
O que causará decerto muita confusão a muita gente. Mas é o que dá profundidade e conteúdo ao filme. Enquanto muitos se divertiam, ao longo dos anos, a questionar o patriotismo de Moore e a apelidá-lo de leninista de mil maneiras veladas, o que ele aqui mostra é o seu amor pela América, bem como a noção de que, afinal, nem o país se esgota nas corporações nem a magnífica cidade de Nova Iorque acaba em Wall Street. No limite, Michael Moore está mais próximo da Star Spangled Banner que de uma foice e de um martelo e isso causará muita surpresa. A quem andou distraído, claro.
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Michael Moore
01 dezembro 2009
Um marco da cultura nacional
Aqui, saudei o regresso do cinema à RTP2. Passadas duas semanas, regressa esse bastião do pensamento e do engenho nacionais que é o talk-show 5 para a meia-noite. E o cinema? Mas isso interessa a alguém?
26 novembro 2009
Uma segunda morte
Muitas vezes, ao longo da história do cinema, é o projecto da vida de um cineasta aquele que o acaba por colocar numa posição subalterna. Orson Welles nunca mais teve um segundo de sossego depois de Citizen Kane; Martin Scorsese passou as passas do Allgarve depois de Raging Bull; e Brian DePalma falhou genialmente no seu Bonfire of Vanities, sendo hoje injustamente considerado um realizador secundário. Em Francis Ford Coppola nem é preciso ser muito original para se referir os problemas que surgiram após One From the Heart, simultaneamente a nível de credibilidade artística (apesar de Rumble Fish, Peggy Sue Got Married e Bram Stoker’s Dracula) e de capacidade financeira.
Neste contexto, mais do que uma segunda vida, a carreira de Coppola quis recomeçar com Youth Without Youth é, mais do que uma segunda vida, uma segunda morte. Tetro, novo filme do cineasta, história de um família desavinda que pensa avançar em direcção à reconciliação mas que acaba por se afogar no derradeiro abismo, em nada impede a queda, mesmo que não a acentue tanto quanto a obra anterior. Num preto e branco expressionista, a lembrar Rumble Fish (como o lembra a frase "He´s like a genius without enough accomplishment", que rima com a frase "He´s like royalty in exile" desse mesmo filme), em tons propositadamente arty, nomeadamente nos interlúdios a cores, com um Vincent Gallo inconsequente e uma história que se arrasta sem grande necessidade, é um filme sem alma mas que quer parecer relevante, demonstrando até um certo desespero no modo como tenta chamar a atenção através dos ângulos de câmara ou do argumento demasiado rebuscado, sobretudo na segunda metade do filme. Como quem veste o casaco de peles para ir jantar ao McDonald's.
O que levanta uma questão: se estes são os filmes que Coppola queria fazer desde sempre, supostamente arriscados e experimentais, até que ponto as obras-primas que fez não o foram também muito por culpa dos constrangimentos de que alegadamente se terá entretanto libertado? Por outras palavras, até que ponto o sistema que Coppola agora critica não ajudou a limar e a controlar a megalomania que sempre teve, melhorando assim a qualidade dos filmes? A resposta, para aqueles como eu que sempre defenderam o autor contra o estúdio, pode ser assustadora.
Neste contexto, mais do que uma segunda vida, a carreira de Coppola quis recomeçar com Youth Without Youth é, mais do que uma segunda vida, uma segunda morte. Tetro, novo filme do cineasta, história de um família desavinda que pensa avançar em direcção à reconciliação mas que acaba por se afogar no derradeiro abismo, em nada impede a queda, mesmo que não a acentue tanto quanto a obra anterior. Num preto e branco expressionista, a lembrar Rumble Fish (como o lembra a frase "He´s like a genius without enough accomplishment", que rima com a frase "He´s like royalty in exile" desse mesmo filme), em tons propositadamente arty, nomeadamente nos interlúdios a cores, com um Vincent Gallo inconsequente e uma história que se arrasta sem grande necessidade, é um filme sem alma mas que quer parecer relevante, demonstrando até um certo desespero no modo como tenta chamar a atenção através dos ângulos de câmara ou do argumento demasiado rebuscado, sobretudo na segunda metade do filme. Como quem veste o casaco de peles para ir jantar ao McDonald's.
O que levanta uma questão: se estes são os filmes que Coppola queria fazer desde sempre, supostamente arriscados e experimentais, até que ponto as obras-primas que fez não o foram também muito por culpa dos constrangimentos de que alegadamente se terá entretanto libertado? Por outras palavras, até que ponto o sistema que Coppola agora critica não ajudou a limar e a controlar a megalomania que sempre teve, melhorando assim a qualidade dos filmes? A resposta, para aqueles como eu que sempre defenderam o autor contra o estúdio, pode ser assustadora.
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23 novembro 2009
TAKE 20 - Novembro
A Take é como as derrotas do Benfica - tarda mas não falha. E cá está a edição de Novembro, capa dedicada a Francis Ford Coppola. Da minha parte contem com críticas a Welcome, Pride and Glory, ao magnífico Andando, Morrer como um Homem, Il Divo e Desgraça, entrevistas a Fernando Lopes, Agnès Jaoui e Nuno Galopim, coberturas da Festa do Cinema Francês e do Queer Lisboa e com a antevisão ao ciclo Monte Hellman.
Passem por lá, que a gerência agradece.
20 novembro 2009
O regresso
Não deve ser novidade para muitos, mas só esta semana reparei que a rubrica "Cinco Noites, Cinco Filmes" está de regresso à RTP 2. Apesar da hora tardia (filmes a começar pela meia-noite) há que dar o mérito a quem tomou a medida e esperar que a programação seja equilibrada e relevante. Ao fim de anos a negligenciar o cinema na estação pública, alguém deve ter acordado.
17 novembro 2009
Conto de Fadas do Estoril à Avenida de Roma
O Estoril Film Festival acabou este sábado. E teve tudo para ter sido um sucesso, desde a habitual presença de grandes nomes do cinema internacional às ante-estreias de filmes dos mais esperados dos próximos 12 meses, desde o óptimo Os Sorrisos do Destino de Fernando Lopes até aos muito aguardados Tetro, The White Ribbon e Un Prophète. Contudo, não lá estive, nem este ano nem nos anos anteriores, numa decisão a meio caminho entre o prático e o ideológico.
No ambito prático, vivendo na linha de Sintra, teria de ou comprar bilhete(s) para outra linha de comboio ou ir de carro, gastando dinheiro que não tenho. Adicionalmente, teria de jantar e ou lanchar quando estivesse no festival, o que faria a despesa crescer. Dado que grande parte dos filmes serão lançados em sala, pareceu-me pouco recompensador, mesmo que me doa não ter visto Francis Coppola, David Cronenberg ou Juliette Binoche.
Mas o âmbito ideológico falou ainda mais forte. Peguemos no festival na sua essência: um produtor com problemas económicos conhecidos (uma falência aberta há poucos anos) resolve juntar meia-dúzia dos filmes que vai lançar, alguns amigos, reunir tudo num casino, que ajuda a dar charme, e cria uma secção competitiva, sem grande interesse na medida em que se o tivesse, o mesmo produtor, na sua faceta de distribuidor, estreá-los-ia em sala. E pronto, nasce um festival que vale essencialmente por esses amigos que o produtor traz.
E, de caminho lembramo-nos de um pequeno cinema, apesar de tudo com três salas, sito na Avenida de Roma, chamado King mas cujo estatuto real parece o de monarca deposto. As cadeiras mais desconfortáveis que alguma vez experimentei, um interior cavernoso, coberto de carpetes que provavelmente não são limpas há muitos meses e que, mesmo ao fim-de-semana, tem apenas meia-dúzia de resistentes que ainda não foram ver esses filmes ao Monumental ou ao um pouco menos decrépito Fonte Nova ou por um ou outro morador da zona. Ao longe, lembro-me de outros tempos em que aquelas salas estavam preenchidas, em que se viam lá excelentes filmes, em que, em suma, a sensação de abandono era apenas um pesadelo distante, tendo os empregados realmente trabalho a desempenhar e não que suportar o tédio enquanto o patrão serve champagne aos comparsas no casino.
Alguém perguntou ao sr. Branco quanto do dinheiro que investe no Estoril Film Festival poderia ser usado para re-tornar o King num cinema atractivo, com filmes interessantes que lá passassem em exclusivo (deixem-me sonhar: com uma sala permanentemente dedicada ao cinema asiático contemporâneo) ou para dar vida ao Nimas (porque não como cinema de reposição?) em vez de o transformar num espaço multi-funções com rentabilidade ainda por demonstrar? Não, e o próprio decerto deve estar-se borrifando. No fundo, ele está apenas a fazer aquilo que o país faz. O trabalho é precário ou inexistente? Não há problema, temos a maior àrvore de Natal do Mundo. O ensino é cada vez pior? Temos aqui uns computadores azulinhos para ofertar, pelo que está resolvido. A cultura está de rastos e o cinema ainda mais pelo chão se encontra? Não; se assim fosse, teríamos o Coppola, o Cronenberg e a Binoche no Casino?
E então, como por magia, parece estar tudo bem. Mesmo que filmes como Takeshis' e Ne Touchez Pas la Hache tenham sido remetidos para dvd ou que a estreia de filmes como A Turma ou Ne Change Rien e a reposição de O Sangue tenham ocorrido num centro comercial. De luxo, claro está, que é o que importa acima de tudo.
No ambito prático, vivendo na linha de Sintra, teria de ou comprar bilhete(s) para outra linha de comboio ou ir de carro, gastando dinheiro que não tenho. Adicionalmente, teria de jantar e ou lanchar quando estivesse no festival, o que faria a despesa crescer. Dado que grande parte dos filmes serão lançados em sala, pareceu-me pouco recompensador, mesmo que me doa não ter visto Francis Coppola, David Cronenberg ou Juliette Binoche.
Mas o âmbito ideológico falou ainda mais forte. Peguemos no festival na sua essência: um produtor com problemas económicos conhecidos (uma falência aberta há poucos anos) resolve juntar meia-dúzia dos filmes que vai lançar, alguns amigos, reunir tudo num casino, que ajuda a dar charme, e cria uma secção competitiva, sem grande interesse na medida em que se o tivesse, o mesmo produtor, na sua faceta de distribuidor, estreá-los-ia em sala. E pronto, nasce um festival que vale essencialmente por esses amigos que o produtor traz.
E, de caminho lembramo-nos de um pequeno cinema, apesar de tudo com três salas, sito na Avenida de Roma, chamado King mas cujo estatuto real parece o de monarca deposto. As cadeiras mais desconfortáveis que alguma vez experimentei, um interior cavernoso, coberto de carpetes que provavelmente não são limpas há muitos meses e que, mesmo ao fim-de-semana, tem apenas meia-dúzia de resistentes que ainda não foram ver esses filmes ao Monumental ou ao um pouco menos decrépito Fonte Nova ou por um ou outro morador da zona. Ao longe, lembro-me de outros tempos em que aquelas salas estavam preenchidas, em que se viam lá excelentes filmes, em que, em suma, a sensação de abandono era apenas um pesadelo distante, tendo os empregados realmente trabalho a desempenhar e não que suportar o tédio enquanto o patrão serve champagne aos comparsas no casino.
Alguém perguntou ao sr. Branco quanto do dinheiro que investe no Estoril Film Festival poderia ser usado para re-tornar o King num cinema atractivo, com filmes interessantes que lá passassem em exclusivo (deixem-me sonhar: com uma sala permanentemente dedicada ao cinema asiático contemporâneo) ou para dar vida ao Nimas (porque não como cinema de reposição?) em vez de o transformar num espaço multi-funções com rentabilidade ainda por demonstrar? Não, e o próprio decerto deve estar-se borrifando. No fundo, ele está apenas a fazer aquilo que o país faz. O trabalho é precário ou inexistente? Não há problema, temos a maior àrvore de Natal do Mundo. O ensino é cada vez pior? Temos aqui uns computadores azulinhos para ofertar, pelo que está resolvido. A cultura está de rastos e o cinema ainda mais pelo chão se encontra? Não; se assim fosse, teríamos o Coppola, o Cronenberg e a Binoche no Casino?
E então, como por magia, parece estar tudo bem. Mesmo que filmes como Takeshis' e Ne Touchez Pas la Hache tenham sido remetidos para dvd ou que a estreia de filmes como A Turma ou Ne Change Rien e a reposição de O Sangue tenham ocorrido num centro comercial. De luxo, claro está, que é o que importa acima de tudo.
15 novembro 2009
Sumaríssimos (7)
The Brothers Bloom tem, antes de tudo, um mérito: demonstra que Wes Anderson criou descendência. O segundo filme de tem um mesmo leque de personagens neuróticas, a um tempo cómicas e comoventes, o mesmo sentido romanesco na escrita do argumento, a mesma neurose omnipresente e um idêntica cuidado visual. Contudo, o realizador Rian Johnson mascara essas componentes de filme de golpe, onde as sucessivas fraudes acabam por servir de esqueleto à narrativa que o espectador acompanha. É neste aspecto que The Brothers Bloom acaba por me perder, tornando-se algo repetitivo, cansativo e previsível, apesar das diferentes cidades em que se passa e da tentativa de encenar cada golpe como uma micro-narrativa. Apesar disso, é uma boa surpresa, com personagens bem construídas, uma história interessante, actores que defendem muito bem as suas personagens e momentos francamente bons – destaque para o malabarismo de motoserras por parte de Rachel Weisz, das mais originais cenas de cinema que vi este ano. Consiga Rian Johnson afastar-se da influência de Wes Anderson, multifacetar os argumentos e dosear a sua criatividade (a páginas tantas, parece um filme demasiado cheio) e temos cineasta.
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Sumaríssimos
10 novembro 2009
Flint, Michigan
Antes do som e da fúria que Capitalism: A Love Story causará, importa caracterizar desde logo o método Michael Moore. A estrutura documental de filmes como Bowling for Columbine (2002) é directamente herdada da televisão, combinando entrevistas, visitas a locais e pessoas, entrevistas e acompanhamento situacional. A estas componentes juntam-se os dois que mais diferem da maior parte dos documentários: a componente humorística, que impede que Moore alguma vez seja considerado artista por quem quer que seja; e a utilização de uma "personagem" Michael Moore, espécie de americano típico que utiliza a câmara como arma mas que, em vez de vinculado aos ideais do GOP, é assumidamente liberal, na conotação americana do termo. Assim, o cinema de Moore utiliza uma camada de humor para impor os factos investigados, ultrapassando a habitual monotonia apontada aos democratas e auto-promovendo-se no sentido de tornar os seus filmes cada vez mais vistos. É isto que ninguém lhe perdoa.
E é por isto que Roger & Me (1989), primeiro documentário de Moore aparece hoje como tão desconcertante e, no limite, como a sua melhor obra. Todo o seu cinema estava ainda numa fase embrionária, em que os motivos gerais já lá estavam mas que ainda não tinham nem o carácter óbvio nem o lado determinante que hoje lhes é atribuído. Moore na primeira pessoa, sim, mas ainda não era a estrela do filme; pose de americano típico, sim, mas uma barriga menos luxuosa e um lado menos caricatural, mais credível e natural; entrevistas, sim, mas muito menos manipuladas, ainda centradas única e exclusivamente no assunto em causa; lado eminentemente político e esquerdista, mas apontando ainda ao senso comum e aos valores básicos e não a qualquer radicalismo que eventualmente se lhe possa apontar.
Filme sobre a terra queimada em que se tornou a cidade natal de Moore, Flint, no estado do Michigan, quando a General Motors decidiu eliminar 30 mil postos de trabalho, entretanto exportados para o México, intercala cenas do quotidiano da população, acompanha um delegado do Xerife local cuja função é despejar inquilinos incumpridores e mostra o percurso de Moore enquanto tenta chegar à palavra com Roger Smith, o obscenamente remunerado presidente da General Motors. Longe de espalhafatoso, mantendo os momentos bombásticos ao mínimo (a piada anti-semita do apresentador de televisão), é um filme que opera uma curiosa inversão face aos filmes posteriores que conhecemos: em vez de partir do nacional para o local (do governo para as pessoas) começa antes por ser um filme sobre aquela cidade, beneficiando com o conhecimento de causa do cineasta. São abundantes os planos a mostrar a degradação, a comparar o espaço com o passado (e, atente-se, a um passado que pode ser mera construção nostálgica), cartografando a perda de horizontes e o fim do sonho americano à medida que a economia se ia globalizando. O que o torna algo de mais emotivo, de mais sério e menos generalizador, como se houvesse uma espécie de deriva "neo-realista", saindo para a rua e vendo, e não uma deriva tão circence – não há nenhum momento tão grotesco e explorador como o da mãe do soldado morto no Iraque como em Farenheit 911 (2004). Para o bem e para o mal, é um filme claramente beneficiado pelo escopo mais pequeno, mesmo que o inimigo (a cultura empresarial os EUA), seja o mesmo.
Depois disto, o caminho foi diferente, com momentos muito bons e outros menos positivos. Mas é pena que a este Roger & Me, sóbrio, inteligente, comovente e completamente sério, não tenha sido dada a atenção merecida. A rever quando, daqui a umas semanas nos quiserem de novo convencer que Moore é apenas o palhaço rico da esquerda americana. Roger & Me é muito engraçado, utilizando toda a panóplia de métodos de comédia, dos mais contidos aos mais satíricos e insultuosos. Mas quem pensa que este filme é para rir está bem enganado. É do mais sério que vi nos últimos tempos.
E é por isto que Roger & Me (1989), primeiro documentário de Moore aparece hoje como tão desconcertante e, no limite, como a sua melhor obra. Todo o seu cinema estava ainda numa fase embrionária, em que os motivos gerais já lá estavam mas que ainda não tinham nem o carácter óbvio nem o lado determinante que hoje lhes é atribuído. Moore na primeira pessoa, sim, mas ainda não era a estrela do filme; pose de americano típico, sim, mas uma barriga menos luxuosa e um lado menos caricatural, mais credível e natural; entrevistas, sim, mas muito menos manipuladas, ainda centradas única e exclusivamente no assunto em causa; lado eminentemente político e esquerdista, mas apontando ainda ao senso comum e aos valores básicos e não a qualquer radicalismo que eventualmente se lhe possa apontar.
Filme sobre a terra queimada em que se tornou a cidade natal de Moore, Flint, no estado do Michigan, quando a General Motors decidiu eliminar 30 mil postos de trabalho, entretanto exportados para o México, intercala cenas do quotidiano da população, acompanha um delegado do Xerife local cuja função é despejar inquilinos incumpridores e mostra o percurso de Moore enquanto tenta chegar à palavra com Roger Smith, o obscenamente remunerado presidente da General Motors. Longe de espalhafatoso, mantendo os momentos bombásticos ao mínimo (a piada anti-semita do apresentador de televisão), é um filme que opera uma curiosa inversão face aos filmes posteriores que conhecemos: em vez de partir do nacional para o local (do governo para as pessoas) começa antes por ser um filme sobre aquela cidade, beneficiando com o conhecimento de causa do cineasta. São abundantes os planos a mostrar a degradação, a comparar o espaço com o passado (e, atente-se, a um passado que pode ser mera construção nostálgica), cartografando a perda de horizontes e o fim do sonho americano à medida que a economia se ia globalizando. O que o torna algo de mais emotivo, de mais sério e menos generalizador, como se houvesse uma espécie de deriva "neo-realista", saindo para a rua e vendo, e não uma deriva tão circence – não há nenhum momento tão grotesco e explorador como o da mãe do soldado morto no Iraque como em Farenheit 911 (2004). Para o bem e para o mal, é um filme claramente beneficiado pelo escopo mais pequeno, mesmo que o inimigo (a cultura empresarial os EUA), seja o mesmo.
Depois disto, o caminho foi diferente, com momentos muito bons e outros menos positivos. Mas é pena que a este Roger & Me, sóbrio, inteligente, comovente e completamente sério, não tenha sido dada a atenção merecida. A rever quando, daqui a umas semanas nos quiserem de novo convencer que Moore é apenas o palhaço rico da esquerda americana. Roger & Me é muito engraçado, utilizando toda a panóplia de métodos de comédia, dos mais contidos aos mais satíricos e insultuosos. Mas quem pensa que este filme é para rir está bem enganado. É do mais sério que vi nos últimos tempos.
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07 novembro 2009
Bellum sine bello
Dos filmes de John McTiernan, prefiro Predator (1987), Die Hard (1988, que filme do catano!) e, sobretudo, The Last Action Hero (1993), dos melhores exercícios de mise-en-abime da década de 1990. Mas nunca tinha prestado a devida atenção a este magnífico Hunt for Red October (1990), talvez porque tantas vezes passou na televisão que pensei haver sempre outra oportunidade de o ver. Houve e em boa hora, pois dos filmes feitos aquando do final da Guerra Fria, o de McTiernan não apenas é o que tem o substracto mais subtil como o que lhe adiciona um maior cuidado e interesse estéticos.
Comecemos pelo lado político. Ao contrário de outros filmes que têm na propaganda o seu fulcro (veja-se o horroroso The House of Russia de Fred Schepsi, 1991), o de McTiernan consegue desenhar a ideia da superioridade ocidental em apenas duas sequências, cada uma com mais tacto do que a outra: a conversa entre Sean Connery e Sam Neill nos aposentos do comandante, onde o sonho da liberdade é enumerado com tacto e descrição; e a conversa final entre Connery e Alec Baldwin, onde são frisadas as semelhanças mais do que as diferenças. E, parecendo que não, este ponto é importante. Porque é o que o localiza em pleno estertor final da referida guerra, quando já não era necessário o fulgor propagandístico mas antes a aproximação. De certo modo, apesar dos seus inequívocos bons e maus, ao longo deste filme quase conseguimos ver Reagan passear com Gorbatchev na Praça Vermelha. Num filme onde o espectro da guerra nuclear paira sempre, é obra.
John McTiernan, ao contrário de um James Cameron, que sabe escolher quando ser clássico (Titanic, etc) e quando ser moderno ou pós-moderno (o novo Avatar, espera-se), é uma perfeita mescla de ambas as hipóteses. Por um lado, no rigor dos planos, na linearidade no bullshit do filme, no seu classicismo apenas entrecortado pelos cibernéticos indicadores de hora e local, quase que é um filme que se poderia imaginar noutras eras. Tudo isto em claro ambiente pipoqueiro, de blockbuster típico dos pós-76, com um orçamento confortabilíssimo e com elenco cheio de nomes reconhecíveis (Connery, Baldwin, Neill, James Earl Jones, Scott Glenn ou Stellan Skarsgaard), onde é óbvio que o espectáculo é a principal motivação. Mas o espectáculo... pouco tem de explosivo. Com a excepção da fabulosa acoplagem do helicóptero ao submarino e apesar do tom grandioso que empresta à sua progressão e filmagem, ... Red October mais não é do que um jogo do gato e do rato estendido para duas horas e um quarto, onde o interesse reside mais na gestão dos encontros e desencontros, dificuldades técnicas e relação entre a ordem política e o desempenho militar que um filme de confrontação, na constante expectativa de um encontro que parece inevitável. Como resume brilhantemente a personagem de Sean Connery, é “uma guerra sem guerra” e o filme sabe mostrá-lo.
E quando o encontro chega, é magnífico. As melhores cenas do filme, aliás, dão-se na última meia-hora. Primeiro, quando os militares americanos e o analista da CIA entram no submarino russo. Apesar de absolutamente equivalente, esse encontro é dado como se fosse um encontro entre humanos e alienígenas, em posições inter-mutáveis. Há uma brilhante tensão, em constante crescimento nos seus passos titubeantes apesar do respeito pelo protocolo militar, gerida magníficamente por McTiernan, que contamina o momento. E, finalmente, o belíssimo combate entre o submarino russo extraviado e o “oficial”, que coloca uma hipótese estimulante: e se Hunt for Red October fosse, afinal, um swashbuckler entre submarinos? Fazia todo o sentido e só contibuía para o fascínio que exerce.
Como os outros filmes que McTiernan fez entre 1985 e 1995 e aos quais se pode juntar o muito razoável Basic (2003), Hunt for Red October só faz lamentar que a carreira de McTiernan tenha sofrido os empecilhos que sofreu por parte dos estúdios, com especial enfase para os problemas que resultaram nos cortes e no descrédito de The 13th Warrior (1999) e Rollerball (2002) – falamos de um cineasta com apenas 11 filmes em 22 anos e que não filma desde 2003. Afinal de contas, era disto que se devia falar quando se fala de thriller político, filme de acção ou blockbuster. A ser visto pelos produtores da saga Bourne.
Comecemos pelo lado político. Ao contrário de outros filmes que têm na propaganda o seu fulcro (veja-se o horroroso The House of Russia de Fred Schepsi, 1991), o de McTiernan consegue desenhar a ideia da superioridade ocidental em apenas duas sequências, cada uma com mais tacto do que a outra: a conversa entre Sean Connery e Sam Neill nos aposentos do comandante, onde o sonho da liberdade é enumerado com tacto e descrição; e a conversa final entre Connery e Alec Baldwin, onde são frisadas as semelhanças mais do que as diferenças. E, parecendo que não, este ponto é importante. Porque é o que o localiza em pleno estertor final da referida guerra, quando já não era necessário o fulgor propagandístico mas antes a aproximação. De certo modo, apesar dos seus inequívocos bons e maus, ao longo deste filme quase conseguimos ver Reagan passear com Gorbatchev na Praça Vermelha. Num filme onde o espectro da guerra nuclear paira sempre, é obra.
John McTiernan, ao contrário de um James Cameron, que sabe escolher quando ser clássico (Titanic, etc) e quando ser moderno ou pós-moderno (o novo Avatar, espera-se), é uma perfeita mescla de ambas as hipóteses. Por um lado, no rigor dos planos, na linearidade no bullshit do filme, no seu classicismo apenas entrecortado pelos cibernéticos indicadores de hora e local, quase que é um filme que se poderia imaginar noutras eras. Tudo isto em claro ambiente pipoqueiro, de blockbuster típico dos pós-76, com um orçamento confortabilíssimo e com elenco cheio de nomes reconhecíveis (Connery, Baldwin, Neill, James Earl Jones, Scott Glenn ou Stellan Skarsgaard), onde é óbvio que o espectáculo é a principal motivação. Mas o espectáculo... pouco tem de explosivo. Com a excepção da fabulosa acoplagem do helicóptero ao submarino e apesar do tom grandioso que empresta à sua progressão e filmagem, ... Red October mais não é do que um jogo do gato e do rato estendido para duas horas e um quarto, onde o interesse reside mais na gestão dos encontros e desencontros, dificuldades técnicas e relação entre a ordem política e o desempenho militar que um filme de confrontação, na constante expectativa de um encontro que parece inevitável. Como resume brilhantemente a personagem de Sean Connery, é “uma guerra sem guerra” e o filme sabe mostrá-lo.
E quando o encontro chega, é magnífico. As melhores cenas do filme, aliás, dão-se na última meia-hora. Primeiro, quando os militares americanos e o analista da CIA entram no submarino russo. Apesar de absolutamente equivalente, esse encontro é dado como se fosse um encontro entre humanos e alienígenas, em posições inter-mutáveis. Há uma brilhante tensão, em constante crescimento nos seus passos titubeantes apesar do respeito pelo protocolo militar, gerida magníficamente por McTiernan, que contamina o momento. E, finalmente, o belíssimo combate entre o submarino russo extraviado e o “oficial”, que coloca uma hipótese estimulante: e se Hunt for Red October fosse, afinal, um swashbuckler entre submarinos? Fazia todo o sentido e só contibuía para o fascínio que exerce.
Como os outros filmes que McTiernan fez entre 1985 e 1995 e aos quais se pode juntar o muito razoável Basic (2003), Hunt for Red October só faz lamentar que a carreira de McTiernan tenha sofrido os empecilhos que sofreu por parte dos estúdios, com especial enfase para os problemas que resultaram nos cortes e no descrédito de The 13th Warrior (1999) e Rollerball (2002) – falamos de um cineasta com apenas 11 filmes em 22 anos e que não filma desde 2003. Afinal de contas, era disto que se devia falar quando se fala de thriller político, filme de acção ou blockbuster. A ser visto pelos produtores da saga Bourne.
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01 novembro 2009
Sérgio RIP
A morte é por definição imprevisível, é certo, mas soubesse eu que o dia de hoje traria a noticia da morte de António Sérgio e não teria poluído este blogue com mais um texto sobre bola.
Comecei a ouvir o Lobo há sensivelmente dez anos, companhia noctívaga de insónias ou trabalhos atrasados. A ele agradeço ter descoberto, por exemplo, os Pavement e os Red House Painters, que hoje muito admiro. E nunca deixei de me sentir intrigado, fascinado até, por aquela rouquíssima voz, e pelas dificuldades que me dava em fazer perceber os nomes das bandas que passava.
Um obrigado, António Sérgio. Se houver mesmo um Great Gig in the Sky, que o esteja já a ver.
E como esta homenagem não pode ser silenciosa, aqui vai um nome da sua preferência
31 outubro 2009
Um pequeno aviso
Tinha posto aqui um texto que entretanto eliminei. Fica apenas aqui uma pequena reflexão sobre o Corruptos-B - SL Benfica:
Alguém acha que que, à 9ª jornada, alguém nos deixaria ficar com cinco pontos de vantagem sobre os corruptos? Sinceramente, somos ingénuos, caros benfiquistas...
De qualquer modo, o aviso continua: com a nossa preparação empresarial, com os jogadores que temos para vender e com o que jogamos, mesmo perdendo...
AINDA TERÃO DE NOS ROUBAR MUITO MAIS!
Aguentem!
29 outubro 2009
Sumaríssimos (6)
The Informant! é o terceiro filme de Steven Soderbergh este ano. E sofre com isso: o formalismo sem desculpas que o cineasta utiliza para contar a história do maior denunciante intra-empresarial da história dos EUA é já parte de uma gramática regular e até algo previsível, incluindo filtros de imagem, ângulos pouco comuns e referências ao passado cinéfilo (aqui os eternos anos 70 americanos). O caso é interessante, há bons gags, Matt Damon está óptimo, Scott Bakula está muito bem e continua a ser a um tempo fácil e estimulante de ver, mas já vi este filme três vezes este ano.
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25 outubro 2009
O "special one" original
Brian Clough era o homem que faria José Mourinho urinar-se pelas pernas abaixo. Grande jogador no seu tempo (254 golos em 271 presenças ao serviço de Middlesbrough e Sunderland) alcançou o seu espaço entre os grandes quando, ao serviço do Nottingham Forrest (ou melhor, o Forrest é que estava ao serviço dele) pegou na equipa em 1975 ainda na segunda divisão e, chegado a 1980, já havia conquistado duas Taças dos Campeões Europeus – algo que um conjunto de calimeros reptilíneos habituados a batatais nunca hão-de conseguir. Auxiliado pelo adjunto Peter Taylor (que o salvava de si próprio) foi também um dos primeiros treinadores europeus verdadeiramente mediáticos, procurando jogos psicológicos constantes, criando métodos de trabalho pouco ortodoxos e sendo verdadeiramente desbocado, irritante, volátil e arrogante como só os génios são.
The Damned United, filme de Tom Hooper, passa pelo feito de Clough ao tornar, em 1972, o Derby County campeão inglês, para se fixar nas tumultuosas seis semanas que o “mister” passou no Leeds United. Á época o mais forte conjunto britânico, ancorado num jogo violento e sem escrúpulos (tipo FCP circa 1992) e antes treinado pelo também famoso Don Revie, contava uma série de jogadores influentes que de imediato o rejeitaram, quer na sua vontade de tornar mais ético o estilo de jogo, quer na sobranceria que demonstra face às conquistas anteriores do plantel. O resultado é um filme cem por cento ancorado na sua personagem, valiosíssimo retrato de uma grande figura desportiva da sua época mas com bastos problemas estéticos.
Adaptado do livro homónimo de David Peace, contestado por intervenientes e pelos descendentes de Clough, The Damned United é, no seu melhor, um retrato da ambição que conduz as grandes figuras desportivas, aquelas que sem grandes provas dadas sentem que podem chegar longe, apenas e só com a força do seu trabalho e com uma ideia de predestinação que acabam por tornar auto-realizável. Quando resulta, é um filme que resulta o seu pathos ao focar-se não no sucesso, mas nas dificuldades que o antecederam, na travessia do deserto de alguém que percebe o seu talento mas é eternamente ultrapassado por gente muito mais medíocre e que usa isso como fonte de motivação. Não lhe falta também um lado de transcendência das limitações sociais – aspecto relevante no futebol britânico – mas trata, em suma, da frustração como factor essencial ao sucesso.
Posto isto, é pena que Tom Hooper falhe na sua tentativa de estilizar o realismo britânico, optando por um estilo barroco, com filtros de imagem e grandes angulares e outras opções que tornam The Damned United espalhafatoso, falsamente moderno e, no limite, esteticamente pouco recompensador. Ao que se junta o facto de as poucas vezes que as partidas são reconstituídas o serem de forma pouco convincente (a melhor reconstituição é a do jogo “visto” no balneário) e a falta de atenção dada a Peter Taylor, no que poderia ser outro filme: como se sente o homem que vive na sombra do génio?
Apesar de tudo, The Damned United tem duas grandes interpretações, (Michael Sheen e Timothy Spall) e é o melhor filme que vi passado no mundo do futebol, dado que o desporto-rei tem sofrido, cinematograficamente, com a sua falta de implantação nos EUA. E até pode dar uma ideia interessante a um produtor português: um filme sobre o mês e meio passado por Mourinho no Glorioso antes de ganhar uma Taça Uefa e uma Champions ao serviço de um clube cujo nome agora me escapa.
The Damned United, filme de Tom Hooper, passa pelo feito de Clough ao tornar, em 1972, o Derby County campeão inglês, para se fixar nas tumultuosas seis semanas que o “mister” passou no Leeds United. Á época o mais forte conjunto britânico, ancorado num jogo violento e sem escrúpulos (tipo FCP circa 1992) e antes treinado pelo também famoso Don Revie, contava uma série de jogadores influentes que de imediato o rejeitaram, quer na sua vontade de tornar mais ético o estilo de jogo, quer na sobranceria que demonstra face às conquistas anteriores do plantel. O resultado é um filme cem por cento ancorado na sua personagem, valiosíssimo retrato de uma grande figura desportiva da sua época mas com bastos problemas estéticos.
Adaptado do livro homónimo de David Peace, contestado por intervenientes e pelos descendentes de Clough, The Damned United é, no seu melhor, um retrato da ambição que conduz as grandes figuras desportivas, aquelas que sem grandes provas dadas sentem que podem chegar longe, apenas e só com a força do seu trabalho e com uma ideia de predestinação que acabam por tornar auto-realizável. Quando resulta, é um filme que resulta o seu pathos ao focar-se não no sucesso, mas nas dificuldades que o antecederam, na travessia do deserto de alguém que percebe o seu talento mas é eternamente ultrapassado por gente muito mais medíocre e que usa isso como fonte de motivação. Não lhe falta também um lado de transcendência das limitações sociais – aspecto relevante no futebol britânico – mas trata, em suma, da frustração como factor essencial ao sucesso.
Posto isto, é pena que Tom Hooper falhe na sua tentativa de estilizar o realismo britânico, optando por um estilo barroco, com filtros de imagem e grandes angulares e outras opções que tornam The Damned United espalhafatoso, falsamente moderno e, no limite, esteticamente pouco recompensador. Ao que se junta o facto de as poucas vezes que as partidas são reconstituídas o serem de forma pouco convincente (a melhor reconstituição é a do jogo “visto” no balneário) e a falta de atenção dada a Peter Taylor, no que poderia ser outro filme: como se sente o homem que vive na sombra do génio?
Apesar de tudo, The Damned United tem duas grandes interpretações, (Michael Sheen e Timothy Spall) e é o melhor filme que vi passado no mundo do futebol, dado que o desporto-rei tem sofrido, cinematograficamente, com a sua falta de implantação nos EUA. E até pode dar uma ideia interessante a um produtor português: um filme sobre o mês e meio passado por Mourinho no Glorioso antes de ganhar uma Taça Uefa e uma Champions ao serviço de um clube cujo nome agora me escapa.
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22 outubro 2009
Mais uma voltinha, mais uma viagem
Quando Saramago abre a boca, pode ser que diga uma asneira. Que, curiosamente, se desmultiplica imediatamente num chorrilho de outras asneiras, num todo confortante e recorrente. Como um casal que, apesar das discussões constantes, não consegue viver separado.
Se fui educado de acordo com os preceitos católicos, hoje estou calmamente afastado deles. Fartei-me de ver na igreja gente que era do pior durante a semana e achava que quarenta e cinco minutos ao domingo serviam de expiação. Concomitantemente, não suporto ver padres presentes em cerimónias públicas num estado laico e ainda me lembro de calinadas difíceis de engolir mesmo passados anos - lembram-se do padre que, em pleno funeral da menina imersa pela família em água a ferver, afirmou que apesar de tudo teria sido pior se a criança tivesse sido abortada? Nada disto faz com que subscreva as infelizes palavras do Nobel português da literatura. Quanto mais não seja porque a validade cultural daquele livro é indesmentível: para o bem e para o mal, aquele livro, como a Ilíada, a Odisseia, o Dom Quixote e a poesia de Dante está dentro de todos nós, como artefacto civilizacional, mesmo naqueles que não o leram. Simultaneamente, acho estranho que Saramago tenha ignorado quanto há de evolução ontológica na transformação da ideia de Deus do Antigo para o Novo Testamento.
Quanto aos senhores que, muito escandalizados, vêm agora pedir a cabeça de Saramago como Salomé a de João Baptista, muito menos dou para o peditório deles. O problema deles com Saramago começou em 1998, quando um escritor vermelho de ideologia venceu um prémio Nobel, numa rebelião cujo expoente actual é o Cardeal Cerej... perdão, Pedro Mexia. Não por acaso, nenhum desses senhores, tão lestos a denunciar o políticamente correcto e a forma como são supostamente cerceados na sua opinião esquecem-se agora de dar o direito de opinião a outra pessoa, deixando esse papel a Manuel Alegre. Já dominam os jornais, as televisões, as mentalidades de grande parte do país, mas ainda lhes dói que haja um espírito livre. Aguentem.
E, de caminho, aguentem também a ideia, o tão simples mas tão complexo conceito de liberdade de expressão. Também não gosto de ouvir atrasados mentais dizer que o Benfica era o clube do regime (factualmente mentira), o Presidente da Confederação de Industriais Portugueses falar da necessidade de salários baixos ou que o Slumdog Millionaire é um grande filme, mas tenho de lidar com isso. Caso tenham de marrar contra alguma coisa, marrem contra a protecção dada à extrema-direita ou a este pobre prisioneiro político.
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14 outubro 2009
Take 19 - Outubro
Já está disponível o novo número da Take. Neste, contribuí com o artigo de capa, sobre Pedro Almodòvar, com antecipações a The Informant de Steven Soderbergh, Un Prophète de Jacques Audiard e The White Ribbon de Michael Haneke, fiz a cobertura do Motelx a meias com António Pascoalinho, entrevistei Stuart Gordon, critiquei Séraphine de Martin Provost, A esperança está onde menos se espera de Joaquim Leitão, Taking Woodstock de Ang Lee e Arena de João Salaviza (em despique com o Pedro Soares), Abraços Desfeitos de Pedro Almodovar e Para a Minha Irmã de Nick Cassavettes e escrevi sobre o mini-ciclo da Cinemateca dedicado a Elia Kazan. Foi um mês atarefado.
Fora o meu trabalho, há muito mais conteúdos interessantes na edição deste mês. Passem por lá.
05 outubro 2009
Pedaços de vida
Ao ver L’Heure d’Été, tarde e a más horas, pergunto-me se não estará na altura de reavaliar Olivier Assayas enquanto realizador. Certo que não tenho qualquer vontade de rever Clean (2004), insuportável! mas Irma Vep (1996) será dos próximos filmes a entrar no meu já cansado leitor de VHS. E nada disto aconteceria se não tivesse visto o belíssimo filme supracitado, conto tchekoviano acerca de como um conjunto de três irmãos gere o processo de luto matriarcal.
O mérito inicial de Assayas é o de saber rodear-se das influências certas. Algum Renoir, muito Hou Hsiao Hsien e até algum Téchiné, com quem Assayas escreveu o magnífico Le Lieu du Crime (1986). Um filme burguês (e é curioso pensar que se Marx tivesse o que queria não havia cinema francês...), famílias “bem” e a fantástica capacidade de nos fazer ter por aquela gente a simpatia que se calhar não teriamos noutras situações. Adicionalmente, todo o filme se passa no binómio campo-Paris, na forma como as duas realidades se concatenam, no modo como ambas espelham a definição daquela classe social ao longo dos tempos. Por último, nos filmes vêem-se a(s) estética(s) realista(s) -atente-se, nem por isso menos estilizadas - das influências que Assayas emprega. Com a sua câmara à mão, com os seus toques impressionistas (os planos nos automóveis em que os rostos se confundem com os reflexos) e com o naturalismo dos desempenhos dos actores, é como se o filme se desenvolvesse à nossa frente, acontecendo simplesmente apesar da sua cuidada preparação.
Para o fazer, há uma progressão romanesca gerida com classe, que pode ser aferida através das temáticas dos três actos que, de forma óbvia o compõe. No primeiro, quando a matriarca ainda está viva, é um filme sobre a confraternização (o “bonding”, no sucinto termo inglês), clinicamente interrompido pela sombra da morte – fantástico plano da grande Édith Scob, em outonais tons azuis, antecipando o seu fim. No segundo, é mais vincadamente acerca do luto, do seu lado burocrático e progressivamente mercantilizado e da passagem de um tempo, tentando transformá-lo em algo de positivo para o futuro. Finalmente, no terceiro, é acerca da eventual reconciliação, onde esse futuro é apresentado e onde tudo entra no seu lugar como que naturalmente, sem qualquer julgamento maniqueísta face ao que foi e ao que vem.
Sobretudo, pode ver-se aqui, talvez de forma algo rebuscada, não um comentário mas um testemunho daquilo que é a globalização em 2008/2009. Os irmãos que acompanhamos encontram-se distribuídos entre Paris, Nova Iorque e Shanghai, numa forma de dispersão que, para o bem e para o mal, fragiliza os laços familiares e mimetiza os actuais percursos da riqueza e das trocas culturais. Sobretudo, o que vemos é a dispersão do património que não poderá, de maneira nenhuma, por motivos práticos, manter-se na velha casa. Entre o dinheiro gerado pelas vendas, que se dividirá pelas três metrópoles, o espólio físico – que irá para o Musée d’Orsay – os cadernos do tio pintor – a serem leiloados pela Christie’s –, dá a ideia de uma Europa já nem culturalmente centro de nada, perdendo lentamente a sua capacidade de concentração de bens para um mundo em mutação. O Musée d’Orsay (que encomendou este filme juntamente com Le Voyage du Balon Rouge (2007) de Hsien mas que, como no caso anterior, pouco aparece), surge como o modo de Paris manter a sua relevância, já não viva ou dinâmica, mas numa luxuosa prisão para ser admirada. Parecendo que não, é até um filme de algum substrato “político”, mesmo que, repita-se, nunca condenando qualquer forma de mudança.
Se o anterior cinema de Olivier Assayas me havia parecido frio e desinteressante (ao ponto de não ir ver, por manifesto desinteresse, o anterior Boarding Gate), durante 90 e poucos minutos preocupei-me realmente com os sentimentos e a evolução daquela gente. O que é ainda mais notável tendo em conta que, apesar de tudo, L’Heure d’Été é um filme enxuto, pouco dado a sentimentalismos e a grandes momentos, mantendo um tom largamente uniforme. Mas dá a melhor das ilusões cinematográficas, a de estarmos perante um pedaço de vida. E isso continua, hoje e sempre, a ser impagável.
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Olivier Assayas
04 outubro 2009
The Bourne Seca
Não posso dizer que perceba os dois primeiros filmes da saga Bourne, que vi no final da semana que passou. É certo que são muito competentes nas perseguições automóveis, sobretudo a que existe a meio do primeiro filme. De resto? Personagens com a mesma espessura intelectual do José Eduardo Bettencourt, actores que recebem o mesmo que o presidente do Sporting mas parecem estar noutro sítio (e se são óptimos actores, Matt Damon, Brian Cox, Joan Allen, Chris Cooper...). Alguns dos locais mais belos do planeta (a sempre fantástica Paris, por exemplo, bem como o estonteante litoral italiano) tratados como se fossem o mesmo sítio - deve ser a globalização. Uma temática relevante (lidando com o xadrez mundial, através das relações americanas com governantes africanos e oligarcas russos) nem por um momento tratada com profundidade. Um estilo visual “cibernético”, aparentemente modernaço, mas que é igual a tantos outros filmes que por aí andam. E, por último, a tentação de encenar toda a acção aos tremores, abanando a câmara, dando uma falsa sensação de ritmo mas que, pelo menos para mim, tornam complicado perceber o que está a acontecer. Podem ser sucessos, se puder vejo o terceiro "à desobriga" apenas para completar a saga, mas não vejo o interesse.
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Saga Bourne
01 outubro 2009
Preston Sturges (2)
Christmas in July é o segundo filme de Preston Sturges, estreado, como o anterior The Great McInty, em 1940. Filme de curta duração – pouco passa de uma hora – dá uma importante lição em termos de comédia: este é um género que se quer o mais rápido possível. É verdade que o exemplo tinha sido dado anteriormente pelos mestres Hawks e Cukor (pensemos nas saraivadas verbais de His Girl Friday ou The Women, respectivamente) ou por discípulos futuros (lembremos a cena da perseguição a Nicholas Cage em Raising Arizona), mas tudo em Christmas in July, os seus trocadilhos, jogos verbais e duplos significados bem como a entrega acelerada das falas relembra este facto basilar.
História de um sonhador empregado de escritório que pretende alcançar a riqueza vencendo um concurso radiofónico para a atribuição de um slogan a uma marca de café e que pensa tê-lo vencido quando os colegas lhe pregam uma partida, é também uma história de como os sonhos desmesurados podem ser facilmente destruídos. Mas é, mais importante do que isso, uma demonstração de como o sucesso mais facilmente surge derivado de factores exógenos do que intrínsecos. Assim, o protagonista acaba por demonstrar boas ideias (o slogan que oferece quando, derivado da alegada vitória no concurso, o patrão o promove ao departamento de marketing é francamente superior ao submetido a concurso), mas toda a aprovação deriva de uma nova concepção feita do protagonista a partir daquele momento.
É uma obra vincadamente operária, acerca do sonho de uma vida melhor, sem preocupações. Interpretado por Dick Powell (de The Bad and the Beautiful de Minnelli e de The Tall Target de Anthony Mann, entre outros) e Ellen Drew (com longa carreira de secundário e participante em Stars in My Crown de Jacques Tourneur), é um filme menor, mas cuja sedimentação de processos se afigura fundamental para o que viria depois.
História de um sonhador empregado de escritório que pretende alcançar a riqueza vencendo um concurso radiofónico para a atribuição de um slogan a uma marca de café e que pensa tê-lo vencido quando os colegas lhe pregam uma partida, é também uma história de como os sonhos desmesurados podem ser facilmente destruídos. Mas é, mais importante do que isso, uma demonstração de como o sucesso mais facilmente surge derivado de factores exógenos do que intrínsecos. Assim, o protagonista acaba por demonstrar boas ideias (o slogan que oferece quando, derivado da alegada vitória no concurso, o patrão o promove ao departamento de marketing é francamente superior ao submetido a concurso), mas toda a aprovação deriva de uma nova concepção feita do protagonista a partir daquele momento.
É uma obra vincadamente operária, acerca do sonho de uma vida melhor, sem preocupações. Interpretado por Dick Powell (de The Bad and the Beautiful de Minnelli e de The Tall Target de Anthony Mann, entre outros) e Ellen Drew (com longa carreira de secundário e participante em Stars in My Crown de Jacques Tourneur), é um filme menor, mas cuja sedimentação de processos se afigura fundamental para o que viria depois.
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Preston Sturges
29 setembro 2009
Polanski
Declaração de interesses: não tenho especial admiração por Roman Polanski. Gosto muito de Rosemary's Baby (1968)... e é basicamente isso, embora confesse que ainda não vi filmes como Repulsion (1965), Cul-de-sac (1966), Chinatown (1974) ou Tess (1979) com a atenção devida. The Ninth Gate (1999), por exemplo, pareceu-me, à época, francamente medíocre. Mas a sua prisão em Zurique - onde ia a convite do festival de cinema local - não me parece muito bem.
Vamos aos factos: Polanski confessou o crime, perante a promessa do juíz de que não cumpriria mais do que uma pena de internamento numa instituição psiquiátrica, promessa que estaria na eminência de ser quebrada. O procedimento do mesmo juíz é contestadíssimo e, em Los Angeles, são frequentes os casos de ciladas montadas às estrelas. A vítima diz ter perdoado o autor do crime e afirma que a frequente menção do caso a prejudica. Polanski tem uma casa na Suíça, país que acolhe sem grandes problemas os dividendos de criminosos, desde dinheiro mafioso a ouro roubado pelos nazis e que o poderia ter prendido antes. Finalmente, falamos de um homem de 78 anos que cometeu este crime há 32.
Não digo que o crime e o modus operandi não sejam particularmente repugnantes. Mas a pergunta que me ocorre é: não há outros criminosos cuja captura se afigure mais urgente?
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Roman Polanski
23 setembro 2009
Os escaravelhos somos nós
Arrisco dizer desde já: District 9 é o mais surpreendente filme de ficção científica desde que os irmãos Wachowski nos enganaram relativamente ao seu talento com o primeiro Matrix (1999) e um dos mais inesperados filmes da década. Desde logo, pela sua proveniência: nada diria que seria da África do Sul que surgiria a revitalização de um género venerável mas actualmente pouco relevante. O filme de Neil Blomkamp, embora apadrinhado por Peter Jackson e feito com um parco orçamento (considerando os efeitos especiais usados e comparativamente aos orçamentos de muitos filmes de Hollywood) de 30 milhões de dólares, utiliza as desigualdades, a guetização, o recente crescimento e a história ainda não esquecida da sua pátria (nomeadamente o apartheid) , fazendo um objecto estimulantemente sediado e, ao mesmo tempo, completamente global. É, em suma, um filme que injecta no blockbuster uma saudável dose de inteligência e inventividade.
A surpresa começa, precisamente, na fascinante inversão posicional que District 9 opera. Uma nave extra-terrestre escolhe, na década de 1980, a cidade de Joanesburgo para aportar. Após três meses, as autoridades resolvem enviar uma equipa que, no interior da nave, descobre mais de um milhão de extra-terrestres - todos da “classe operária” do planeta, visto que as chefias morreram misteriosamente - subnutridos e incapazes de se defender. Estes são colocados no titular nono distrito, um misto de favela com Faixa de Gaza com Guantanamo, até que, no presente, a criminalidade força as autoridades a mudá-los, sob o comando de um tolo genro de uma empresa a quem foi feito o outsourcing da mudança, num procedimento mudará radicalmente o estado das coisas. A inversão é então clara: mais do que perguntar o que eles nos fariam, Blomkamp escolhe perguntar o que lhes faríamos nós. E o perturbante é que a resposta não difere muito do que temos feito uns aos outros nos últimos milhares de anos.
Ao transformar os humanos nos opressores e os invasores nos oprimidos, District 9 espelha brilhantemente aspectos das sociedades actuais como a exclusão dos diferentes (a chegada dos alienígenas mimetiza a chegada dos imigrantes à Europa ou aos Estados Unidos), a cumplicidade entre a governação e as empresas (há muito de Halliburton no conglomerado Multi-National United), o poder violento do Estado, a sua burocracia controladora e o sensacionalismo da informação. Pode-se dizer que nenhum dos problemas é mais do que enumerado, sendo somente um filme de diagnóstico, mas cumpre optimamente a função de espelho do real que a ficção científica sempre teve. E funde-a com a tradicional história, de claros fins sociais, de um membro da classe dominante que acorda para as injustiças do seu tempo: o protagonista Wikus torna-se um “deles”, literal como figurativamente, operando uma pequena grande revolução no modo como passa de inapto capacho que lucra com o nepotismo a alguém que conhece por dentro as vicissitudes e as dificuldades dos depreciativamente nomeados “escaravelhos”.
Não nos iludamos, no entanto: há problemas em District 9. O maior deles a forma como a segunda parte do filme é mais blockbuster que exposição, privilegiando a explosão em detrimento do pensamento. Outro, o facto de a humanização da mais importante personagem extra-terrestre ser discutível, mero método meta-cinematográfico, custando a acreditar (como no ET de Spielberg, já agora) que um ser espacial tivesse os mesmos valores que os humanos. Finalmente, se o final em aberto é assustador e característico da melhor ficção científica e do melhor terror, não garantindo qualquer regresso a uma normalidade anterior, deixa uma porta demasiado aberta para sequelas inferiores e descaracterizadoras.
Ainda assim, há muito que não via um filme destes, inteligentíssimo, credível e lógico, com diversas ideias de cinema (o horripilante laboratório onde são feitas as experiencias cientificas com os alienígenas, por exemplo, ou a poética cena final) e, sobretudo, com a coragem de fazer perguntas incómodas. District 9 é um filme virado para dentro mais do que para o espaço sideral. Que quem o for ver o perceba para lá do grande espectáculo que, liminarmente, também é.
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Neil Blomkamp
21 setembro 2009
No Messanger às 2 da manhã
Miguel diz:
ah, já vi o arena
rende
jose diz:
tá bom
Miguel diz:
com o rapace, é a coisa mais entusiasmante que vi do cinema portugues dos putos
jose diz:
sim, eu geralmente tb fico muito lixado com as curtas metragens
Miguel diz:
sabes que para mim é um filme muito especial: a minha escola preparatória é por trás dos prédios que ele fica a olhar no fim do filme
aquele cenário é o da minha infância
jose diz:
grande cena
aconteceu-me o mesmo com a ultima curta do joão nicolau, "cançao de amor e saude"
o centro comercial onde ela se passa marcou a minha infancia
Miguel diz:
é uma sensação estranha
estamos tão habituados a ver sitios exóticos como Paris ou Nova Iorque no cinema que é esquisito ver sitios que conhecemos
digo eu
jose diz:
pois é..
ah, já vi o arena
rende
jose diz:
tá bom
Miguel diz:
com o rapace, é a coisa mais entusiasmante que vi do cinema portugues dos putos
jose diz:
sim, eu geralmente tb fico muito lixado com as curtas metragens
Miguel diz:
sabes que para mim é um filme muito especial: a minha escola preparatória é por trás dos prédios que ele fica a olhar no fim do filme
aquele cenário é o da minha infância
jose diz:
grande cena
aconteceu-me o mesmo com a ultima curta do joão nicolau, "cançao de amor e saude"
o centro comercial onde ela se passa marcou a minha infancia
Miguel diz:
é uma sensação estranha
estamos tão habituados a ver sitios exóticos como Paris ou Nova Iorque no cinema que é esquisito ver sitios que conhecemos
digo eu
jose diz:
pois é..
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João Salaviza
17 setembro 2009
A minha obsessão com este disco começa a meter nojo mas...
... esta é a melhor crítica musical que li este ano.
11 setembro 2009
Preston Sturges (1)
The Great McGinty (1940) permite antever as características dos melhores filmes futuros do argumentista e realizador Preston Sturges. História de um vagabundo transformado em gangster e, posteriormente, testa de ferro de um mafioso enquanto mayor de uma cidade e governador de um Estado que conta, anos depois, numa espelunca na América do Sul, o seu trajecto a dois clientes, é um filme sóbrio, sem grandes rasgos visuais. Com um elenco de segunda linha (Brian Donlevy, secundário em filmes de Fritz Lang, Henry King, King Vidor, Cecil B. DeMille e Joseph H. Lewis, entre outros; Muriel Angelus, que encerrou aqui a sua carreira no cinema; e Akim Tamiroff, actor de filmes de Welles, Godard e Sirk, entre outros) é um filme onde tudo é posto ao serviço de um argumento muitíssimo bem escrito, numa progressão linear e classicista ao nível de um romance. Curioso também é o pessimismo da visão da vida política americana, e não apenas o compadrio entre políticos e criminosos, mas também a impossibilidade de sobreviver no meio quando os valores morais se levantam, numa visão anti-capriana onde a ascensão ao poder cria a comédia e o despertar para a moral e a solidariedade traz a tragédia. É, no limite, um filme extremamente corajoso, ao pôr, em plena Segunda Guerra Mundial e face à visão idólatra da política que Franklin Delano Roosevelt criara um cenário de falsificação de eleições, construção de obras públicas com vista ao lucro pessoal e aceitação corrente de subornos, em tudo aplicável ao contexto português de 2009. Mesmo que não seja brilhante, é um filme actual e muito competente.
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Preston Sturges
07 setembro 2009
Carpenter, o contrabandista
Durante a cobertura que fiz do festival Motelx (e que sairá numa das próximas Take), tive o prazer e o privilégio de entrevistar Stuart Gordon, autor do clássico Re-Animator (1985). Quando lhe peço para falar para o leitor de mp3 da minha mulher, um Sony preto de 2 gigabytes que utilizo como gravador de voz, Gordon pergunta-me, curioso acerca do formato do aparelho e no seu estilo amigável, se aquilo era um isqueiro. Também amigavelmente, disse-lhe que não e que, como fumador, se fosse já o teria experimentado. Palavra puxa palavra e digo-lhe "O John Carpenter tem fama de ser um grande fumador..." Gordon responde-me: "Sim. Quando fui com ele a Vancouver filmar um dos meus episódios da série Masters of Horror, ele escondeu maços de tabaco nas nossas caixas de efeitos especiais. A alfândega descobriu, apreendeu as caixas e por causa disso o meu episódio começou a ser filmado com atraso".
Um curioso caso de tabagismo passivo.
(Já agora, o festival é óptimo. Não tanto pelos fimes, irregulares na qualidade, mas pela energia, pelas salas cheias e pelo público jovem. Foi a primeira vez que lá fui, mas fiquei fã.)
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04 setembro 2009
La movida
Na pesquisa que fiz para um texto sobre Pedro Almodóvar que sairá, tudo corra bem, no próximo número da revista Take, soube que o cineasta havia feito parte, nos tempos da Movida, do duo musical Almodóvar & McNamara. Viagem imediata ao Youtube onde me deparei com estes fantásticos exemplos de camp musical. Vejam, que vale a pena!
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Pedro Almodovár
31 agosto 2009
Take - Agosto/Setembro 2009
Está já disponível o número 18 da revista Take. Da minha parte, críticas a meia-dúzia de filmes (Elegy, Transsiberian, Up, The Life Before My Eyes, Home e Sinédoque, Nova Iorque), antecipações de Antichrist de Lars von Trier e The Girlfriend Experience de Steven Soderberg e um olhar transversal sobre a carreira de Agnès Varda (a meias com a Helena). O tema de capa é a carreira de Johnny Depp e há curiosas entrevistas com ex-membros do elenco da mítica série Allo, Allo! Passem por lá, se faz favor.
Nazi Spaghetti
A primeira e mais óbvia constatação a fazer acerca de Inglorious Basterds é o facto de já nada do que é feito por Quentin Tarantino constituir surpresa. A saber,
i) a capacidade estranhamente atractiva de transformar qualquer temática num western spaghetti – tanto mais atractiva, neste caso, quanto o referido sub-género surge, culturalmente, 20 anos após os acontecimentos narrados, num delicioso anacronismo;
ii) o enquadramento maníaco, a um tempo clássico no rigor geométrico e cromaticamente expressivo, quase ao nível da pop-art (herança clara do cinema exploitation);
iii) a qualidade dos diálogos, profundamente literários mas sempre com dose de coloquialidade suficiente para parecerem verosímeis (no que a historicamente comprovada "politesse" dos nazis é ferramenta preciosa);
iv) e as citações cinéfilas (cartazes de Pabst e Clouzot; citação óbvia de The Searchers na fuga de Shosanna, plano de chegada dos nazis à maneira de Leone na primeira sequência, "foreground" estático do lençol com movimento dos nazis no "background");
já tudo foi feito por diversas ocasiões pelo próprio Tarantino.
O que torna Inglorious Basterds tão aliciante é a forma como encontra soluções para as armadilhas que se poderiam erguer. A primeira, a histórica: o final do filme coloca-o, genialmente, o mais longe possível das produções de luxo dos anos 60 e 70 com actores na pré-reforma, e próximo, ao invés, do cinema "trash" que, com maior talento e com mais meios, Tarantino mais reivindica. A segunda, a moral: longe do sentimentalismo, do aviso ao futuro, de mais uma demonstração da shoah em forma fílmica ou do politicamente correcto que a senilidade de Jonathan Rosembaum parece querer ver, Inglorious Basterds é mais um filme de vingança, usando a irrisão e décadas de cinema para contra-atacar uma ideologia asquerosa, com a certeza de que quem nos atira uma pedra ou nos acerta ou a leva de volta. A terceira, a estética: um filme estritamente sobre uma missão dos Basterds perderia cor e riqueza, do mesmo modo que um filme em fragmentos isolados seria, talvez, menos eficaz. A solução foi, então, criar uma narrativa confluente e linear, com cinco capítulos em diversos locais e momentos da mesma história. Dá-se, então, um equilíbrio perfeito entre cor e facilidade na narrativa, ideal para o filme de aventuras apresentado.
Qual, então, o factor que coloca Inglorious Basterds um pouco, um quase nada, abaixo de alguns outros filmes de Quentin Tarantino? Essencialmente, um pequeno problema de gestão temporal: as sequências do jantar de Zoller e Shosanna com Goebbels e a da taberna (ainda assim brilhante) são um pouco longas demais. É certo que é necessário tempo para a tensão se acumular, que cada uma dessas sequências é notoriamente dividida em duas partes e que a da taberna tem uma construcção, de novo, à Sérgio Leone, onde a violência é preparada com calma, eclodindo de maneira ejaculatória e acabando em segundos. Mas cinco ou dez minutos a menos em cada sequência teria tornado o filme um pouco mais escorreito e arredondado a sua duração, o que o teria melhorado ainda mais.
Preciosismos, no fundo, que desaparecerão à quinta ou à sexta visão – ainda só vou na segunda. Inglorious Basterds é um dos melhores filmes do ano, corolário de um Agosto fortíssimo e pedaço de cinema puro, cerebral e virulento. É, até ao momento, o filme mais maduro de Tarantino (mesmo que provavelmente não seja o filme por que será lembrado), mercê dos diálogos literários e da qualidade da construção narrativa. Fruto da carreira que Tarantino já criou, confirma as expectativas mas não as excede. Mas tomara muitos que contra os seus filmes só se pudesse apontar pseudo-defeitos destes.
i) a capacidade estranhamente atractiva de transformar qualquer temática num western spaghetti – tanto mais atractiva, neste caso, quanto o referido sub-género surge, culturalmente, 20 anos após os acontecimentos narrados, num delicioso anacronismo;
ii) o enquadramento maníaco, a um tempo clássico no rigor geométrico e cromaticamente expressivo, quase ao nível da pop-art (herança clara do cinema exploitation);
iii) a qualidade dos diálogos, profundamente literários mas sempre com dose de coloquialidade suficiente para parecerem verosímeis (no que a historicamente comprovada "politesse" dos nazis é ferramenta preciosa);
iv) e as citações cinéfilas (cartazes de Pabst e Clouzot; citação óbvia de The Searchers na fuga de Shosanna, plano de chegada dos nazis à maneira de Leone na primeira sequência, "foreground" estático do lençol com movimento dos nazis no "background");
já tudo foi feito por diversas ocasiões pelo próprio Tarantino.
O que torna Inglorious Basterds tão aliciante é a forma como encontra soluções para as armadilhas que se poderiam erguer. A primeira, a histórica: o final do filme coloca-o, genialmente, o mais longe possível das produções de luxo dos anos 60 e 70 com actores na pré-reforma, e próximo, ao invés, do cinema "trash" que, com maior talento e com mais meios, Tarantino mais reivindica. A segunda, a moral: longe do sentimentalismo, do aviso ao futuro, de mais uma demonstração da shoah em forma fílmica ou do politicamente correcto que a senilidade de Jonathan Rosembaum parece querer ver, Inglorious Basterds é mais um filme de vingança, usando a irrisão e décadas de cinema para contra-atacar uma ideologia asquerosa, com a certeza de que quem nos atira uma pedra ou nos acerta ou a leva de volta. A terceira, a estética: um filme estritamente sobre uma missão dos Basterds perderia cor e riqueza, do mesmo modo que um filme em fragmentos isolados seria, talvez, menos eficaz. A solução foi, então, criar uma narrativa confluente e linear, com cinco capítulos em diversos locais e momentos da mesma história. Dá-se, então, um equilíbrio perfeito entre cor e facilidade na narrativa, ideal para o filme de aventuras apresentado.
Qual, então, o factor que coloca Inglorious Basterds um pouco, um quase nada, abaixo de alguns outros filmes de Quentin Tarantino? Essencialmente, um pequeno problema de gestão temporal: as sequências do jantar de Zoller e Shosanna com Goebbels e a da taberna (ainda assim brilhante) são um pouco longas demais. É certo que é necessário tempo para a tensão se acumular, que cada uma dessas sequências é notoriamente dividida em duas partes e que a da taberna tem uma construcção, de novo, à Sérgio Leone, onde a violência é preparada com calma, eclodindo de maneira ejaculatória e acabando em segundos. Mas cinco ou dez minutos a menos em cada sequência teria tornado o filme um pouco mais escorreito e arredondado a sua duração, o que o teria melhorado ainda mais.
Preciosismos, no fundo, que desaparecerão à quinta ou à sexta visão – ainda só vou na segunda. Inglorious Basterds é um dos melhores filmes do ano, corolário de um Agosto fortíssimo e pedaço de cinema puro, cerebral e virulento. É, até ao momento, o filme mais maduro de Tarantino (mesmo que provavelmente não seja o filme por que será lembrado), mercê dos diálogos literários e da qualidade da construção narrativa. Fruto da carreira que Tarantino já criou, confirma as expectativas mas não as excede. Mas tomara muitos que contra os seus filmes só se pudesse apontar pseudo-defeitos destes.
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Quentin Tarantino
Triste Verão
Princípios dos anos 90. O programa em reposição chamava-se Lá em casa tudo bem e é uma das poucas, senão mesmo a única boa sitcom alguma vez feita em Portugal. A filha da personagem interpretada por Raúl Solnado traz pela primeira vez o namorado, interpretado por António Feio, a casa. Quando a conversa está a correr bem, o namorado vira-se para a jovem e diz "Oh **** (não recordo o nome), o teu pai é muita louco". Solnado desata numa diatribe do estilo "Eu a tratá-lo bem e você a insultar-me!", até que lhe asseguram que é um elogio. O episódio decorre com normalidade até que no final, Solnado se vira para a actriz que desempenhava o papel de sua mulher e interroga, com o seu hilariante ar garboso: "Oh Maria, sabias que eu sou... muita louco?" Acho que foi a primeira vez que, conscientemente, me desatei a rir em frente à televisão. Por isso, muito obrigado, caro Raúl.
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Raúl Solnado
01 agosto 2009
29 julho 2009
Notas da 'teca (6)
Qual o lugar de John Huston no panteão dos grandes cineastas do período clássico? Mais difícil de definir do que parece. Ora vejamos: um grande filme a abrir (The Maltese Falcon, 1941, um dos filmes definidores do cinema noir) e outro a fechar (Dubliners, 1989, óptima adaptação de The Dead, último e magnífico conto do livro que dá título ao filme, de James Joyce). Um punhado de obras de muito bom nível, como The Treasure of Sierra Madre (1948), The Asphalt Jungle (1950) e The African Queen (1951). Sobretudo, The Misfits (1961), aparecido no momento certo para resumir o que havia sido e o que seria na década seguinte o cinema americano. De resto, mais de uma dezena de obras esquecidas, algumas adaptações de obras-primas da literatura (Moby Dick, 1956 e Under the Volcano, 1984), a desconsideração de Truffaut e o consequente anátema dos Cahiers e um nome de cuja importância ninguém duvida mas que muito raramente (jamais) se coloca ao nível dos maiores.
Key Largo (1948) foi o primeiro filme de John Huston depois do regresso da II Guerra Mundial, onde fez importantes documentários de propaganda, o último filme do par Bogart-Bacall e o último filme que Huston fez sob contrato para a Warner Brothers, antes de se tornar independente. Adaptado por Huston a meias com o (futuro) realizador Richard Brooks (Cat on a Hot Tin Roof, 1958 e In Cold Blood, 1967), a partir de uma peça de teatro de sucesso parco, trata de um homem que regressa da guerra para visitar o pai e a esposa de um companheiro de armas, apenas para ser sequestrado, juntamente com aqueles, em noite de furacão, por um mafioso (mais uma excelente composição de Edward G. Robinson, o habitual papel de gangster com a viscosidade e o excesso do costume) em busca de um regresso, misto de Al Capone e Lucky Luciano.
O filme joga-se, então, em dois parametros.
Em primeiro lugar, é um filme sobre o pós-guerra e sobre a postura dos que sobreviveram à guerra. Se Bogart (a fazer de Bogart - e há alguém que se queixe?) pretende evoluir, sentir que não lutou em vão, Robinson quer regredir e sonha com o regresso da Lei Seca para reconstruir o império que tinha antes do governo o tentar deportar. No limite, são duas personagens com muito mais em comum do que imaginam, lutando por encontrar lugar num mundo que, pelo exílio da guerra ou pelo exílio forçado, já não conhecem.
Por outro, tudo se joga, estilistica e narrativamente, na maneira de trabalhar o huis clos por modo a transformar o teatral em cinematográfico, ritmando e filmando os diálogos e a tensão em mais do que uma mera ilustração. Consegue-o, pelo jogo ocasional com os exteriores e pela colocação idiossincrática da câmara (amiúde num subtil contra-picado, qualquer coisa entre os 50 e os 65 graus de inclinação) bem como pela óptima direcção de actores (destaque para o óptimo desempenho de Claire Trevor) . Mas falha na eficácia, no aumento exponencial da tensão bem como na criação de momentos visualmente distintos, em suma, na falta de capacidade de transformar o que é visto em mais de 100 minutos que desaparecem após a visão. Dele se pode dizer, no fundo, que é como a carreira de Huston: dilui alguns momentos relevantes numa maior quantidade de momentos facilmente esquecíveis.
Para finalizar, uma curiosidade: o final de Key Largo é retirado do To Have and Have Not de Ernest Hemingway, preterido da versão cinematográfica realizada por Howard Hawks pelo próprio cineasta (Fonte: Folha da Cinemateca elaborada por Manuel Cintra Ferreira).
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